América, América

Esse é o título de um romance e de um filme do cineasta Elia Kazan, turco de cultura grega que emigrou para aquela América
O cineasta Elia Kazan, em Nova York, em janeiro de 1967
01/07/2013

Esse é o título de um romance e de um filme do cineasta Elia Kazan, turco de cultura grega que emigrou para aquela América (“América”!) agora inexistente, representada por uma estátua de Eleutheria (liberdade, em grego), o braço levantado no ar rarefeito que os chefes da Revolução americana sonharam para o país futuramente individualista — e imperialista — demais para corresponder aos ideais do melhor de século 18 que chegou a contemplar um amanhã (?) de prosperidade e justiça.

O que deu errado?

A América do Norte, não é nenhuma novidade, há muito que entrou no pesadelo de ter “perdido a alma” (segundo John Steinbeck) quando sacrificou qualquer coisa — e mais o Éden dos pioneiros — à doutrina do lucro acima de tudo, do vencedor acima de todos, do egoísmo no lugar da perseguição, mesmo perigosa, de uma espécie de “messianismo” que estava nas entrelinhas de uma constituição simples, ou até certo ponto simples, como uma tabuada.

Repita-se a pergunta: o que deu errado?

Para começar, a verdadeira compreensão do Outro — impedida pelo gigantesco umbigo desse país deformado. Quer dizer, começou a “dar errado” por isto: o Outro é só uma projeção do seu Eu para cada americano que perverteu o último Jardim do Paraíso e nele construiu o que um filme de Henry Hathaway indicava como o Jardim do pecado. A raiz calvinista disso — boa em princípio — está também na literatura, já velha, de denúncia desse “pecado”, presente em obras de Herman Melville, Nathaniel Hawthorne, Sinclair Lewis, Scott Fitzgerald, William Faulkner, o já citado Steinbeck (tão importante para o “regionalismo” literário norte-americano), Horace McCoy, Carson McCullers, Nathanael West e outros que desencarnam a América autodestrutiva no fundo da sua personalidade nacional alimentada pelos campos de ódio, competição, egoísmo, etc.

Essa linguagem meio bíblica não soa nada imprópria para se tentar fazer a sociologia das desgraças que se abateram sobre o gigante do Norte, como se fosse a “mão do macaco”, a “vingança da Baleia Branca” ou, menos misticamente, a fatura da conta apresentada pela política e, agora, parece que também pela Natureza revoltada.

Todos sabem que o Departamento de Estado americano vem, desde o final da Segunda Guerra, praticando a política mais vesga de todas as democracias do Ocidente. Ele financiou ditadores, armou insurretos da direita, planejou assassinatos de líderes populares e governantes de esquerda, fez acordos com uma mão e os traiu com a outra, acendeu uma vela ao deus da Casa Branca e outra ao diabo da Praça Vermelha (nos termos maniqueístas da já antiga Guerra Fria) e, agora, é um pouco tarde para perguntar: o que está acontecendo?

Está acontecendo tudo, literalmente. A Grande Decadência da América começou a se acelerar visivelmente, e eles se mostram incapazes até de armar esquemas de minimização dos efeitos de um desastre natural das proporções do furacão Katrina, enquanto ainda permanecem olhando para o monumental buraco onde existiram as duas torres do orgulho postas abaixo por aviões lançados como foguetes do inferno (o americaníssimo Superman não estava lá para detê-los com as mãos…), sem falar da crise econômica de 2008, que segue propagando, mundialmente, as conseqüências nefastas do mais perverso consumismo da história.

Sempre que revejo aquelas imagens incríveis (duas aeronaves cheias de gente entrando na face de vidro das torres como abelhas de metal num pote de geléia envenenada), penso que aquilo foi a performance final da Dança Guerreira dos fantasmas, prometida pelo último profeta dos índios das planícies quando o chefe Chaleira Preta foi assassinado por soldados, na neve, enquanto Kit Carson, David Crockett, William Cody e os demais heróis se demitiam da matança, rumando para os Felizes Campos de Caça há muito desaparecidos, junto com os Édens de uma suposta “inocência” que, muito provavelmente, nunca existiu.

Não há mais heróis no cenário do Kazan de América, América. E não penso como Brecht: acho que um povo precisa, sim, de heróis (mesmo hesitantes) para passar da barbárie cultural ao estágio de civilização que sabe que só se salva coletiva e planetariamente. Neste mesmo momento, aqui no Brasil, estamos precisando desesperadamente de um foco para essas manifestações surgidas com o início da Copa das Confederações, de mistura, inicialmente, com os centavos de aumento da passagem dos transportes públicos. Está evoluindo (escrevo na segunda metade de junho) como evoluíram as manifestações turcas, que tive oportunidade de ver de perto na primeira quinzena do mesmo mês, em viagem à Turquia que a novela Salve Jorge parece ter estragado para sempre. Mas isso é outra história. Por ora, vamos ver no que vão dar as manifestações (tão pouco “americanas”) aqui e lá, no país de Erdogan, o “Dilma” do planalto anatoliano. Paro por aqui, porque até já ultrapassei o limite editorial das “setecentas palavras”…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho