🔓 A bem da verdade

Conto semifinalista do concurso internacional Pena de Ouro, realizado em 2020 e que contou com jurados de sete países lusófonos
Ilustração: Bruno Schier
04/03/2021

Fazia tempo que a gente não se sabia tanto, num é?

E não se ria desse jeito engoiabado…

Eita que o tempo rolou e te trouxe mesmo.

A vida é assim, tu respondeu tão bonito.

É sim, eu disse só para rimar.

Engraçado, nunca deixei de ter rima contigo. Mesmo quando tu agarrou cisma de olhar o por de trás da cachoeira. Demorou tanto que meu cabelo foi bater no meio das costas.

Deixei ele cheiroso só pra ti. Quando tu disse que tava cheiroso quase derreti. Ixe! Viu? Sempre sai rima.

Ave Maria, que tu voltou. Tá danado de brilho, que eu vou ficar olhando aonde for. Mesmo que tu ande de volta para dentro do mato e só venha quando der estrela na telha, dessa vez vou ir cuidando.

Num precisa, tu vai dizer, que eu já sei. Pra tudo tu diz que num precisa. Nada precisa pra ti.

Mas eu vou querer.

O que tem lá que te puxa tanto? Eu quase sei e me dá dó. O que tem aqui que te traz de volta? Essa eu bem sei. Benzinho mesmo.

Olha, sem ti foi a coisa mais horrorenta. Não tô dizendo isso pra tu ficar, não. É só para tu saber mesmo. Eu engordei, depois emagreci, depois adoeci e engordei de novo. O milho secou e não tem mais jeito. Agora a gente tá mais pra horta, mesmo. Andorinha teve um macho e uma fêmea. Os dois estão bem, mamando bem, e o leite dela tá bem gordo. Tu vai querer fazer queijo?

Anteontem os meninos perguntaram de ti. Eu tava muito te pressentindo, mas disse que ainda não sabia. Já pensou se eu sou doida de te guardar pra mais ninguém saber que tu tá aqui? Ave Maria, que eu não tenho coragem de deixar os meninos sem professor. Nem de ir atrás de ti em lugar nenhum.

Fazer o quê, se tu é assim de ir, né?

Fazer o quê, se eu sou de ficar?

Tu sabe que foi brincadeira dizer que vou atrás de ti, né?

Não tem jeito de eu ir atrás, se tu tá aqui dentro.

O Augusto me chamou pra casar, vê se pode? Eu disse pro povo que não me dou com nego de preguiça. Mas, a bem da verdade, é que eu tô casada: no dia que tu foi, eu voltei pra casa e vi que cada passo teu de ida, que eu fui vendo até tu sumir, foi cada passo teu pra dentro daqui, de vinda, até tu ficar. Porque casamento não é fora da gente, é dentro, né? É sem querer. Quando vi, já tava assim. Tô te contando isso por nada, não. Só porque é mesmo. Como essas rimas que quando a gente vê já saiu.

Vixe, que tá calado. Bora deixar esses troços pra lá e cuidar de esticar essa perna seca.

***

O Augusto veio dizer que o livro tá um abuso de beleza, vê se pode? Que é preu aparecer no sarauzinho, que o povo vai gostar. Que se eu não recitar, ele mesmo já separou uns pedaços pra ler. Eu até ia, se tu não estivesse aqui.

Esse bolo agora tá diferente. Misturo castanha. Comecei jogando amêndoa, mas quase não deu nada. Castanha bota graça. Separei uma banda pra tu levar pros meninos. Mais tarde passo lá para ver o riso deles. Eita que ganham luz contigo por perto.

Aí, vamos juntos no velho. Vou deixar uma panelada de unha de gato prele tomar a semana toda. Rapidinho a inflamação estanca, tu vai ver. Ele deu pra comer melhor, mas as aprontices do teu irmão não deixam ele ficar bom. Olha, Mariinha faz falta.

Fiquei tentando pôr cor na tarde dela. Que sol brilhoso, hein, neguinha? O assovio desse danadinho só dá nessa hora. Mas ela nem levantava a cabeça.

Dona Araci chegou a passar banho de rosa amarela prela abrir esclarecimento. E também, como andava assim endividada por conta do casório, o amarelo ia chamar o ouro. Mas, devota daquele jeito, não quis saber de feitiço.

Depois do acontecido, os dias foram abafados. Eram os anjos se segurando. Não demorou, eles desabaram. Foi uma semana de chuva fina, eles chorando miúdo a dó por elazinha e teu irmão. Depois emendaram tempestade, esperneando a dor. Trabalharam estralado até botar ele olhando ela, depois os dois se cuidando e pedalando por aí, que não se conformam com essa doidice dele de jogar tudo fora pra nada. Anjo não gosta de nada, né?

***

Poema difícil. Essa cara já sei o que é: que se fosse fácil não era eu que ia escrever. Acho que tá difícil porque tu tá aqui, mesmo. Contigo longe, eu poemava pra te trazer. Contigo aqui a inspiração vem, mas acaba resvalando porque sempre deixo ela para depois.

Ah! Os meninos te contaram da fogueirinha de poesia que a gente fez? Foi o São João mais maravilhento. Tu tinha que ver. Mariinha fez beijoquitas de fubá, e a gente ficou um tempão debaixo da jabuticabeira. Eles só levantaram pra quadrilha. Vi pai, mãe, tio, tia. De tudo tinha na roda. Aos poucos a gente tá conseguindo aquela importância de envolver a família. Acho que agora, contigo aqui, podemos pensar num passo a mais pra isso daí.

Nesse dia o Augusto levantou e perguntou por que não tinha música junto dos escritinhos dos meninos. Que não era porque tu tava pra longe, que era preles esquecerem as sonoridades. Achei bonito. Botou eles pra pensar. Mas o negócio é que eles só funcionam contigo mesmo, tem jeito não.

Quase esqueci de te dizer: uma garota ligou ontem e hoje querendo te achar. É de uma revista. Disse que falou na escola e eles deram o telefone daqui. Que povo safado. Nem pra disfarçar que sabem que tu tá aqui. Podiam ter dado o número do teu pai.

Tu vai lá hoje? Fica uma beirada com ele. Contigo é capaz dele comer melhor um pouco. Uma semana de comida certa mais o chá e assuntando contigo, vai sarar. Tadinho, sente falta de Mariinha. Ela era danada pra conseguir dele o que ninguém mais dava conta. Até aquelas colheradas de melado azedo ele aceitava. Olha, eu rezo prele esquecer o enredo, mas eu mesma ainda ando encharcada com isso. Não fosse tu aqui, nem sei.

Os meninos também não tão bem, não. A gente conseguiu uma psicóloga que ficou duas luas cuidando deles, conversando com as famílias. Mas o troço é que Mariinha era muito querida e a forma como procederam foi esquisita demais. Desumana. A polícia chegou entrando na escola, interrogando a cidade inteira. Sem trato, só rudeza. Pra mim, agora, os meninos tão com dois traumas pra sarar. Vai pensando nisso.

***

Eu, hein? Que tá cansado de papo de Augusto, que o quê? Ele é importante igual pra mim, pra ti e pro povo todo aí. E sempre soube ficar quieto nesse troço de amor por mim. Disse que tá querendo falar contigo de apresentar o aprendizado dos meninos no sarauzinho. Tu num vai negar, né? Veio todo dizendo que o equipamento agora é tecnológico, que tu num vai mais botar defeito. Tu sabe que ele te respeita pesado.

E foi o único que ficou do meu lado na defesa do teu irmão. Eu falei com todas as letras para a delegada-delegado. É. Tava mais pra brucutu que pra ser humano aquela troça. Eu disse praquilo que teu irmão largou elazinha antes do acontecido e que não tinha jeito dele ter voltado para fazer mal pra ela, porque aqui é metade de um ovo e alguém ia ver ele. Mas a troça é incapaz de entender um enredo de amor. Dos mais simples ainda: bateu covardia nele, arrumou uma mentira que ia trabalhar contigo e deu no pé. A tristeza dela foi tão funda, que pronto. Mas a brucutu não se conforma. Acha que alguém fez mal pra Mariinha e que esse alguém é o infeliz. Olha, todas as aprontices do teu irmão não cabem na panela desse castigo. A gente sabe que aquele peste é covarde desde que nasceu. Então, quando viu a foto do corpo boiando no ribeirão, aí é que resolveu sumir mesmo. Isso foi outro troço de lascar: jornais nojentos. A gente com aquilo tudo pra lidar e ainda tinha a imagem delazinha daquele jeito em tudo quanto era canto.

Por falar em jornal, a garota ligou de novo. Disse que pode vir até aqui pruma entrevista exclusiva, que tu prometeu pra ela. Num sei por que fico te dando esse recado, que tu num tá nem aí. Essa parte tua eu sempre esqueço. Porque não me acostumo. Ou porque minha saudade é de abafar frieza.

***

Não é só zanga minha que tu acalma, não. É tudo. Milagre que eu nunca pensei, esse amor maior da vida.

Bora tratar de ir pros meninos, que a hora escorregou.

***

Eu bem sabia que ele ia melhorar. Mas daí a amanhecer na horta, surpresa demais. Almoçou bem mesmo e disse que ia se confessar. Desde quando teu pai tem pecado? O que tiver, nasceu perdoado.

Credo. A gente é tão parecido. Pensa igual, Ave Maria. Foi certinho isso que eu disse prele: passar na escola. O riso dos meninos mais o converseiro da dona Araci, né? Vão tirar ele dessa condição de Deus nos livre.

Tu tá achando os meninos bem porque estão encantados contigo aqui. Mas vai comer com eles, pra ver o que acontece! Abrem o reclameiro e não têm hora para fechar. É muito sal, é pouco açúcar, é aguado, é empapado, é ruim de mastigar. Olha, tá complicado. A psicóloga disse que é um jeito de defenderem dentro do peito o amor por Mariinha. Mas a zoeira foi tanta que fiquei desconfiada do tempero e trocamos de merendeira duas vezes. Agora, na terceira, tô dando razão pra doutora.

Que gastura essa jornalista ligando aqui. Atende lá, que é ela.

Credo, que ignorância!

Então vou tirar da tomada.

***

Num olha pra isso de rima usada, não. Tempo e vento. É bonito. Se faz sentido em ti, deixa aí. Vai fazer sentido em quem ouvir também. Isso que importa.

Meu Cheiro, tanto tempo que eu não te via cancionar. Danado de lume.

***

A gente não pode ficar sem telefone nessa situação de saúde do teu pai. Até seria bom ganhar um sossego da delegada, mas ela já disse que precisa te ouvir pessoalmente e, do jeito que o povo dela trabalha, é certo que sabem que tu tá aqui. Vão ligar loguinho. Pensando nisso, foi que devolvi o telefone pra tomada e tive que falar com a garota mais uma vez.

“O showbiz está em alas com o sumiço dele.” Sumido tá teu irmão. E Mariinha que morreu. Tu tá aqui, não tem nada de sumido. Eu bem pensei em dizer prela o que é biz pro povo daqui. Mas fiquei quieta.

Não tem graça.

Não tem graça.

***

Camisola do avesso é sinal estranho. Sempre foi. Tu não acredita porque é preciso ser mulher para entender. Na segunda vez que vi elazinha assim, tive um nó e me pus na novena. Não quero mais falar disso, por favor.

Aproveitando o por favor: eu muito acredito que tu vai resolver esse troço com essa moça. Já vi que o emaranhado é maior que o cesto e é quieta que eu vou ficar. Coisa tua resolve tu. Tu resolve. Resolve, viu? Resolve e só vem me dizer: tá resolvido. Eu sei que o engilhado é grande porque sei e porque é a segunda vez que tu dorme de camiseta virada.

Como sou boba de achar que tu ia ressuscitar o milho. Com essa montanha de lixo por dentro, nunca ia ter espaço pro milharal. Nossa Senhora me proteja!

***

Chegou mole, achando que comeu algo ruim na estrada. Mas a bem da verdade. A bem da verdade é que esse povo de ar-condicionado num aguenta aqui. Tinha uma jarra de maracujá na geladeira, mas achei melhor não oferecer. Tá mais pra suco que pra refresco.

Olhou tudo admirada. Cheia de coisa pra esconder. E eu tendo que ver isso.

Disse que em menos de uma semana faz a reportagem e vai embora. Perguntou se eu sabia qual era a previsão do tempo, porque conforme fosse ela mandava vir um num sei quem, da tevê não sei das quantas, pra gravar contigo. Deu vontade de dizer que a gente aqui é mais de perceber que de saber. Mas fiquei quieta.

Ai, tanta bestice. Veio perguntar como a cidade via a tua fama internacional. Aí num aguentei. Disse que a gente aqui não vê fama, não. Só vê você.

Tá te esperando na pousada. Toma o suco antes de ir. Quando tiver lá, pensa que eu tô cuidando da minha vida do lado de cá. Benzinho mesmo, do jeito que eu mereço.

***

Ave Maria! Foi e voltou? Vixe, rapidez.

***

Pensar que eu, mulher dessa idade, nunca rezei pra Santo Antônio. Nem menina. Enquanto as outras ficavam avoadas a semana inteira por conta do dia, eu me jogava em ajudar as irmãs na quermesse.

Num pensava nem em ter filho. E vim vindo assim. Ainda hoje num penso. Engraçado, né? Neta e filha de mãe parteira que num quer ter filho. Os meninos de Mariinha tinham nome e sobrenome desde que ela tinha cinco, seis anos. E tu acredita que quando ela contou pro teu irmão, ele concordou? Eu na lida com Andorinha, e ele lá do adubo: “Ó, vou fazer Beatriz e Bernardo com tua irmã!”. Ave Maria, homem besta.

Sei se é isso não, muito parto que vi. E não só via, não. Ajudava também. Tu lembra, né? Mãe fraquinha nem ia mais, mandava eu. Fiz um bocado. Quando viu a reforma do hospital, todo cheio de equipamento, aquela limpeza dura, pai me fez jurar que eu não ia quebrar a tradição de ajudar na luz.

Não é isso não: muito parto que vi. Acho que é porque eu tinha tu dizendo que eu era a tua poesia. Isso preenchia. Ave Maria, rimei sem querer.

Adoro esse teu riso travado.

É engraçado esses negócios de passado, né? Num dá para arrumar passado. Ou ele existiu ou só vai acontecer daqui um tempo.

***

Não me despreguei da nossa conversa de ontem. Fiquei macia na lembrança da gente menino, tu dizendo que eu era a poesia da tua música. Pensar que agora tu é que é a música da minha poesia.

Também te amo, meu Cheiro.

Fiquei olhando a história de cima e vi que amigo meu sempre foi um só. Tu mesmo. Amor, a mesma coisa: tu também.

Lembrei de teu irmão, do tamanho de uma azeitona, dizendo que o tipo de mulher dele era do tipo gordelinha, igual Mariinha. O amor deles também sempre foi um só, desde miudinhos, né?

Lembrei de mãezoca sentada na varanda, dizendo que num reclamava das pernas fracas, com os ossos parecendo uma renda, porque tinha muito amor por Nossa Senhora. Muito peso que carregou no lombo. Mandioca, lenha. Fiquei pensando nesses pesos que a gente carrega por aí. Um dia o corpo cobra o serviço. Eu num quero ficar igual mãe.

***

Às vezes, todo dia, acho que Mariinha vai chegar a qualquer momento. Ainda não desacostumei dela. Falei isso com a doutora lá. Ela disse que é normal e uma hora passa. Também tô um pouco assim contigo, achando que a qualquer momento tu vai embora. A qualquer momento. Momento. Momento. Tô com medo de momento.

***

Foto nada. Não quero saber. Está proibido jornalista na escola. Esse troço de focar ou desfocar a reportagem no trabalho que tu faz aqui é problema dela. Não vai ter foto dos meninos, nem da oficina, nem do quintal de notas. A exposição delezinhos por conta do assunto Mariinha foi um sofrimento e valeu daqui até o Apocalipse. Não vou mais expor eles de jeito nenhum. Se precisar, chamo a defensoria das crianças e dos adolescentes e eles vão me dar razão.

Tem mais: se dou entrada prela na escola, loguinho se firma. Até quando tu acha que eu vou aguentar essa barrigada sem falar nada? Até o dia que ela pedir preu ser madrinha? Até o dia que tu vai vir me dizer que vai voltar com ela pras bandas de lá porque não é homem de deixar mulher prenha? Até tu vir dizer que foi uma história sem importância e agora tá sem saber como proceder? Até tu convencer ela que a dona Araci pode resolver daquele jeito de Deus nos livre?

Até quando tu acha que eu vou ficar olhando tudo isso sem falar nada? Ou tu tá esperando que eu mesma toque ela daqui? Ou que eu mesma faça uma garrafada de erva-de-santa-maria pra tu levar prela? Já sei: tá esperando que eu me ponha na novena pra Todos os Santos te iluminar? Quantas vezes eu te falei pra resolver isso? Três semanas essa mulher aqui e eu quieta, esperando que tu venha me dizer alguma coisa. Cruz credo, valha-me Deus!

Tu sabe que eu não mereço ter a vida virada com isso. Nem teu pai. Passou o tempo todo perguntando de ti e eu dizendo que tava criando música, que tava empenhado com os meninos, que tava dando entrevista, que tava sei lá quê. Se tu não tá aqui por ele, eita que é melhor voltar pra detrás da cachoeira.

Olha, vou pro sarauzinho hoje, fazer o que Augusto me pediu: ler uns pedacinhos do livro. Vai ser bom ganhar beijo do povo, ficar com eles um pouco. Depois vou no velho, que é dia de injeção. Não volto não. Vou dormir por lá.

Perguntarem de ti, digo o quê?

Ai, credo!

Como eu sou besta de achar que tu ia trazer calmaria.

***

Tanto mato a gente passou nessa vida pra chegar nesse ponto de amor. Quase num acredito que tá virando pó.

Falando em mato, a arruda amarelou.

Nunca tinha visto arruda amarelar. Só tinha ouvido falar. Minha tia contava umas histórias de arruda amarelada. Que arrepio! Quase num acredito que tô dentro de um conto dela.

***

Ele é tudo isso que tu disse. Talvez até mais. Mas é quem tá aqui quando preciso. Sabe dar a mão. Veio no mundo pra isso. Até me acudiu com Andorinha. Bem no dia da luz, o doutor tava pro outro lado, teu pai tava ruim e a gente teve que fazer tudo sozinho.

Tu tá direto pra lá e eu quieta. Vou ali e tu abre falação?

Vou de novo hoje. Estamos separando pedaços de Bandeira e de Adélia pruma edição especial do sarau.

***

Num fazia, mas agora faço.

Doeu não, Cheiro.

Num fazia, mas agora faço, ué.

Eita desconfiança. Eu não te pergunto onde tu aprendeu nada. Ninguém me ensinou nada, não. Foi sim, primeira vez. Primeira e segunda, né?

Hein? Num ouvi. Pergunta aqui mais perto.

Bom. Bom sim.

***

Meu Senhor. Espírito Santo. Mãe da natureza imensa do mundo, minha Nossa Senhora. O meu amor, o meu amor, o meu amor. Cuida dele, minha Nossa Senhora. Cuida de mim, mãe do céu. Protege o meu amor. Eu não quero outro homem, como a dona Araci disse que ia aparecer na minha vida. Isso é feitiçaria abominável aos teus olhos, Senhor Deus! Me perdoa, me perdoa, me perdoa. Olha minha lágrima, água gorda do meu olho, minha dor. Sela minha união com o meu Cheiro, mainha. Cuida de mim, cuida de mim, cuida de mim. Se eu pequei, me perdoa minha mãe. Não me castiga assim. Não me castiga. Não me castiga, mãe! Ai, meu Deus do céu, o que vai ser de mim?

***

Num foi nem por querer que eu olhei no fundo do olho dele e ele baixou a cabeça. Disse que precisava falar contigo. Foi a coisa mais estranha, de toda a minha vida, ouvir do padre que tu podia passar lá na quarta-feira. Cá tô eu, besta, dando recado que tu não vai procurar.

Peraí. Ave, vixe! Tu pediu audiência com ele! Tu pediu audiência com o padre que tu sempre aporrinhou? Tu vai na igreja falar com ele? Na igreja que tu sempre fez questão de passar a quilômetros, fazendo discurso ateu?

Olha, tu me responde!

Eu sabia tanto que isso ia acabar mal pro meu lado, mas não a esse ponto.

Nunca achei que ia encontrar tristeza maior no mundo que a tua falta. Depois achei que tristeza maior não ia ter do que a morte da minha irmã. Mas nenhuma dessas tristezas é tão doída como essa que eu tô diante de tu, pai.

Foi muito rápido que o manto da Virgem Maria te pegou.

Eita que vou te dizer um troço. Olha, eu tô falando contigo. Tu sabe pra que serve maternidade? Eu vou te dizer: é pra desigualar homem, mulher. É pra elevar a mulher ao patamar de santa e ela nunca mais voltar. Igualdade não existe! Nunca vai existir. Não adianta lutar. Feminismo nasceu fodido pela Virgem Maria. Enquanto ela estiver entranhada na nossa cultura, não vai ter igualdade. A mulher recebe o filho e um manto de santidade, no que todas as outras em volta viram putas. E agora eu, que nunca quis filho para não me desigualar de ti, para não virar santa e poder continuar vivendo a força do teu amor, agora vou ser nada diante do tudo dessa aí. Vou ser a puta. Se é que já não sou. Eu, que sempre te amei com tudo de grande, não posso fazer nem um miúdo diante disso. Quando tu foi embora, eu podia te esperar. Mas agora não posso fazer nada porque eu não tenho como lutar com Nossa Senhora. Ela é forte de pegar ateu feito tu. Já pegou! Feliz garota de branco, santificada, repleta de flor, braço dado contigo e tu com ar de quem fez a coisa certa. Porque todo casamento com grávida já nasceu justificado.

E toda desconfiança para puta é pouca! Foi eu realizar uma vontade tua, uma vontade antiga, fui realizar pra a gente crescer em intimidade, e tu vem me encher de pergunta sem pé nem cabeça. Pergunta de homem sujo, que não sabe amar.

Tô louca, sim. Tô louca. Aproveita essa desculpa e vai cuidar da tua santa. Vai enganar ela. Vai fingir integridade. Integridade não é isso que tu vai fazer não, viu? O nome disso é mentira.

Vai embora mesmo. Vai sim. Vai falar com o padre. Vai se casar. Mas não aqui no meu quintal. Vai se casar no quinto dos infernos!

Ouviu?

Vai pro inferno!

***

Dona Araci disse que esse é o ano de Xangô. Ele há de me fazer justiça.

***

Tem um balde de roupa tua lá atrás. O molho deve ter virado lodo. Tu desculpa, mas não consegui nem passar perto.

Aquelas caixas lá em cima tu pega quando puder. Não atrapalham em nada.

Leva a rede. Deve estar fazendo falta.

Sempre quis ela dentro de casa. Agora que não tem ninguém para achar ruim, vou deixar ela aí. Ela adora. Eu também. Sai e volta na hora que quer. E não vai entrando, não. Só entra com permissão. Para na porta e eu digo: entra, Andorinha! Né, minha querida? Os bezerros nunca passaram da varanda. Família toda respeitosa.

Por agora não tenho nada para conversar, não.

***

Deu gosto a apresentação dos meninos. Muito obrigada, viu? Teu trabalho com eles ganha ponto no céu.

Estamos bem. Obrigada.

***

Posso te fazer uma pergunta?

Desde quando tu tá escondendo o teu irmão no porão?
Então, desde quando tu sabe que teu irmão está escondido no porão da casa do teu pai?

Também não é isso?

Então, desde quando tu e teu pai são cúmplices da covardia daquele besta?

Aqui não é lugar para isso? Então, onde é o lugar? Quero saber: onde é o lugar da verdade?

Eu tô calma. Mas vou ficar bem nervosa se tu não começar a falar agora.

Eu tô falando baixo. Os meninos não vão ouvir, não.

Aliás, é até bom que eles ouçam. É bom que a escola inteira ouça o que tu tem para dizer, porque não é só para mim que tu tem que explicar isso, não. É para nós todos. E já passou da hora deles se decepcionarem contigo. Passou da hora de decompor esse endeusamento todo. Deus de nada nenhuma.

***

Foi a coisa mais estranha, de toda a minha vida, ouvir da delegada o que eu sempre disse prela e praquela corja de brucutu: que Mariinha fez tudo sozinha e que a única culpa do teu irmão foi ter sumido um mês antes do casório. “Ele se pôs no porão a pensar na vida e quando viu o mal já tinha tomado conta”, foi o que teu pai disse preles. Não bastasse o castigo de ter ficado doente por engolir a verdade, vai ter que responder por cumplicidade de não sei quê. Perguntei se tu ia ter que responder por isso também, ela disse que não.

É tua fã.

Eu vou te perdoar, sim. Mas não é agora, não. Preciso de um tempo para me desintoxicar.

Teu pai? Nasceu perdoado.

Teu irmão? Aquele besta… Esse vai ficar por conta de Deus. A vida vai se encarregar de dissolver a burrice dele. Vou rezar pra isso.

Num espero nada de ti, não. Só que tu use essa tua inteligência pra deixar tudo organizado. Principalmente a cabeça dos meninos. E o sentimento das famílias. E que tu arrume um advogado de lá pra defender teu pai aqui. O melhor. O mais caro.

Que já me perdoou o quê? Eu lá preciso do teu perdão? Perdão por ter feito o quê? Ave Maria, que te põe no meu lugar e vai ver que cada palavra minha de sentimento tava de acordo com a razão. Eu, hein? É cada uma!

***

Fiquei muito feliz de saber que eles vão se casar. Sempre vi amor neles dois. Agora: que padre fora da estação, hein? Não querer realizar a cerimônia. Não sei se é isso não, de eles serem velhos. Acho que está mais para as místicas de dona Araci que o padre não admite. E para o assunto do processo que teu pai vai ter que responder. Pior é que a benção da igreja é importante pro velho, né?

Eu ia falar isso agora. De trazer um padre de fora.

Vixe, que a rima deslizou.

Olha aqui, o convite. Chamaram eu e Andorinha. Coisa linda. Eu ia adorar ir com a minha vaca pra festa. E ela ia adorar muito mais, né? Ama gente. Até me pus a pensar num traje prela. Mas tu entende que eu não vou, né? Não vou conseguir te ver lá. Com. Com ela, né?

Como assim, não tá mais aqui? Voltou para casa?

Ave vixe, num acredito.

***

Ele só veio se despedir. Augusto num é e nunca foi esse assombro que tu pinta. Achei bonito ele vir falar, contar dos planos. É tudo uma bestice de dois abestalhados. Estão vivendo agora o que não tiveram coragem de viver naquela época, quando tu chamou para ir. Estão começando agora o que tu começou há trezentas luas e hoje tá finalizando. E vou te dizer: aposto que vai dar certo. Augusto e teu irmão na cidade grande vão ser como essas duplas de filme preto e branco que se atrapalham o tempo inteiro, mas no final se saem bem.

O que tua rede tá fazendo aqui? Desde quando te dei essa ousadia de trazer rede pra cá?

***

Primeira gravidez é assim mesmo, normal perder. Dá até em bicho. Tua sorte impressiona. Como as coisas se ajeitam na tua vida, né? Tem alguém do outro lado cuidando de ti. Só pode. Tudo isso em Lua Minguante. Nada volta em Lua Minguante. Pode sossegar.

Muito não, mas fiquei com pena da moça. Essas coisas mexem com qualquer mulher. É duro viver. É duro ver.

Olha, se tu tivesse dito que o padre te chamou para falar da confissão do teu pai, ao invés de me deixar pensar que tu ia na igreja marcar casamento, as coisas tinham sido bem mais simples pro nosso lado. Esse teu jeito ruim de não falar nada e deixar que tudo se arrume por si só é de lascar, viu? Nunca me acostumei e nunca vou me acostumar com isso.

Sabe que tu chegou aqui na virada da Lua Nova pra Crescente?

Te olhando assim, agora, nem parece que tivemos buracos de longidão.

Bora lá salgar o queijo?

O que é isso, Cheiro? Um anel!

Janaína Didio Michalski

É jornalista, escritora e produtora cultural. Publicou os livros A princesa acelerada (2016), Céu de fundo do mar e outras memórias (2015) e Onde o sol não alcança (2009). Entre outras participações em projetos e elaboração de ações sociais, destaca-se a articulação do Ocupa Lapa, no Rio de Janeiro (RJ), que reuniu artistas de diferentes áreas para apresentações públicas nos anos de 2013 e 2014.

Rascunho