Para se divertir

Adriana Lunardi: “Esse inimigo [o bloqueio] sabe que, para um escritor, o sofrimento de não escrever é maior que o de escrever”
Adriana Lunardi, autora de “A vendedora de fósforos” Foto: Elisa Mendes
01/06/2025

A fuga de uma carreira como engenheira ambiental fez Adriana Lunardi se refugiar na escrita, tornando-se roteirista de TV e autora de ficção. Nascida em Xaxim, uma pequena cidade do Oeste de Santa Catarina, morou em Porto Alegre e São Paulo, passou uma temporada no exterior e vive atualmente no Rio de Janeiro. “Entendi que se quisesse escrever de verdade teria de retornar e me estabelecer no Brasil”, diz.

Lunardi fez sua estreia na literatura nos anos 1990, com As meninas da Torre Helsinque (Mercado Aberto/PMPA). Em 2002, lançou Vésperas, uma seleção de contos que narram os últimos dias na vida de escritoras como Virginia Woolf, Clarice Lispector, Dorothy Parker e Katherine Mansfield. A obra foi publicada na França, Argentina, Portugal e Croácia.

Seu primeiro romance, Corpo estranho, veio quatro anos depois. Nele, a escritora retrata o processo de luto de uma ilustradora botânica. Em 2012, lançou o romance A vendedora de fósforos. Também é coautora, em parceria com Max Mallmann, da série de TV Ilha de ferro, da Rede Globo. Em 2024, lançou a coletânea de histórias curtas Contos céticos, em que propõe uma ode à literatura e suas expansões artísticas.

“A concentração ao criar e a ferocidade na reescrita” são suas maiores recompensas no processo criativo. E para ela, “o sofrimento de não escrever é maior que o de escrever”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Não foi de estalo. É mais um percurso por episódios. O primeiro aconteceu logo que entrei no curso de Engenharia Florestal. Ao final do bimestre ficou claro que, em vez do cálculo, eu devia me concentrar na escrita. Assim, mudei de faculdade, interrompi um mestrado e passei um par de anos fugindo. Depois de uma estada no exterior, entendi que se quisesse escrever de verdade, teria de retornar e me estabelecer no Brasil.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Ninguém toca na bagunça da minha escrivaninha. Uso cadernetas de mola estudantis, bem baratas, para anotações e posts-it com frases e recados grudados no monitor. Confio em serendipidade. Quando um trecho emperra, faço uma pausa para ler poesia.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Uma rodada pelas notícias ao acordar, ficção antes de dormir.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
O presidente Lula não precisa de recomendações, menos ainda se feitas por mim. Porém (e para entrar na brincadeira), aposto que ele se divertiria ao ler os Dramas históricos, de Shakespeare, e poderia se inspirar com Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Tempo, silêncio, recolhimento.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Privacidade e uma lâmpada de cabeceira.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Dois dias depois, ainda estou de pijama, sem banho e sem lembrar quando foi a minha última refeição decente.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A concentração ao criar e a ferocidade na reescrita.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Não creio que seja o mesmo para todos. De minha parte, tenho um inimigo imaginário musculoso, que me amordaça e me joga no escuro por longos períodos. Esses bloqueios poderiam ser encarados com naturalidade, mas esse inimigo sabe que, para um escritor, o sofrimento de não escrever é maior que o de escrever.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Por temperamento e formação, sou uma pessoa reservada, observadora e meio ácida. Um tipo para quem (e com quem) é penoso o convívio. Vou a poucos lançamentos e feiras, a não ser na hora de divulgar meus livros. Prefiro intimidade e relações construídas. Posso afirmar, contudo, que o meio literário, mesmo com suas maldades, é um salão digno, elegante e ingênuo se comparado ao da televisão.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Homero (sério), Myriam Campello e os diários de Allan Sieber.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Só os imprescindíveis: Sonetos, de Shakespeare; Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust; os contos e os cinco últimos romances de Machado de Assis; tudo de Clarice Lispector e de Virginia Woolf.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O mau uso do idioma pode arruinar uma boa história.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nunca? É muito tempo para decidir agora.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
A sala de espera de uma clínica de quimioterapia.

• Quando a inspiração não vem…
É quando o ofício inicia.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Max Mallmann.

• O que é um bom leitor?
O iniciado, isto é, aquele que conhece o céu de cada gênero literário e compreende que há um tempo para a tradição e um tempo para a ruptura, que um dia vai de clássico e noutro de contemporâneo. É sobretudo aquele que cultiva um gosto pessoal, independentemente da opinião alheia. Ele pode ser guloso, voraz ou viciado. Segundo as estatísticas, ele é ela.

• O que te dá medo?
Tenho fobia de multidão e vertigem de altura.

• O que te faz feliz?
Espumante. Duas taças ou duas garrafas, de acordo com a felicidade ambicionada.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Dúvidas de gramática, estilo e ego me assaltam o tempo inteiro. Uma certeza: interromper o trabalho quando a busca pela palavra certa se torna destrutiva.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
A preocupação tem o efeito da criptonita. Só escrevo para me divertir (às vezes, para não desaparecer).

• A literatura tem alguma obrigação?
Não. Se há obrigação, não é literatura.

• Qual o limite da ficção?
Todo limite é um artifício.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
No Brasil, eu o levaria para visitar o túmulo de Clarice Lispector; em Genebra, o de Jorge Luis Borges; em Paris, o de Proust; e no Reino Unido, começaríamos pela margem do Ouse.

• O que você espera da eternidade?
Ela não me espera, então estamos quites.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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