Algum incômodo na cabeça

Reginaldo Pujol Filho: Não tenho metas de páginas, palavras. Escrever também acontece muito fora da página, no pensamento, no rabisco lateral
Reginaldo Pujol Filho, autor de “Não, não é bem isso”
01/11/2021

O gaúcho Reginaldo Pujol Filho começou a escrever seu primeiro livro aos 5 ou 6 anos, por mais que não lembre da experiência. Ao longo da adolescência, frequentou oficinas de criação literária — sem ainda se preocupar com a veiculação de seu trabalho autoral. “Demorei a associar o desejo de escrever a ser escritor”, explica o autor de Não, não é bem isso (2019), para quem o porquê de escrever segue como uma pergunta em aberto. Essa dúvida, de certa forma, conversa com sua produção experimental, sempre obcecada com novas possibilidades. O romance Só faltou o título (2015) e os livros de contos Azar do personagem (2015) e Quero ser Reginaldo Pujol Filho (2010) são suas outras publicações.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
É curioso pensar sobre “querer ser escritor”. Me faz perguntar o que é ser escritor: escrever? Escrever com consciência estética, conceitual? Publicar? Nunca chego a uma resposta. Sempre gostei de ler, escrever e inventar histórias. Minha irmã me falou de um livrinho, O supercão, que tentei escrever ao 5, 6 anos (não lembro disso). Demorei a associar o desejo de escrever a ser escritor. Na adolescência, sem pensar nesses termos, fiz oficina literária por anos. Só pelos 25 anos, graças ao escritor e professor Charles Kiefer, que “ser escritor” (no senso comum: escrever, publicar, dar a ler) surgiu.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Para escrever, poucas: ter algo para beber (café, chá, vinho, cerveja). Escrevo cercado de livros — que estou lendo, quero ler, acho que podem animar o que estou trabalhando. Tenho escrito à mão. Mas se trabalho direto no teclado, gosto de ter papel e caneta, faço rabiscos, notas, desenhos, não sei explicar, mas ajuda. Detesto muita luz. Uma lampadinha basta. Faz tempo que deixo o telefone em outra peça da casa. No que escrevo, a voz narrativa é uma das principais obsessões. A forma e seus variados sentidos (estruturais, mancha gráfica, diagramação) também. E fugir de mim, tentar não me repetir. Talvez seja a obsessão mais doída, gera autocensura, policiamento interno. Como leitor, sou obcecado por Gonçalo M. Tavares, Verissimo, Sergio Sant’Anna, pela primeira página do Dom Quixote. Pelo que me estranha, confunde, não sei o nome. Anoto quando leio, risco páginas, escrevo na guarda do livro, na folha de guarda. E leio mais de um livro por vez. Sempre uma narrativa longa, algo de poesia, um ou dois livros de contos e algo de ensaio.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Estar lendo é imprescindível. Mas não tenho algo que precise me acompanhar dia a dia. Revisito livros. O senhor Henri, de Gonçalo M. Tavares, seguro, li mais de dez vezes. Mas não consigo dizer um livro só.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Difícil recomendar para quem detesta tudo o que se refere ao livro, é incapaz de sutileza, ler entrelinhas, construir relações empáticas e imaginar qualquer coisa fora do seu mundinho triste e deprimente. Indicar para ele uma lista telefônica ou o Dom Quixote daria praticamente no mesmo. Mas vamos lá: já que esse sujeito não tem a menor capacidade de aprendizado subjetivo, emocional, e ele só olha para o umbigo, seria Ubu Rei (Alfred Jarry) ou A cidade, o inquisidor e os ordinários (Carlos de Britto e Melo): talvez ele se identifique com os personagens que dão título e se divirta um pouco.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Não estar com demasiados problemas da realidade miúda na cabeça (difícil), estar capaz de criar sensação de silêncio (em casa, num café, aeroporto, estar cercado de ruídos que não falem comigo, palavras que não me fazem sentido). Ter tempo: demoro para começar a escrever, rondo o texto por meia hora, uma hora às vezes. Telefone, e-mail, o mais longe possível. Algo para beber. E algum incômodo na cabeça (um tema, forma, frase, cena).

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Não são muito diferentes das de escrita. Mas leio nas mais diversas condições não ideais. Adoro ônibus, pegar começo da linha, conseguir sentar e ter 40, 50 minutos para ler. Me ocorre agora: viajar sozinho (os deslocamentos) é uma condição ideal de leitura. O parêntese entre uma cidade e outra é garantia de que a realidade, o cotidiano, não surgirão no meio da página.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Não tenho metas de páginas, palavras. Escrever também acontece muito fora da página, no pensamento, no rabisco lateral. Então um dia produtivo pode ser o de umas duas páginas com ritmo. Mas pode ser o dia em que uma dúvida se desfaz finalmente, destrava parte do processo. E, raridade, sobrar tempo para ler sem obrigação à tarde.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Se é prazer e não produtividade, acho inigualável a sensação de escrever sem parar por 30 minutos, uma hora, quem sabe mais, num encadeamento insano, como se alguém estivesse ditando um texto no meu ouvido. Terminar uma página, um texto assim, é desembarcar de outro planeta. Fico desorientado, alheado. Sinto um cansaço físico. E é bom. É como a dor e o torpor de um atleta depois de uma prova, um jogo, de alta concentração.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Acho que é a cabeça do escritor e os infinitos inimigozinhos que ela cria: urgências medíocres que atrasam a escrita, motivos para não começar, vaidadezinhas sobre o que vão pensar do que nem foi escrito, esquecer do porquê começamos a escrever.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Talvez a falta de uma de ideia compreensão de ecossistema literário. Tão comum ver editora que não gosta de livraria porque é mais negócio vender direto; escritor que se autopublica porque fatura mais; livraria que dá calote em editora; falta de relação com bibliotecas; autor que alardeia promoção do livro na Amazon (quando ela está fazendo dumping e quebrando livrarias e editoras e buscando que todo mundo publique individualmente na plataforma dela). Isso tem a ver com a debilidade do sistema como um todo no Brasil — e que não tem perspectivas de melhora no curto prazo. Mas é um salve-se quem puder, farinha-pouca-meu-pirão-primeiro, como se a cultura do livro pudesse ser forte sem pontos de culto (as livrarias). Como se o livro para acontecer dependesse do gênio do autor, e a editora fosse atravessadora; como se não fizéssemos parte do mesmo problema.

Reginaldo Pujol Filho Foto: Davi Boaventura

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Ithalo Furtado (Parnaíba); Renata Wolff, Fernanda Bastos e Luiz Maurício Azevedo (Porto Alegre); André Cúnico Volpato (Curitiba); Ricardo Adolfo (Portugal); Lucas Litrento (Maceió); Campos de Carvalho e Manoel Carlos Karam já recebem, mas merecem mais atenção.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imagino — não li — que os do Olavo de Carvalho, do Rodrigo Constantino, devam ser intelectualmente descartabilíssimos. Quem sabe, no futuro, essas baboseiras sirvam para (além de não esquecer do buraco em que nos metemos) criar personagens absurdos, cômicos por sua idiotice? Para construir vozes de alguns personagens, já fui ler blogues hediondos, caixas de comentários das mais sórdidas. Sei lá. Um livro imprescindível? Quase sempre me agarro ao Dom Quixote. Mas há tantos: os de hoje pelas vozes que trazem, os para minha vida de leitor, de escritor…

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O mais do mesmo, o requentamento (e não reelaboração) de fórmulas, linguagens, modos de olhar, narrar, refletir. Se o livro não me estranha, deixa curioso, incomoda, e me permite sacar o que será logo a partida, a leitura vira protocolo.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Nenhum.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Por acreditar que tudo é matéria da literatura e da arte, acho difícil pensar em canto inusitado. Lembro de momentos. Comecei mentalmente um conto debaixo da marquise do centro municipal de cultura, protegido da chuva, esperando uma carona. Outro foi num caderninho, no ônibus, ao ver um vigia em frente a uma mostra de decoração.

• Quando a inspiração não vem…
Olho anotações antigas, folheio-leio livros ao redor, faço rabiscos, desenhos aleatórios, anoto frases, vou lavar uma louça, saio na rua (saudade disso), abro bem os ouvidos e roubo conversas alheias, gestos, movimentos.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Já foi o Calvino, para saber da sexta proposta para o novo milênio. Mas a Elvira Vigna, com quem estive rapidamente num evento e não cheguei a ter chance de sentar e conversar, é uma tristeza que ficou. Ouvir o modo dela de olhar para livros, o país, a arte.

• O que é um bom leitor?
Cada um lê como quer e pode. Diria que no Brasil ler literatura, questões críticas, já é resistência, é ser de algum modo bom leitor. Mas gosto da ideia do Barthes, que coloco aqui toscamente: a linguagem que gera linguagem, ou seja, leitura que não é só entendimento — mensagem, resumo do lido. O leitor (seguindo com Barthes) que lê levantando a cabeça de tempos em tempos, acometido por ideias, perguntas, reflexões. Leitura que escreve nos espaços que o texto deixa, nas perguntas que o livro provoca. Uma leitura que descobre textos que o autor não sabia que ali estavam, porém estavam. É um modo porque gera conversa, faz os livros seguirem, renascerem. Mas, sobretudo, bom leitor, boa leitora lê com autonomia: lê como quer e sabe que está lendo assim.

• O que te dá medo?
O Brasil.

• O que te faz feliz?
Agora, em especial, a Rosa, minha filhinha recém-chegada. Felicidade a cada gesto, fralda, arroto, olhar.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Certeza de não querer me repetir. Dúvida: se consigo.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
A resposta anterior meio que respondeu essa, né?

• A literatura tem alguma obrigação?
Não ter obrigação.

• Qual o limite da ficção?
A imaginação do autor, da autora. Eticamente, das responsabilidades que cada um está disposto a assumir pelo que escreve.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Até um rio, até uma árvore, uma abelha. São eles que mandam, só falta a gente obedecer.

• O que você espera da eternidade?
Que não seja longa demais.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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