🔓 Angústias sujas

No Brasil que se afoga em lama, governado por um verme muito pior do que um vírus, qual é a importância de seguir calculando rimas e lendo prefácios?
Ilustração: Eduardo Mussi
08/03/2022

Não terei assunto. Medo de gente que escreve. Com o tempo, ele é domado. Calma, sempre há o que dizer. Assunto cai do céu e brota em árvore. Assunto é como aquela plantinha valente que se enraíza e cresce no meio da área cimentada. Até no asfalto dá. O segredo é manter os ouvidos atentos. Os olhos também, mas nem sempre eles ajudam. Podem distrair ao invés de alertar. Os ouvidos captam o que as pessoas dizem, em mínimas frases ou em discursos inteiros. Uma sílaba em destaque, uma afirmação de uma linha, uma notícia excepcionalmente boa ou má, bizarra ou simplória. A vida dos outros. A vida da gente, que se parece demais com a dos outros. Escrever é recontar. Dificilmente é outra coisa. Linguistas conhecem Bakhtin, e era ele que dizia que estamos numa corrente de ditos e dizeres, somos elos, estamos nos nós, laços, pedaços. Outro dia, lendo a poesia de uma poeta famosa, ouvi outra poeta famosa. Não era explícito nem admitido, talvez, embora a mais jovem fosse reconhecidamente admiradora da mais velha. Mas não era só. É uma espécie sofisticada e legitimada de copiadora, ecoadora, embora nem todo mundo possa ouvir o contracanto de uma nas linhas da outra. Isso a escola diz que ensina, mas é mentira. Escola ensina metalinguagem, que a gente mal aprende. Para saber é preciso ler. E ler num frenesi danado, quase só encontrado e desenvolvido extramuros.

Que coisa feia esta menina preocupada em ter assunto, fazer poema, escrever crônica (!) enquanto o mundo se esboroa diante de nós. O planeta tem espasmos de calor e de frio, a Bahia e as Minas escorrem pela correnteza violenta, escorregam terras, as pessoas morrem de doenças invisíveis, homens e mulheres ficam sem ar, jeito horroroso de morrer, nunca ninguém quis. Uma guerra faz clarões no horizonte e mata crianças em seus berços. O clima enlouquece, se vinga, o país numa miséria intelectual e política sem precedentes, um verme muito pior do que um vírus, eles competem quem asfixia mais. O fim do mundo ensaiando acontecer, os dinossauros achando que está pior desta vez, a censura dando as caras, a ignorância devastando os futuros possíveis, e essa menina mimada querendo silêncio para escrever três versos, estrofes, calculando as rimas, de dentro, de fora, lendo prefácios, tentando copiar sutilmente poetas de outros tempos, os bem-sucedidos, a ver se cola, a ver se alguém a enxerga. Não enxergará, claro.

Que angústia suja esta, que atividade dispensável, que situação. Vem aí uma eleição lamacenta, mais uma barragem expulsará moradores que jamais serão indenizados, mais cadáveres submersos e cheios de lama nas narinas, mais empresas monopolizarão alguma coisa de que precisamos muito, o gás de cozinha com três dígitos, as bandeiras escorchantes da conta de luz, a água pela hora da morte, a água paga, essa que escorre do céu e é capturada pelos homens bem-sucedidos, a ciência que interessa, a ciência sem prioridade, os jornais sempre têm assunto. Que inveja! Que coisa feia esta menina sentir inveja. É pecado, de uma breve lista de sete terríveis deles. (Sabemos: são muito mais que sete. O compilador é que desistiu.) Ela peca. Os jornais sempre têm assunto, embora não se ocupem de fazer literatura. E a literatura, às vezes ensinam na escola, não se ocupa disso, desses assuntos feios e frios, usando palavras fortes. Não cabe à poesia, por exemplo, provocar o debate, denunciar ou apontar. Poesia vem amenizar, quem sabe? É o que ensinam por aí, bastante. Faltará assunto às poetas, já que o mundo anda tão convulso e revolto? De onde esse povo que escreve tirará ideias para distrair a humanidade de sua desgraça diária? Alguém sabe dizer? Alguém confirma, antes que a água barrenta invada nossa casa?

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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