A mágica de Mann

Luis S. Krausz: "Escrever não é preocupar-se. Escrever é ocupar-se. Ou escrevo, ou me preocupo"
Luis S. Krausz, autor de “Opulência”
30/04/2020

O escritor e tradutor paulistano Luis S. Krausz se encantou pelo universo literário ao 21 anos, durante uma longa temporada de férias na Bahia, quando mergulhou no romance A montanha mágica (1924), de Thomas Mann. Com uma extensa formação acadêmica voltada para letras clássicas e literatura e cultura judaica, Krausz leciona na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Estreou no romance com Desterro: memórias em ruínas, em 2011, e pratica a prosa de fôlego regularmente desde então — Deserto (2013), Bazar Paraná (2015), Outro lugar (2017) e Opulência (2020), seu livro mais recente, são os títulos que lançou do mesmo gênero. Como tradutor, verteu para o português nomes como Franz Kafka, Aharon Appelfeld e Friedrich Christian Delius, entre outros. Aos que desejam se aventurar pelos caminhos da escrita, o autor aconselha: “Quem for ficar esperando pelas condições externas ideais, verá o tempo passar e não escreverá nada”.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Eu tinha 21 anos e fui com um grupo de amigos passar uma longa temporada de férias no Sul da Bahia, num lugar que à época era quase desconhecido: Trancoso. Era o ano de 1982 e aquele era um lugar de difícil acesso, uma aldeia de pescadores, na qual também havia, nas férias, alguns jovens da cidade grande. Não havia eletricidade, e nem sombra da parafernália eletrônica que hoje acompanha cada um de nossos passos. Eram férias de verdade, muito austeras e muito sossegadas. Pela manhã, eu ia à praia com os amigos, à tarde me sentava à sombra de uma igrejinha para ler. Levei comigo A montanha mágica, de Thomas Mann, e mergulhei de tal forma no livro que sonhava, à noite, com os ambientes e com os personagens. Foi uma experiência que me marcou muito: embora fosse leitor desde a infância, nunca tinha me envolvido de tal forma com uma narrativa. Com isto abriu-se um horizonte novo na minha vida, foi uma espécie de iniciação à literatura — e o romance de Mann é mesmo um romance iniciático.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Na verdade, são poucas. Escrevo meus originais sempre à mão e para tanto tenho algumas exigências: bom papel, boa caneta, boa tinta. Mas não sou dependente disso. Se for preciso, lápis e uma folha de sulfite também podem servir. Todo escritor precisa de um pouco de sossego: um tempo durante o qual não é interrompido por ninguém, porque o ato de escrever exige concentração absoluta. Gosto, por isso, de madrugar para escrever: a cidade está silenciosa; a mente, alerta; o texto flui e às oito e meia da manhã boa parte do trabalho do dia já está pronta.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Sou docente universitário e isto me obriga a uma rotina de leituras que nem sempre são escolhidas voluntariamente. Mas volto sempre que posso aos livros de S. Y. Agnon, o único escritor de língua hebraica agraciado com o Nobel de Literatura e que, para mim, está entre os gigantes da literatura mundial do século 20.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Temo que não adiantaria recomendar. Temo que ele não leia e que não leria. Veja o que aconteceu recentemente com a biblioteca do Palácio do Planalto…

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
As condições internas são as que mais importam. Quando se está envolvido com a escrita, encontra-se um tempo e um lugar para escrever, mesmo que em um ambiente desfavorável. Sempre há o recurso às bibliotecas, aos cafés, aos parques…. Mas essa pergunta me faz pensar nas circunstâncias que, certa vez, tive a sorte de encontrar, numa temporada que passei no Château de Lavigny, na Suíça. Trata-se de uma residência de escritores, que acolhe convidados do mundo inteiro. Éramos um grupo de cinco escritores, da França, da Suíça, da Ucrânia e do Brasil. Cada um tinha um escritório à sua disposição, para trabalhar o dia inteiro, diante de uma vista deslumbrante do Lago Léman e de um lindo jardim. O tempo era ameno. À noite, nos reuníamos em torno de bons jantares, num salão, para conversar. Foi uma experiência que me marcou muito, porque as circunstâncias externas eram perfeitas, mas também porque as internas, por sorte, o eram também. Foram semanas produtivas, de grande felicidade. Mas, com um pouco de disciplina, condições externas menos esplêndidas também podem ser adaptadas. Importa mais o que vai por dentro: quem for ficar esperando pelas condições externas ideais, verá o tempo passar e não escreverá nada.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Silêncio, uma cadeira confortável, boa luz: é o que é preciso para ler um bom livro.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Um dia de trabalho produtivo é um dia em que você sente que fez o que lhe cabia durante aquele tempo: é um dia sem muitas interrupções nem muitas distrações, um dia em que o texto flui e ao fim do qual você se sente cansado, mas leve.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
O processo de escrita em si mesmo: o fluxo do texto.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
As ideias pré-concebidas. Para mim, a escrita é uma permanente descoberta, um trajeto imprevisível por caminhos inesperados. É como uma jornada a um lugar desconhecido, embora também muitas vezes familiar, sobre o qual pouco ou nada se sabe de antemão.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
As paredes que se formam entre as pessoas; as suscetibilidades e as vaidades; a arrogância e a empáfia. As mesmas coisas que suponho existir em todos os outros meios sociais, desde os bancos até os tribunais. É parte da nossa condição viver em meio a isso.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
S. Y. Agnon. Não consigo me conformar com o fato de que nos EUA, por exemplo, os romances dele só estão disponíveis porque há editoras universitárias que o publicam, enquanto as grandes editoras despejam lixo literário às toneladas no mercado. Aqui no Brasil, para nossa sorte, há umas poucas traduções disponíveis.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível é Lojas de canela, de Bruno Schulz. É um marco na história da literatura mundial, um livro que abriu novos horizontes para a escrita. Quanto aos descartáveis, acho a vida breve demais para lembrar de algum.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O comprometimento excessivo com um enredo, com uma agenda, com uma causa, ou seja: a previsibilidade. A escrita deve ser livre, deve surpreender, deve percorrer novos territórios.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Tenho por princípio não estabelecer, de antemão, limites para minha escrita.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
A inspiração pode vir de qualquer coisa. Uma vez escrevi uma narrativa baseada em cartões de condolências que foram enviados à minha família por ocasião da morte de minha bisavó, em 1942, e que encontrei dentro de um envelope amarelado pelo tempo. Cada um desses cartões tinha uma longa história para contar.

• Quando a inspiração não vem…
Espera-se. Também é um aprendizado.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Claudio Magris.

• O que é um bom leitor?
O bom leitor é aquele capaz de encontrar a si mesmo no texto, aquele que se importa com a narrativa, que se envolve com ela, se emociona, se relaciona com os personagens e com o escritor. É o que sabe: tua res agitur, ou seja, “o assunto diz respeito a você”.

• O que te dá medo?
Fracassar.

• O que te faz feliz?
Ouvir de alguém, seja quem for, que gostou de algo que eu escrevi. Uma vez fui buscar o carro na oficina e um dos mecânicos, que tinha lido um dos meus livros, me reconheceu por causa da foto na contracapa. Ele se aproximou de mim e disse que tinha gostado muito do livro. Fiquei feliz.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Pergunto-me, sempre: será que tudo isso presta?

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Escrever não é preocupar-se. Escrever é ocupar-se. Ou escrevo, ou me preocupo. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

• A literatura tem alguma obrigação?
Só as que ela mesma se impõe.

• Qual o limite da ficção?
O cansaço.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Diria a ele: não sei quem ele é; não sei onde ele vive.

• O que você espera da eternidade?
Seria mais útil se eu pudesse saber se a eternidade espera algo de mim.

Opulência
Luis S. Krausz
Cepe
282 págs
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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