Retornando aos escritores laterais (1)

Literal e literariamente, o escritor lateral ainda me fascina
Ilustração: Tiago Silva
27/05/2016

Escrevi sobre Damon Runyon — um (maravilhoso) escritor “lateral”, na minha conceituação particular — e me pediram para escrever mais sobre o assunto. Isto não é mentira, truque de quem tem só quatro leitores (mulher, duas filhas e um filho) e quer fazer onda pra justificar ir espichando um assunto. Não. Por exemplo, Adriana Dória Mattos — editora da revista Continente — foi uma das que me pediram mais esclarecimentos sobre o que seria um “escritor lateral”, designação (sem rima) para o meu uso pessoal e que vem se tornando público porque, quem sabe, eu tenha a língua solta demais.

Bom, essa “lateralidade” prodigalizada a algumas das minhas admirações mais firmes facilita-me a vida, organiza meus índices, areja as minhas listas (embora já não faça mais quase nenhuma). Talvez eu devesse conjugar o verbo no passado e dizer que, um dia, para mim foi útil ter essa conceituação nos meus silêncios noturnos — que são, com certeza, mais límpidos e claros do que minhas falas sobre a literatura, nessa idade crepuscular da Senhora da Tempestade (do agora triste Manuel Alegre de Portugal, um poeta lateral?).

Literal e literariamente, o escritor lateral ainda me fascina. E também me ajuda, mesmo agora, na minha idade pessoal crepuscular, no trabalho de faxina mental, enquanto ainda penso em literatura (em breve, deixarei de pensar), e ele, o Lateral, existe para mim mais do que o jogador que ocupa essa posição no, aqui, todo-poderoso campo de Futebol — essa, dizem, paixão brasileira que deve ter sofrido um grande abatimento com os 7 a 1 que alemães empenhados nos impingiram na última Copa justamente em campos tupiniquins ainda agora escandalizados com esse placar realmente humilhante e quase borrador de cinco copas do mundo conquistadas quando os nossos futebolistas ainda tinham almas e pernas (mesmo que tortas) correndo em bela sintonia sobre os gramados anteriores ao poder devastador do Dinheiro. Mas, chega de “soccer” aqui neste campo mensal das letras, para voltar ao Lateral (escritor).

Quem é ele?

Começando do princípio (é claro), o escritor lateral sempre existiu e há muito pedia que o reconhecessem como tal.

Laterais foram, desde Homero [o Poeta nunca lateral], todos os escritores que honrosamente não foram convidados para a festa do vizinho na voz de Cassiano Ricardo: “Em meu quarto, o silêncio e a lâmpada/ que me divide em dois:/ duas vezes eu e uma lâmpada só./ No salão do vizinho/ que não me convidou/ a mesa farta e os convivas/ bebendo um vinho triste”…

Bem, o poema segue — até chegar, no final, a fazer o brinde “aos excluídos”.

Voltemos ao lateral: é ele o escritor excluído?

Presumo que não seja precisamente isso, embora, de longe, pareça excluidíssimo.

Porque o escritor lateral, em princípio, nunca escreveu para pisar no tapete vermelho da Literatura com o L maiúsculo dos Grandes Nomes das Coleções dos Gigantes das Letras.

Não. E é curioso, isso: o escritor lateral quase sempre teve/tem uma profissão que ele escolheu como qualquer outro anônimo não-escritor seguindo pelos caminhos da vida. Por exemplo, a profissão de médico — que foi a do lateral Victor Segalen, autor do misterioso René Leys. Procurem no Google; é mais fácil do que eu começar explicar, no limite das setecentas palavras, quem foi Segalen e como é a sua magnífica crônica da Cidade Proibida, na China que ele conheceu como marinheiro, médico e arqueólogo (e escritor). Sim, não era a atividade principal dele. Quase nunca é, quando um lateral é verdadeiramente adepto dessa lateralidade que não o faz se sentir escritor quase vinte e quatro horas por dia de uma obsessão continuada que só fez merecer a censura de Marguerite Yourcenar: “Não pode escrever bons livros quem se dedica somente a escrever livros”.

Ela tem razão, mais do que nunca para os laterais autênticos, com esse dado biográfico comum a todos, praticamente: a profissão que, às vezes, levava-os para os mais longínquos lugares da terra (Victor Segalen na China é o melhor dos exemplos), sem pensar em literatura, sem pretender escrever nada, sem estar esperando retirar da experiência qualquer tipo de obra que o faça vir a pisar no mainstream literário.

Escrevi, quando abordei este assunto pela vez primeira: “O Lateral que seja mesmo lateral, é realmente inocente disso. Quero dizer, da ‘premeditação’ de escrever para se imortalizar (?) com a incerta obra-prima que vá despertar o interesse pela sua vida — secreta — de lateral na alma e no corpo evadidos para latitudes & longitudes estranhas.

Porém, quando ele decide escrever, o escritor lateral escreve um livro, um poema, uma obra que só poderia ter sido escrita por ele — e não por um Hemingway vivendo apenas para transformar o vivido em páginas e mais páginas escritas ‘para a Glória’ (?), o Nobel, o Cervantes, o Camões (que acaba de ir para nobody).

O Lateral, então, não é um ninguém, porém é um desiludido como o Rimbaud que fugiu para a África a fim de se tornar menos que um lateral: virar um desconhecido traficante de armas pouco a pouco burguês ao ponto de escrever ‘para casa’ pedindo que lhe arranjassem uma ‘boa e honesta esposa’ etc.

E qual é o problema com isso? Estar ignorado na multidão é poder andar nos cais das sombras da vida sem iluminação artificial de entrevistas e o mais que cerca os não-laterais, os que desesperadamente tentam se manter no tapete vermelho dos holofotes antigos e, quando não mais o conseguem, às vezes dão um tiro nas suas velhas cabeças perdidas (como Ernest fez), porque um escritor que, o mais possível, tentou ser o tempo visível não se adapta à invisibilidade, quase, dos laterais como T. E. Lawrence que terminou seguindo para a caserna como quem procurasse um monastério laico cheio de anônimos com Fracasso escrito na testa.”

>>> CONCLUI NA PRÓXIMA EDIÇÃO

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho