Até o fim, apesar de tudo

Francisco Azevedo: Estou aberto a todos os assuntos. Se tenho algo a dizer, tudo pode ser abordado.
Francisco Azevedo, autor de “A roupa do corpo”
01/03/2022

Aos 71 anos, o escritor e diplomata Francisco Azevedo é feliz por ainda se sentir saudável, praticar caminhadas em dias de temperatura amena e poder aprender coisas novas. O carioca parece não ter sofrido com a ansiedade de praticar o gênero mais abrangente da ficção muito cedo: lançou seu primeiro romance, O arroz de Palma, em 2006 — com mais de 50 anos e experiente na produção de roteiros para cinema e peças teatrais. A partir daí, publicou narrativas de fôlego regularmente e fez incursões pela poesia. A roupa do corpo (2020), Os novos moradores (2017) e Doce Gabito (2012) são os outros romances de um autor que, mesmo que às vezes se pegue duvidando da importância do que faz, acredita que deve “continuar e ir até o fim, apesar de tudo”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Bem tarde, embora desde cedo gostasse de escrever. Aos 17 anos, ganhei uma Enciclopédia Barsa em concurso promovido pela Organização dos Estados Americanos (OEA). Aos 18, dividi o primeiro lugar, com José Castello, no concurso promovido pelo antigo Jornal dos Sports e o Experiment in International Living. Éramos 1.465 candidatos, e o prêmio foi uma viagem aos Estados Unidos com hospedagem em casa de família americana por um mês. Depois, me preparei para o Instituto Rio Branco e me tornei diplomata. Escrevia relatórios, ofícios, notas, teses, memorandos, etc. Publiquei um livro de poesia, que ganhou um prefácio do Antônio Houaiss. Eu mesmo paguei a edição. Ao sair da carreira, me dediquei a escrever roteiros para cinema e peças teatrais, o que me deu fôlego e disciplina. Só em 2006, morando em Buenos Aires, me aventurei a escrever meu primeiro romance: O arroz de Palma. Outros romances vieram e me tornei escritor, sempre publicado pela Record.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
As relações familiares e afetivas, nas quais estão a base de todo conflito. E também como essas relações evoluem com o tempo, para o bem ou para o mal.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Notícias. Quase sempre me revolto ou me deprimo com o que leio, mas preciso estar a par do que se passa no Brasil e no mundo. Felizmente, os cadernos de cultura costumam ser oásis nestes tempos desérticos.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Qualquer um de boas maneiras.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Silêncio e disposição para encarar a tela do computador.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Silêncio, boa luz e boa poltrona.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele em que consigo escrever algo que me agrada, avançar na história. Ou quando reescrevo algum capítulo que, tenho certeza, ficou melhor.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Não ter roteiro estabelecido, capítulo puxa capítulo. As surpresas que vão acontecendo no desenvolver da trama. Às vezes, assusta o não saber o que está por vir, mas o prazer das descobertas e o pressentir o desfecho compensam, e muito.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Ele mesmo, quando descrê de seu ofício.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Não saberia dizer. Me interesso bem mais pelos autores dentro de suas obras do que fora delas.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Jorge Caldeira. Principalmente, em seu livro mais recente, Brasil: paraíso restaurável. Trabalho de pesquisa extremamente sério, que nos transmite conhecimento e nos dá oxigênio neste nosso país hoje tão violentado.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível, Os miseráveis, de Victor Hugo. Descartável, nenhum. Se não me interessa, não leio.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O não ser publicado. Li um original excelente, que não conseguiu vir à luz porque o autor desistiu de procurar quem o editasse. Triste, grande perda.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Estou aberto a todos os assuntos. Se tenho algo a dizer, tudo pode ser abordado.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
O chuveiro. Inúmeras vezes.

• Quando a inspiração não vem…
Releio e revejo capítulos anteriores. Quase sempre há algo a ser cortado ou melhorado.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Vivo, meu xará Chico Buarque. Mortos, o casal Zélia Gattai e Jorge Amado. Já pensou que festa?

• O que é um bom leitor?
Em Doce Gabito, meu segundo romance, faço homenagem a ele. A dedicatória diz assim: “A você, querido leitor, que se aventura no desconhecido e se dispõe a participar do mistério da criação”.

• O que te dá medo?
Os fanatismos político e religioso.

• O que te faz feliz?
Aos 71 anos, me sentir saudável, caminhar em um dia de sol com temperatura amena, aprender algo novo, o retorno que recebo dos leitores.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida sobre a importância do que faço. A certeza de que devo continuar e ir até o fim, apesar de tudo.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Ser honesto comigo mesmo. Dizer o que acredito que precisa ser dito.

• A literatura tem alguma obrigação?
Nenhuma.

• Qual o limite da ficção?
No cinema e no teatro, os custos de produção, principalmente. Na literatura, a liberdade para ficção é total. O único limite será a falta de criatividade.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Diria a ele: “Sinto muito, esse produto está em falta”.

• O que você espera da eternidade?
Pela duração, algo que me parece impossível: não me entediar.

A roupa do corpo
Francisco Azevedo
Record
532 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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