Tudo depende de quem escreve

Ignácio de Loyola Brandão: “Jamais dê bola para o hype em cima dos figurões do momento, pois quem é muito hoje, amanhã está esquecido”
Ignácio de Loyola Brandão, que será o curador do Prêmio Candango de Literatura Foto: Carla Formanek
01/05/2021

O norte-americano William Faulkner, autor de O som e a fúria (1929), escrevia bêbado cavalgando por sua fazenda. Se a lenda procede, não resta ao prosador muitas desculpas para não produzir — seja surfando no teto de um trem em alta velocidade ou em um avião, nas nuvens. É essa a teoria do octogenário Ignácio de Loyola Brandão, que atualmente trabalha no romance Por que Deus não diz claramente o que quer?. Um dos mais expressivos e criativos escritores brasileiros, o paulista de Araraquara é mais conhecido por sua trilogia distópica, composta por Zero (1975), Não verás país nenhum (1981) e Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018). Bem-humorado e irreverente, Ignácio começou sua carreira ainda criança, ao escrever uma versão macabra de Branca de Neve, e segue produzindo ficção até hoje. Ocupante da Cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras (ABL), o experiente ficcionista deixa um conselho aos que estão começando: “Se nada vem, vá dormir, veja um filme, encha a cara, trepe, viva a vida”. E jamais dê bola para o hype em cima dos figurões do momento, pois “quem é muito hoje, amanhã está esquecido”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Tenho certeza de que foi no dia em que fiz uma redação em que Branca de Neve, obrigada pelos anões a colher cogumelos no bosque, e odiando os anões, porque se achava escrava, fez uma sopa de cogumelos envenenados. Os anões todos morreram, a classe adorou, todo mundo olhou para mim, me achei. Depois espalharam no recreio que eu tinha matado os anões. Todos morreram de rir. Os anões não estavam em alta. Uma menina de nome Itajara olhou para mim, começamos a namorar, ou seja, eu pegava na mão dela ao sair da escola. Naquela manhã, a professora Lourdes disse: “Quando o final de uma história espanta ou surpreende, é inesperado, ela foi bem escrita”. Primeira técnica literária que aprendi. Eu tinha oito anos. Tempos depois, minha professora me contou esta história. Ela viveu até o ano anterior à minha entrada na ABL. Uma pena!

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Escrever descalço, deixar a mesa limpa à minha volta, deixar um bloco novinho à mão, ter um litro de água com gás natural, fechar todos armários do escritório, esvaziar o cesto de lixo, ter um litro de Lemoncello gelado ao lado. Ter à mão as cadernetas de apontamentos que espero usar. Ouvir desde músicas clássicas até bregas, menos os bregas sertanejos horrorosos tenebrosos.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Jornais pela manhã. Ler um trecho de Deitada na escuridão, romance de William Styron, que me prepara o espírito para cenas dramáticas. Reler um poema do paraense Ruy Guilherme Barata de que gosto muito:

Quem pode medir um homem?
Quem pode um homem julgar?
um homem é terra de sonhos
Sonho é mundo a decifrar.
Naveguei ontem no vento hoje cavalgo no mar

Leio alguma coisa de Helena Kolody, uma fera. Como se fosse um mantra ou uma oração, digo o poema de Marina Colasanti:

Imóvel no retrato
Ainda assim a serpente desliza
pronta ao bote,
cabeça erguida, ameaça
que permite à moça o despudor do decote
e o tênue sorriso

Tudo isso está impresso e emoldurado em quadrinhos pelo meu estúdio.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Os contos de Cu é lindo, do piauiense Wellington Soares.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Qualquer uma. Se você tem o assunto, os personagens, sabe de onde partir e onde vai chegar, tem certeza de quais palavras vai necessitar: tem tudo à mão. Vai escrever até pendurado em uma forca de ponta-cabeça.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Se o livro é bom, você lê na praia, ao sol, na caatinga, fazendo surfe no teto de um trem a toda velocidade, num carro, ônibus, avião, vagoneta. Só não dá para ler de bicicleta, debaixo do chuveiro, transando. Ou na garupa de moto, ou lombo de burro. Se bem que as lendas dizem que Faulkner escrevia bêbado cavalgando por Rowan Oak, fazenda dele.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele em que fiz 20 linhas das quais jamais vou me arrepender daqui a 20, 30 ou 50 anos.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Perder a noção do tempo. Sentar para escrever e só se dar conta de quando for noite ou dia seguinte.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Outro escritor com inveja. Um crítico burro. Um leitor burro.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A mania que alguns (alguns? Quem?) de citar fulano de tal como o maior escritor brasileiro da atualidade, o que nos obriga a andar com a fita métrica na mão, para medir a altura dos maiores. De resto são divertidas as fofocas, as maldades, as filhadaputices, a ironia, os ciúmes. Mas tudo isso nada tem a ver com a escrita, esta é que dá a palavra final. Quem é muito hoje, amanhã está esquecido.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Ricardo Guilherme Dicke, Luiz Ruffato, Menalton Braff, Arriete Vilela, Sidney Rocha, Chico Lopes (A ponte do nevoeiro).

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Vidas secas, do Graciliano Ramos. Descartável: qualquer livro que ensine a ser feliz, a ficar milionário, a ser empreendedor, a se tornar sedutor.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Transformar o livro em panfleto, em politicagem, em partidarismo.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não há assunto que não possa entrar em literatura. Tudo depende de quem escreve.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Um velho elevador, no qual o ascensorista era um sujeito alquebrado, puto com tudo, vociferante, cuspindo, ameaçando largar o elevador no fundo do poço. Dali saiu meu conto Cabeças de segunda-feira.

• Quando a inspiração não vem…
Você é quem faz a inspiração, diziam Lourdes Prado e Ruth Segnini, professoras do primário. Olhando, observando, escutando, perguntando, anotando, alerta. Agora, se nada vem, vá dormir, veja um filme, encha a cara, trepe, viva a vida. E se não vem, não vem mesmo. Para uns dura a vida inteira e não chega. Para outros chega, mas seria melhor que não tivesse chegado.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Marina Colasanti.

• O que é um bom leitor?
O que lê por prazer.

• O que te dá medo?
Terminar a vida como um sem-teto. Ter diabetes e ter de cortar perna ou braço. Viver muito e ver todos morrendo ao meu redor.

• O que te faz feliz?
Viver do meu jeito, escrever, viajar, estar com Marcia, jantar fora, tomar vinho, bagaceira, comer bacalhau em Lisboa, ouvir a canção Sabiá, ver e rever Oito e meio, de Fellini, A grande beleza, de Sorrentino, ver escritores novos surgindo, conquistando seu público, ver alguém no metrô lendo um livro meu, contemplar a paisagem violentamente verde e preservada em Cangalha, no sul de Minas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Sempre: vou acabar o que estou começando? Passo por isto neste momento, enquanto escrevo o romance: Por que Deus não diz claramente o que quer? (frase que tirei de Simone de Beauvoir).

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Fazer a frase certa, certeira, justa. Usar menos palavras. Sei que uso demais, me chateia.

• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma. Ela está aí. Uns usam para divertir, outros para querer mudar o mundo. Há quem queira fazer revolução, colocar armas nas mãos. A literatura segue e surpreende-nos ver o que ela produz, é capaz de fazer, mudar ou arrebentar cabeça, melhorar nossa vida. O que sabemos? Tem gente que busca a imortalidade. Fazer o quê?

• Qual o limite da ficção?
Nenhum. Se houvesse, Kafka não teria escrito A metamorfose. García Márquez, Cem anos de solidão. Eu não teria escrito Não verá país nenhum e Desta terra nada vai sobrar. Joyce, Ulysses. Swift não teria Gulliver. Machado de Assis, o Quincas Borba. E assim a literatura inteira, universal, galáctica.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ao padeiro da esquina, para que comesse um pão na chapa com média de café com leite e assim conhecesse logo o que é o Brasil.

• O que você espera da eternidade?
Requiescat in pace.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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