Ouvir o abismo

Marco Lucchesi: "Na subjetividade habita a nossa liderança, ainda que precária e intangível"
Marco Lucchesi, autor de “O bibliotecário do imperador”
27/11/2018

Marco Lucchesi nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1963, e atualmente preside a Academia Brasileira de Letras (ABL). Escritor, poeta, professor e tradutor, graduou-se em História pela Universidade Federal Fluminense, obteve os títulos de mestre e doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e fez pós-doutorado em Filosofia da Renascença na Universidade de Colônia, na Alemanha. É autor, entre outros, dos romances O bibliotecário do imperador (2013) e O dom do crime (2010), dos poemas de Rebis (2017) e dos ensaios de O carteiro imaterial (2016). Como tradutor, verteu para o português obras dos italianos Primo Levi e Umberto Eco, do persa Rûmî, do russo Khlebnikov e do tcheco Reiner Maria Rilke. Além de professor titular de Literatura Comparada da UFRJ, é Doutor Honoris Causa pela Universidade Tibiscus, da Romênia, e palestrou em diversas universidades ao redor do mundo. Seus livros foram traduzidos para vários idiomas, entre eles o inglês, o polonês, o árabe, o alemão, o húngaro e o sueco.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Desde muito cedo, por instinto inicialmente. Pequeno diário em torno de seis anos de idade. A vocação propriamente? Aos doze, quando devorava todos os livros possíveis. Havia descoberto o Aleph, embora não fosse capaz de nomeá-lo outrora. Escrevi coisas sem valor. Aos dezesseis anos, a tradução de Juan de la Cruz.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Todas e nenhuma. A obsessão é o aspecto congenial do diálogo possível. Leitura transfinita, como os números de Cantor. Um desejo de proximidade. Periélio e afélio de uma alteridade especular. Sou-te. És-me.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Aceito o que meus olhos medem. A curiosidade e a fome pantagruélica. Tudo! Livros muito antigos, incunábulos, as redes sociais, o jornal, o panfleto. Tudo, menos a famosa bula de remédio. As frases de Gentileza sob o viaduto do Rio, os grafites urbanos.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Michel Temer, qual seria?
Não recomendaria nada. Ou talvez sim. Indico algum livro se houver um grama de empatia. No entanto, etc. etc.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Preciso de silêncio e de abandono. Como um exílio momentâneo. Ouvir o abismo, depois da longa pulsação da rua e do universo. Preciso ver estrelas, com o meu telescópio. Preciso ficar dias a fio sem palavra.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Temperatura e pressão variável. Em qualquer parte do globo. Entre a multidão e o vazio. A circunstância é sempre. Um eterno presente. Um agora absoluto e voraz.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um verso. Uma página. Ou sem um verso ou página, mas em movimento secreto. Quando não trabalho, deixo-me trabalhar. Debelada a nuvem de angústia, temos um céu límpido e claro. Ou talvez um imenso temporal.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O princípio de incerteza burlando o projeto inicial. A matéria que se faz energia. A energia que se faz matéria. O jogo de dados e a sorte. O que havia pensado e o que sou obrigado a fazer. O mapa e a realidade, inconjugáveis.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A espessura do ego.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
As relações públicas, o marketing diuturno, a vida de plástico, a postura defensiva, a barricada.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Aquele que acredita na sua vocação essencial. Na sua voz profunda. Nada é mais importante. A batida do coração e a métrica de seu teatro de sombras. Feridas de luz, imprecisa.

• Um livro imprescindível e um descartável.
A linha é tênue. Aprende-se com livros de escassa qualidade. Mesmo o descartável, guarda para mim algum interesse. Mas sem perder no horizonte a ordem qualitativa irremediável.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Às vezes um desenho apriorístico imutável, que não cresce ou se desestabiliza à medida que avança. Quando não respeita a inteligência do processo. Quando não percebe a metamorfose da ideia inicial, o plano piloto, e a mudança de curso, as novas camadas do texto e suas ondulações.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Não há assunto que não possa ser considerado. Depende do modo severo e delicado, irônico ou paratextual.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Das ruínas de Beirute. De uma visita a Canudos. Da visita em Tóquio ao poeta Tanikawa Shuntarô, na cerimônia do chá.

• Quando a inspiração não vem…
Recorro ao piano, horas e horas tocando. Ou simplesmente me abandono ao silêncio ao ponto de afogar-me. Horas penosas. Descidas profundas. E de repente um princípio obsessivo de aurora. Nietzschiana.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Todos os fantasmas vivos que me encantam, aterram e desafiam. Penso na máquina do tempo da física, entre Mario Novello e Carlo Rovelli. Gostaria de conhecer os escritores que ainda não nasceram. Um físico pergunta: por que não nos lembramos do futuro?

• O que é um bom leitor?
Quem mais trabalha com a “máquina preguiçosa” do texto literário, aquele que entende que um texto deve prestar homenagem ao leitor.

• O que te dá medo?
Quando creio não ter medo, quando me vejo em situações conflagradas dentro ou fora do Brasil. Atualmente a iminência do protofascismo. Nesse caso medo e energia para resistir.

• O que te faz feliz?
Quando “alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”, como disse Machado de Assis. Os livros nos presídios e o contato com eles. A leitura partilhada em unidades socioeducativas.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida ultrapassa a certeza. Sou filho espiritual da física de Heisenberg. Tudo me é incerto. Sei onde está mas não sei para onde vai. Ou então sei para onde vai, mas não sei onde está.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
O sentimento-ideia. O sentido das remissões. O contato com o abismo, ainda que na longa superfície. A adesão ao processo. A entrega radical.

• A literatura tem alguma obrigação?
Tem a obrigação de não se obrigar a coisa alguma. O que não é pouco. E requer vigilância.

• Qual o limite da ficção?
Também aqui entramos numa terra sem fronteira. Tudo é possível. Só a análise a posteriori pode determinar essa capacidade.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Faria como o pássaro Simurgh da tradição persa. Estaríamos diante de uma zona espelhada. Na subjetividade habita a nossa liderança, ainda que precária e intangível.

• O que você espera da eternidade?
Aquilo que não sei, entre o volume do nada e a bolha de espuma da esperança.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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