Trem do Atlântico

Trecho inédito do romance de David Oscar Vaz
Ilustração: Ramon Muniz
01/12/2011

(duas das dezessete partes para um todo incompleto)

VI
Assim na terra como no mar

João Marcos tinha vinte e quatro anos e morava com a mãe no Cambuci, numa casinha com quintal onde mal cabia a goiabeira plantada em séculos passados. Dona Dulce, arqueada pela idade, vivia só para o filho único desde que seu Vitório falecera dois anos antes. Tio Juca foi quem o introduziu no universo da sacanagem, contava aventuras e caprichava nas descrições picantes, às vezes lhe trazia umas revistinhas. Apesar de todo o ensinamento teórico prévio, suas primeiras experiências foram infelizes, as mulheres podiam ser muito cruéis. O desejo. O desejo criava atração e desconfiança. Alguma coisa o apavorava, por que seria diferente com Ana? Quando se despediam, e sem pensar — porque se o fizesse certamente gaguejaria — disse que gostaria de vê-la novamente. Ana o olhou como quem não sabe o que responder, mas sugeriu:

— Vá na igreja de Santa Teresinha no Domingo, a missa das moças é a das sete.

Amor, a quanto me obrigas? Repetia para si esse verso, sempre declamado com ironia por um colega de trabalho. Ter que ir à igreja? A moça era religiosa, que jeito, ele tinha que fazer bonito. Enganara-se ao prever um penoso sacrifício, Ana estava linda com o véu branco sobre a cabeça. A missa eles a celebraram atrás da igreja, onde havia árvores copadas sombreando a luz da lua. Ela deixou apenas que ele segurasse sua mão. Falavam de si e o tempo passou depressa, um encontro com gosto de quero mais. Marcaram para a semana seguinte outra missa como aquela. O breve beijo antes de partirem com os corações aos saltos e as mãos frias selava um compromisso com o próprio sentimento, se ele faltar ao próximo encontro é porque não me ama, ninguém faltaria. Depois de umas tantas missas ardentemente rezadas, estavam caidinhos um pelo outro, de tal modo que não restou outra saída a João Marcos a não ser pedir ao pai permissão para namorar a filha em casa. O problema era enfrentar a fera, tão ciosa de suas duas belas.

— Mas quem é o rapaz, Adélia? — perguntou Alfredo quando soube o motivo daquela visita — Deixa pra lá, que eu mesmo descubro.

Vendo-se pela primeira vez nessa situação, João Marcos tremeu.

— Só te digo que não abuses da minha casa, não gosto de malandros. As tuas intenções são boas?

— As melhores, seu Alfredo.

É o que todos dizem, pensou o pai, mas não recusou o cumprimento do rapazote, rosto pálido, gesto inquieto de quem não sabe quando rir nem o que fazer com as mãos. É bom mesmo que tenha medo. Quando soube da ocupação do moço, Alfredo tranqüilizou-se mais, não de todo, quem tinha filhas em tão sedutora idade…

Num balanço geral, o homem constatava com satisfação que não tinha motivos de queixa. Trabalhava como um animal, é certo, mas nem na época do contrabando de pão na sua terra ganhara tanto dinheiro. Depois de saldar as dívidas de seu investimento no bar, começara a canalizar todo o lucro para a construção das salas comerciais e dos sobradinhos do Imirim que, pabuf!, ergueram-se num instante. Alfredo economizou o que pôde, ele próprio metendo a mão na massa junto com os pedreiros. Numa contenda de gato e rato com a prefeitura, preferia ir pagando as multas pela falta de documentação — o que era mais vantajoso que andar na linha — e corria contra o tempo para terminar a obra antes do embargo. Este esquema continuaria a ser adotado na edificação de todo o seu patrimônio, a infração só lhe trouxe proveitos. As filhas estavam bem encaminhadas para a profissão e para o casamento. Alfredo acabara aprovando os pretendentes das gêmeas por diferentes razões, o rapaz de Nanda era esperto, ser escrivão era apenas uma situação provisória, um patamar para um salto maior; o de Ana tinha um caráter mais prático que ambicioso, acomodava-se bem à carreira de funcionário público. Apreciava a ganância do primeiro, uma alma semelhante à sua não fosse o esnobismo, e o gosto pelo saber do segundo, que lembrava muito seu padrinho. O defeito de Arturzinho seria motivo de atritos futuros, já a boa impressão que lhe causara João Marcos haveria de crescer sempre, até mesmo quando mais tarde veio a recusar fazer parte dos negócios da família. O sogro não tomaria a atitude como manifestação de desdém, mas como a escolha de alguém de juízo, desculpando e aceitando sua natureza, afinal de contas Ninguém foge ao que o seu eu é, como costumava dizer Adélia. E com a aprovação dos namoros, a agitação voltaria. Sua casa sempre fora pródiga em receber, quantos primos, sobrinhos, irmãos, conhecidos não passaram por ali? Chegavam, ficavam algum tempo, arrumavam um emprego ou montavam um pequeno negócio e lá se iam. Assim fazia pelos outros o que fizera por ele o tio de Adélia, de quem fora empregado de balcão numa padaria por quase cinco anos e a quem seria eternamente grato pelo acolhimento e pela “carta de chamada” que possibilitou sua vinda para o Brasil. Mas fora em bom momento que um vendedor das Empresas Matarazzo, que simpatizara com ele, deu a dica e o incentivo para que abrisse comércio próprio: As mercadorias, deixa comigo. Você começa a pagar só depois de quatro meses. Até lá já se estabilizou. Assim nasceu o bar da Augusto Tolle, pequeno, alugado, mercadoria consignada e de onde tudo saiu. O António, o José, o Manuel, o Chico, todos tiveram esta casa como porta de entrada no Brasil. A generosidade lusitana de Alfredo competia com sua rudeza transmontana. Aqui é para se trabalhar — orientavae quem não concordasse, que fosse embora. Fora o terror do Zezinho, que nunca soube o que era trabalho em Portugal até vir morar com o irmão mais velho. Terminado o prédio do Imirim, foi entregue ao caçula, com apenas catorze anos, a responsabilidade de tocar o açougue. Uma tarde o moço não resistiu ao convite de uma turma para jogar bola num campinho ali perto e fechou a porta do estabelecimento. Flagrado por Alfredo, Não entrava mesmo ninguém àquela hora!, apanhou uma tremenda surra e foi trancado ali mesmo, de calção e camisa, sem manta e sem comida, toda a noite de um Junho muito frio. Não conseguiu nem gozar a lembrança do gol que havia feito! Nunca havia apanhado antes e as lembranças do castigo o acompanharam por uma semana, a mágoa duraria muito mais. O que é que havia vindo fazer no Brasil, meu Deus? Para o outro, acostumado às asperezas da vida, aquilo não era nada, mas Adélia protestou contra o rigor da punição. Dois berros e uma tremenda bofetada a colocaram no seu lugar. Na manhã seguinte, libertou o menino, deu-lhe de comer e tratou-lhe o resfriado. Assim era o homem, com a mesma mão que dava, punia.

Durante o tempo de namoro, Arturzinho e João Marcos assistiram a alguns acessos de ira de Alfredo, quando saía na porrada com fregueses que o insultavam ou não queriam pagar a despesa. Mas também com as filhas o português era truculento. Em certa ocasião de falha de energia, depois de se maquiar para receber o namorado, Nanda esquecera uma vela acesa no banheiro e quase punha fogo na casa. O pai a xingou e a ameaçou com tal fúria que o noivo, chegado naquele momento, intimidado e constrangido, nem se atreveu a pedir calma. As moças se ressentiam da falta de afeto do pai, bruto e insensível. Impossível esquecer, por exemplo, a forma insuportável como se ria do medo e do asco que causava nelas quando retirava um camundongo ainda vivo da ratoeira, segurando-o pelo rabo, e com um golpe de uma verticalidade precisa fazia estourar a cabeça do pequeno roedor de seus bens na quina de uma caixa de vasilhames. Podiam perdoá-lo por isso e até pelas surras que receberam, mas não pelas vezes que viram a mãe apanhar, não pelos pratos de comida que se despedaçaram no chão ou na parede da cozinha devido a uma súbita cólera, e pelas vezes que disse: Se não vos comportais vou trocá-las por dois negrinhos. E dava uma gargalhada franca. Não pedia licença, ia, os incomodados que saíssem da frente.

Este é o vosso pai, disse Adélia às pequenas quando aportaram em Santos e Alfredo foi buscá-las a bordo. Tinham sete anos e não viam o pai há três. Era um estranho e continuaria um estranho até o respeito ao sangue lhes ensinar a convivência numa vida áspera. Naquele momento, ambas choravam, mas Nanda chorava mais e Ana a consolava, puxando-a de novo para a vida. Nanda passou a odiar aquele homem porque o amava e seu amor era incapaz de modificá-lo. Ana consolaria sempre a irmã, com carinho, com palavras, com silêncio e com seu último gesto. Se Nanda odiava o pai, Ana o odiava também.

João Marcos vinha às terças e quintas, aos sábados iam à missa, era a desculpa. Foram se amando sempre mais porque o amor se prende com detalhes. Um dia falavam de sonhos, ele perguntou pelos dela.

— Meus sonhos? Não, eu não tenho sonhos, só tenho você.

João sorriu envaidecido, mas protestou argumentando:

— Mas, já é quase professora…

— Ah, mas isso não é sonho, são coisas que a gente faz, não disse que não gosto de fazer coisas, eu gosto, mas eu não tenho sonhos, não… é verdade!

Ana falava de si mais por insistência dele. Confessou que não se considerava portuguesa. As irmãs perderam o sotaque assim que chegaram. A humilhação por parte dos colegas de escola, implicando com sua fala e suas roupas, foi um grande incentivo para o rápido aprendizado da maneira brasileira. Que lembranças tinha de Portugal? Poucas, mas trazia em si algo das montanhas em que nascera, não sabia explicar. Se soubesse, talvez falasse de uma paisagem inóspita, do eco de vastos espaços despovoados, da persistência da pedra. Desprezava a maneira como os homens portugueses tratavam suas mulheres. Nanda dizia que nunca se casaria com um português, ela tinha mesma opinião, mais por solidariedade que por convicção. Lembrava-se que a casa em que nascera dava para um largo com o chão coberto de palha pisado por animais e gente, de outras moradas semelhantes à sua, com grandes portas e varandas, construídas com o mesmo xisto desde tempos muito antigos de reis e condes, que em guerras se fizeram senhores da terra. Fechava às vezes os olhos como num transe… Lembrava-se da lareira onde se assavam diospiros, o outro nome do caqui, da rua vista pela varanda, dos avós quase a se esmaecerem como os fotogramas de filme antigo, um velho com um cajado na mão a brincar com um cão chamado Duque, um outro velho a colher para ela uma mãozada de cerejas num dia de sol quente e depois a limpar a testa com um lenço azul e branco, uma avó de preto a ralhar e a rir, uma velhinha a descascar batatas no regaço e a deitar as cascas ao lume. Havia também a má lembrança, mais viva, da partida da aldeia com a irmã e a mãe. Adélia quis que a triste despedida fosse íntima, só com os seus, e decidira que sairiam ocultas após a ceia em família. Mas um vizinho anunciou a fuga, acordando a noite com gritos de adeus, adeus, e outros acorreram. Em pouco tempo, o povo iluminava com seus candeeiros e velas a frente da casa. Toda a gente a falar alto, a desejar felicidades e a lamentar a partida, tão meninas, coitadinhas! As sombras e as pessoas desfiguradas pela luz das velas davam à cena um tom lúgubre. Pobre Adélia, valha-me Deus! Dois daqueles espectros levantaram as pequenas no ar para colocá-las em cima da carroça que as levaria ao comboio do Pocinho. As mulheres rezavam, pediam a Deus que as guardasse, e a Nossa Senhora, e a São João Baptista, e a Santa Eufêmia. E as miúdas amedrontadas desataram a chorar. E os lamentos e as rezas cresceram ainda mais, pobrezinhas!

— Pareciam loucos, sei lá!…

Da viagem Ana lembrava-se pouco, nada do comboio, alguma coisa do navio e do mar, mas nunca esqueceria o episódio do viajante clandestino. Anoitecia quando o descobriram. O tumulto atraiu os passageiros e as crianças correram para ver o que se passava. O detido era conduzido ao comandante pelos captores, um homem de ar altivo, que mais parecia um príncipe num desfile que um criminoso, seus pés descalços davam passos seguros. Sem ninguém esperar, num movimento ágil lançou-se na água. Susto, corre-corre, quem poderia prever atitude tão extrema?

— Ó mãe, o homem não tinha sapatos — diziam as meninas para Adélia que não as escutava, mais preocupada em segurá-las, não fossem elas também querer fazer alguma loucura.

— O homem não tinha sapatos!

E elas tinham dois pares, um para o dia-a-dia, outro para as missas, enterros e festas. Estavam acostumadas a ver homens descalços, mas este era diferente. Enquanto assistiam escondidas da mãe à tentativa de resgate, Nanda fez notar a Ana que, fosse por que fosse, estavam ambas calçadas com os sapatos das ocasiões importantes, ao que a outra respondeu:

— Então deve ser uma ocasião especial.

O navio ficou ali dando voltas em torno do local onde o desesperado mergulhador se atirara. Uma lua minguante assistia de um ponto privilegiado ao inútil trabalho de busca, as luzes dos holofotes passaram boa parte da noite a riscar o ar e a água. Nada. O homem, que permanecerá para sempre anônimo, que devia ter em alguma aldeia distante um pai e uma mãe, irmãos, talvez uma irmã mais nova de quem gostasse muito, quem sabe uma esposa, mas que não tinha sapatos, julgou num dado momento que o melhor a fazer era escapar para o continente submerso, preferindo servir de pasto aos peixes a regressar ao país onde nascera.

VIII
O céu quando cai não é para todos

O mal se apresentava modestamente na forma de uma pinta na cara ou no pescoço da vítima, depois vinham as dores no corpo, a fraqueza e uma febre intermitente e fatal. O Dr. Adolfo de Moncorvo dedicou-se com interesse e compaixão na busca da cura, consultou manuais e colegas do Porto e de Lisboa, tudo inútil. Frente ao fracasso da ciência e da fé, as pessoas apelaram para um recurso pouco ortodoxo e cruel, mas que se revelou logo eficaz, queimar o cabrunco com a ponta incandescente de um ferro assim que este assomasse à pele. Muitos escaparam graças a este bárbaro expediente. A menina Adélia ficou com uma marca no papo, a irmã Ilídia com uma pequena cicatriz no lábio superior, ambas tiveram sorte, algumas operações mal realizadas roubaram por completo a beleza ao rosto de muitos jovens.

A mãe de Alfredo só veio a perceber a borbulha do cabrunco na fronte esquerda quando o menino já ardia em febre, aplicou esperançosa as ventosas do costume. O procedimento não mostrou qualquer eficácia e a mulher entrou em desespero, perdera o primeiro filho no parto, o segundo no inverno anterior, pobre Miguel, com apenas doze anos e toda uma vida pela frente, foi levado por uma convulsão, agora era o Alfredinho neste estado! Sua aflição não podia ser maior, ali estavam também o Antoninho e Maria Amália, os miúdos tão preocupados com a saúde do mais velho. Depois ti Alípio chegou, tirou do saco o ferro do suplício com atitudes de cirurgião ou inquisidor, olhou para o pequeno fragilizado pela doença, ele que havia nascido de sete meses e derrotado uma pneumonia contraída aos 24 dias de vida, estava ali com os olhos vidrados, prontos para deixar de ver esse mundo. Quando sentiu o metal vermelho tocar o sítio exato onde antes aflorara um pequeno abscesso, deu um grito descomunal, seguraram-no por alguns instantes, depois caiu chorando nos braços da mãe, onde adormeceu. Vieram os delírios, o ruído infernal do moinho e a presença do irmão morto da qual não podia se livrar. Miguel, o alegre Miguel, o menino que partia copos com os dentes quando nas festas lhe davam vinho, para riso de todos e desespero da mãe. No seu desvario revivia e revivia o momento da morte de Miguel, quando o acaso deixara apenas os dois irmãos na casa. Alfredo aproximou-se do leito em que o outro mal conseguia respirar, não tanto pela sua responsabilidade de vigília, que a todos da família tocava em diferentes horas do dia, quanto por um impulso mórbido próprio da idade. Em breve seria o mais velho, o trabalho no moinho aumentaria, só ele então acompanharia o pai nas viagens à vila. Estava nessas somas e subtrações da fantasia, onde nem tudo é dor e perda, quando de súbito Miguel despertou e, soerguendo-se, o agarrou pela gola e o puxou com força para si. Os olhos arregalados eram do mais puro desespero, agarrava-se ao irmão num último gesto, tremia, tentava falar, mas as palavras saíam entrecortadas, precisava do ar que não tinha, pedia ajuda: Fredo, Fredo… Alfredo sentiu vontade de chorar, sentiu que as mãos que seguravam as golas de sua camisa se afrouxavam, depois o silêncio, somente o fogo doméstico ao lado a crepitar. Onde estavam todos? Onde estavam todos? Miguel não respirava mais e o ruído do moinho, o ruído do moinho a moer e Miguel agarrando-o num eterno pedido de ajuda, Fredo, Fredo… e sempre a morrer.

Depois que os períodos de febre se tornaram mais espaçados e já se iniciara uma lenta e cautelosa recuperação, Alfredo foi viver uma temporada na casa de seu padrinho, por insistência deste, que o recebeu com carinho e o tratou com mel e ovos de pata. Ti Adriano era homem ilustrado e de gosto. Assim que o afilhado deu mostras de melhora, seu benfeitor, que não tivera esposa nem filhos, começou a ministrar ao pupilo aulas de história pátria e universal. Regozijava-se na formação do pequeno e talvez tenha sido esse o melhor momento de sua vida, falava com entusiasmo dos grandes vultos da nação, da batalha de Alcácer Quibir, dos reis portugueses e de outros heróis, de Diogo Cão, de D. Sebastião, de D. Pedro o Cru, de Maria da Fonte, da padeira que matou não sei quantos espanhóis. Foi à custa de alguns puxões de orelhas que Alfredo aprendeu a gostar de ler. Descobriu e se maravilhou com as vidas dos Césares e Alexandres. O padrinho trazia às vezes o jornal e dizia que por ali também se podia ver o mundo. A moléstia que por pouco não levou a vida do miúdo deu-lhe a oportunidade de ilustrar-se, ao contrário do irmão António, que não teve cabrunco nem escola porque alguém tinha que cuidar das cabras.

Num dia de segada de um Agosto abrasador, o primeiro para Alfredo depois da moléstia, ti Correia foi logo perguntando assim que viu o menino:

— Então, filho, estás guicho já?

— Já estou bom, tio, cada dia mais forte. — Via-se que ainda estava muito magro, rosto chupado, mas já se podia dizer que haveria homem.

A aldeia era o mundo, só isso explicava o fato de Alfredo e Adélia, ainda que vivessem tão próximos, só se encontrarem alguns anos depois desta tarde graças a um incidente de rua que a moça guardaria para sempre no coração como um humilde prenúncio do seu destino, na época em que rapazes e raparigas já procuram o amor de namorado. Ele conhecera primeiro a irmã, porque a Ilídia era mais de bailes, mas depois se encantou pela outra. Logo no segundo encontro o rapaz propôs:

— Nós podíamos nos casar, queres?

Ela o olhou com espanto. Seria isso o amor? Lembrou-se do primo Mário, que nunca mais se declarava e do quanto ela teria que se esforçar para gostar dele. E agora isto! A prima Alzira alertava, Esse aí é muito fino, e tinha razão, mas era também muito guapo, apenas dois anos mais velho e querendo domá-la. Ele a fez rir algumas vezes durante a conversa, a ela, que era tão reservada!

— Tu és a melhor rapariga que eu conheço.

Ela sorriu vaidosa, isso era um sim.

Felgueiras, com suas casas de pedra, com seu forno de pedra, com os lagares do vinho e do mel (de pedra) e a fonte — adivinhem — de pedra, começou a deixar a Idade Média lá pelos meados do século XX. O menino Alfredo, que acabara de arrumar um feixe de trigo repetindo exatamente os mesmos gestos de tantos antepassados, e que ainda não conhecia Adélia, limpou as mãos na camisa e seguiu em direção da sombra, deixando para trás o campo, ondulante dourado ao vento. Todos vieram à segada nas terras de ti António, andaram na lida durante a manhã e agora era hora da merenda. Os meninos agruparam-se sob uma árvore à volta de ti Correia, o homem que tinha regressado do Brasil para morrer em sua aldeia, fazendo o que sempre gostava, cultivar a terra, pisar o vinho, cuidar dos animais. Nascera para essa vida, mas sentia uma saudade, amorosa e triste, do país onde não tivera sorte. Para matá-las um pouco, ou para senti-las mais ainda, introduzira na aldeia, com alguns companheiros de má fortuna que com ele voltaram, certas excentricidades de além-mar, como o Carnaval.

Aliciado pelo desconhecido e suas possibilidades, como tantos portugueses do Norte, o Correia engrossara a vaga de imigrantes que partira para o Brasil no começo do século XX. Sabia estar fazendo a melhor coisa da sua vida, amou e quis o país que descobrira. Naquele mundo aberto para o infinito, como a ferrovia sem fim que entrava por uma floresta sem fim em que trabalhara, conhecera o amor. Aprendera a gostar de músicas cheias de denguices, de cerveja gelada e de morenas insinuantes, mulheres diferentes das que conhecia, que gostavam de mostrar mais sorrisos que lágrimas. Lá também encontrara a doença que o trouxe preso a uma maca de volta a este porto nas montanhas.

Correia e os amigos pintavam a cara, improvisavam roupas engraçadas e saíam a dançar pelas ruas um entrudo novo, mais tropical, cheio de sedução. Jogavam serpentinas ao ar e numa alegria de apitos e pandeiros convocavam toda a gente com marchinhas brasileiras. Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral! No dia vinte e um de Abril. Dois meses depois do Carnaval… A farra arregimentava de pronto novos adeptos, jovens que não sabiam o que era o outro mundo caíam na folia, os velhos riam, outros batiam palmas, toda aquela alegria era um cativante espanto. Ti Correia deixaria à memória geral, além de animadas cantigas cariocas, algumas fabulosas histórias. E falava da árvore das patacas que crescia no Brasil, contava que de vez em quando, lá no meio de um bosque, se encontrava alguma. Por capricho descrevia os pormenores do tronco e dos ramos, os frutos eram naturalmente moedas de ouro. Os mais velhos duvidavam, mas riam sempre. Alguém se lembrava ter ouvido dizer que no Brasil se achava ouro no chão.

— É certo! — dizia ti Correia vitorioso — Eram os frutos maduros que caíam das árvores.

E enquanto o homem bebia sua golada de vinho, os outros queriam acreditar. Era bom sonhar com aquele lugar. O menino Alfredo só sabia que no seu mundo o sustento se tirava do que se cultivava numa batalha diária com a morte. Pasmara feito parvo, o que ele não era, ao ouvir que uma vez no Brasil caíra um pedaço do céu:

— Um dia ouviu-se um estrondo enorme no cimo de uma montanha, fomos lá ver o que era e… carago! Um pedaço do céu que havia caído!

Os pequenos fizeram-se mais acesos, um deles tentou um protesto:

— Mas como foi isso, ti Correia, caiu um pedaço do céu?!

— É, caiu…

— Mas como?

— Estava muito velho, rapaz!

Risos trigueiros ao vento quente num sol de matar. Quando voltaram ao trabalho, Alfredo, que não sabia ainda do seu futuro desejo de partir, perguntou:

— Ó ti Correia, se lá era tão bom por que veio embora?

O homem passou os olhos na paisagem. A sua Felgueiras, os campos de trigo, de castanheiros e de vinhas, de oliveiras e de amendoeiras, as fragas eram os rostos cinzentos da terra, aquele horizonte de serras escondia outras aldeias iguais, Maçores, Carviçais, Mós, Vilariça, por ali, se levantasse a mão esquerda, se chegava até Barca D’Alva. Esta terra, na sua rudeza, o tratara com seu mel e seu leite e o fizera levantar-se da cama para de novo ser alguém entre os seus. Todos o conheciam e ele conhecia a todos pelo nome próprio, apelido e alcunha. Conformara-se ao destino de torna-viagem pobre, mas sentia nostalgia da vida que poderia ter sido e que não foi. Há homens que não nasceram para morrer em outras terras, simples, ele pertencia à espécie dos que não podiam partir. Voltou-se então para o menino curioso e com um sorriso meio triste respondeu:

— Vê lá, Fredo, vê lá se um dia encontras a árvore das patacas que eu não tive a sorte de achar.

Agora era a vez de Alfredo deitar os olhos à paisagem. Parecia absorto, mas era engano, não contemplava as montanhas ou as fragas, tão suas conhecidas, era para além daquelas serras que ficava o mundo, indefinido como a curiosidade que nele despertou naquele dia de sol e segada.

David Oscar Vaz

É escritor e professor de literatura brasileira. É autor dos livros de contos Resíduos (Prêmio da APCA) e A urna. Vencedor do concurso Criar Lusofonia do Centro Nacional de Cultura para a escrita do romance Trem do Atlântico a ser publicado em breve. Vive atualmente entre São Paulo e Lisboa.

Rascunho