Em busca de se perder

Rosiska Darcy de Oliveira: "Tenho sempre em mente que o que escrevo é um pequeno fragmento que deposito nesse gigantesco vitral que é a criação humana"
Rosiska Darcy de Oliveira, autora de “Liberdade”
01/10/2021

A escritora e ensaísta Rosiska Darcy de Oliveira brincou com palavras e nuvens desde que aprendeu a escrever, o que foi o primeiro passo para descobrir o “milagre alquímico que é a literatura”, conforme a ocupante da Cadeira 10 da Academia Brasileira de Letras (ABL) define essa arte. Viajante incansável, sempre movida pela emoção e em busca de uma indicação para se perder, a carioca já praticou seu texto em vários lugares do mundo — da Suíça ao Nilo. Nesse jogo com a escrita, a busca da autora dos ensaios de Liberdade (2021), das crônicas de Pássaro louco (2016) e das memórias de Chão de terra (2010), entre outros livros, é pela “liberdade absoluta de criação”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Quando aprendi a escrever. Brinquei muito com palavras e com nuvens.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Cortar palavras. Marguerite Yourcenar fazia um jogo com ela mesma, que aprendi e jogo comigo. Penso um número e corto esse número de palavras. Quando perco o jogo, não consigo mais cortar, é que o texto está pronto.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Os jornais, quando acordo. Antes de dormir, algum trecho de um livro que tenha me seduzido, seja na primeira leitura, seja nas incontáveis vezes que sou capaz de reler as obras preferidas.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
A situação é absurda porque eu não dirigiria a palavra a esse homem e ele não saberia o que é um livro.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não creio que exista uma circunstância ideal. Já escrevi muitos anos em agendas, quando não podia sobrecarregar a bagagem. Fui, até a pandemia, uma viajante incansável. Muitos desses escritos estão presentes em meus livros. Pertenço à grei dos que sempre buscaram uma indicação para se perder, que acreditaram que pisar muitos chãos é conviver com o mistério do outro que revela também o nosso. Fui exilada na Suíça, onde escrevi dois livros em francês — nada ideal como circunstância. Escrevi no Nilo, na Guiné, em Xian, em Veneza e muito na minha casa, no Rio. Sempre movida por alguma emoção.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
À noite, na cama, em silêncio absoluto, e uma boa e única luz incidindo sobre o que estou lendo. E um lápis na mão.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando passo para o computador ou uma folha qualquer de papel uma ideia que sei que vai ganhar vida própria e conviver comigo por muito tempo, até a publicação. Quando essa ideia acha seu caminho, vai tomando a forma de um texto e começa a me contar uma história que eu não conhecia, esse foi um dia produtivo.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A liberdade absoluta da criação. O poder de fazer e desfazer que só o destino tem e de que, na chamada vida real, somos apenas vítimas. Talvez uma vocação divina. Ou o poder do que Vargas Llosa chama a verdade das mentiras que nos faz viver muitas vidas, nós, os pobres mortais, que só temos uma.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Alguém sentado no ombro.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
O elogio fácil, a bajulação na caça às honrarias.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Carmen L. Oliveira. Flores raras e banalíssimas e Trilhos e quintais são duas joias. Considero Carmen uma brilhante escritora de minha geração.

• Um livro imprescindível e um descartável.
A obra em negro, de Marguerite Yourcenar, para mim é imprescindível. Dos descartáveis, descartei, não me lembro.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O lugar comum, a frase feita ou, no extremo oposto, a originalidade à tout prix.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nenhum. Nenhum assunto é impermeável ao milagre alquímico que é a literatura.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Uma tabanca em Sedengal, na selva da Guiné Bissau, onde à luz do fogo, ouvindo sons desconhecidos de bichos ao longe, sob um céu de diamantes, comi uma galinha no piri-piri. Inesquecível.

• Quando a inspiração não vem…
É como um gozo que escapa. Frustração. E uma certa melancolia. Não adianta insistir. Em algum momento ela volta.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Jorge Amado, para agradecer as alegrias que me deu e ter mudado a minha vida, me apresentado a um Brasil trágico e maravilhoso que eu não conhecia. E para dizer-lhe que se eu fosse bailarina teria dançado A morte e a morte de Quincas Berro D’água.

• O que é um bom leitor?
O interlocutor que se abandona à leitura, se deixa fecundar e recria o texto dentro de si quando o faz seu. O que faz do autor um membro de sua família secreta. Eu tenho uma família secreta, autoras, autores e personagens, cujo sangue invisível me corre nas veias. Que escolhi para conviver comigo ao longo da vida inteira. Apresentei-os aos acadêmicos no meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Eles são coautores do que escrevi. Fui uma boa leitora desses escritores. Gostaria que algum leitor me sentisse assim.

• O que te dá medo?
A dor. Mais do que a morte, temo a crueldade de que a vida é capaz.

• O que te faz feliz?
A primeira e a última frase de um livro novo. E, sempre, o amor.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A certeza de que escrever é o que me faz feliz. A dúvida é se consigo fazer o leitor feliz.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Tenho sempre em mente que o que escrevo é um pequeno fragmento que deposito nesse gigantesco vitral que é a criação humana. Gostaria que ele fosse tão luminoso quanto eu seja capaz.

• A literatura tem alguma obrigação?
Não, a arte não tem nenhuma obrigação. A liberdade é o ar que ela respira. Só deve fidelidade à própria autora ou autor. Desenvolvi esse tema em um ensaio sobre Clarice Lispector no meu último livro, Liberdade. Clarice, a meu ver, levou essa liberdade ao seu extremo possível. Vem daí o seu gênio.

• Qual o limite da ficção?
A clausura da linguagem, onde o imaginário, que é infinito, não encontra tradução.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Levaria a minha casa. Diria que conversasse comigo mesma e explicaria que nunca tive um líder, nunca fui de um partido, de um clube e não tenho uma religião. Admiro pessoas, sofro influências, como todo mundo, quase sempre de artistas, mas sempre liderei a minha própria vida e escolhas. Desconfio de santos e profetas. Nem comento os políticos.

• O que você espera da eternidade?
Nada. Ou talvez, se for desmentida, ser enfim cúmplice do seu mistério.

Liberdade
Rosiska Darcy de Oliveira
Rocco
224 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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