Símios

Conto inédito de Yuri Al’Hanati
Ilustração: Theo Szczepanski
02/06/2014

Foi quase coreografado. Os macacos empunharam as metralhadoras e, de pronto, começaram a saraivada de tiros contra os outros macacos. Aqueles que já haviam escolhido um alvo no bando e feito a pontaria atiraram como que por reflexo em resposta à primeira saraivada de tiro, que a essa altura já não se sabe de onde veio. Os que ainda não haviam mirado foram despertados para o massacre e rapidamente sacaram as armas presas às costas pelas bandoleiras e descarregaram os pentes contra a clareira próxima à praia.

Os macacos que estavam no meio da clareira se diferiam em muitos aspectos dos macacos que estavam atirando. Eles eram chimpanzés comuns, pretos, numerosos e bem mais lentos do que seus algozes embusteiros. Estes, por suas vezes, estavam nas árvores em volta da clareira, estrategicamente posicionados para o abate. Pareciam rhesus normais, de pelagem que variava de um castanho claro a um marrom avermelhado e rostos claros, mas eram ligeiramente maiores do que a maioria dos rhesus, medindo cerca de um metro e vinte centímetros, quase como os chimpanzés. Outras coisas além do tamanho dos símios permanecerão para sempre sem explicação. O que faziam macacos daquela espécie ali, tão longe de suas florestas naturais; como conseguiram aquelas submetralhadoras, de fábricas tão diferentes e distantes; como e onde aprenderam a empunhar aquele instrumento humano de forma a eliminar formas de vida do planeta, e o que os motivou àquele aparentemente planejado ataque. Talvez suscitar questões como essas seja um artifício desnecessário, uma vez que o fato foi consumado, mas não é porque se racionaliza sobre a invalidez das indagações que elas deixam de ser menos insistentes. Este ainda é o principal mecanismo usado universalmente para tentar controlar o peso da realidade, diluí-la em sua concretude e, com sorte, relativizá-la diante de um tranquilizador e prepotente estoicismo construído por cima de uma parede pré-moldada de indiferença emergencial.

Ao contrário do que se faz supor sobre as cenas de ação da vida real, a chacina não foi tão rápida. Não seria uma questão de segundos, mas talvez, de minutos, a saraivada e o abate final dos sobreviventes. Durante um tempo considerável, só se ouviram as rajadas das submetralhadoras israelenses, americanas, belgas e alemãs, que abafaram os gritos de espanto, dor e revolta dos chimpanzés abatidos. Foi uma sinfonia de timbres e cadências diferentes, que de alguma forma se uniram em um caos sonoro poucas vezes visto em um mundo globalizado. Os estalos graves e abafados das Ingram preenchiam o fundo, enquanto as barulhentas P90 se destacavam em um agudo quase contínuo, embalado pelo som do vento cuspindo projéteis a um ritmo de 900 tiros por minuto. As MP5 pontuavam os compassos, e isso porque alguns dos macacos atiradores estavam com a pistola metralhadora alemã em modo burst, dando três tiros a cada vez que apertavam o gatilho. Por mais absurdo que possa parecer, os tiros saíam ritmados, como se cada um disparasse em um intervalo específico de tempo. As Uzis eram disparadas de modo tresloucado, sem mirar, e todos os rhesus que portavam a obra-prima da artilharia israelense deixavam de esmagar o gatilho apenas quando o clique do rebite travava a agulha. A rapidez com que trocavam de carregador, entretanto, fazia sugerir um treinamento quase militar para esses macacos, não fosse o fato de serem, a priori, incapazes de tal disciplina e de estarem disparando a esmo para o centro do bando rival. Mas atente aqui o leitor desavisado que a palavra empregada pode sugerir erroneamente um litígio entre as capelas. Dependendo da orientação espiritual de quem se propõe a ler este inacreditável e verídico relato, a condição de rival é ou conquistada com vilezas, imoralidades e outros predicados negativos à parte ofendida ou, ao contrário, é inata e latente até que se esteja, por fim, do outro lado do cano de uma arma. Para estes simplistas e honestos pensadores, ser rival é fruto de um único e fundamental interesse conflitante: o de estar vivo. E não estão equivocados neste caso, pois os chimpanzés, que eram abatidos em um banho de sangue infelizmente não inédito por aquele litoral da Serra Leoa, não haviam sequer trombado com aqueles rhesus asiáticos antes da hora de suas mortes. Mesmo assim, parece que foram escolhidos a dedo para o sacrifício em nome do desejo assassino dos primatas armados.

À altura do chão, o espetáculo de sangue, carne arrebentada, gritos e pequenas ogivas de metal era dos mais assombrosos. Os projéteis penetravam indistintamente em todos os macacos, e mesmo os que se protegiam por trás da carcaça de companheiros de bando — possivelmente até de familiares — logo também deixavam o mundo terreno, penetrados pelas balas perfurantes que atravessavam músculos e tendões já dilacerados de símios mortos. Cabeças que pendiam para trás enquanto as funções do corpo colapsavam se chocavam com outras cabeças que, entre o pânico e a surpresa, compreendiam a finitude de suas próprias existências a uma rapidez que nenhum ser vivo deveria ser obrigado a se submeter. Um dos chimpanzés teve os dois olhos milimetricamente furados por boletas de nove milímetros, mas sequer percebeu sua falta de sorte porque ao mesmo tempo em que perdia a visão, era crivado por outras dezenas de balas que o mataram instantaneamente. Uma mãe que agarrava dois filhotes com todas as suas forças acabou involuntariamente esmagando o tórax de um deles, poupando-o do sofrimento de testemunhar o fim da curta vida de seu irmão e da obstinada vida de sua mãe, metralhados juntos em uma dança agoniante de corpos que insistiam em se mover mesmo não carregando mais vida nenhuma. Antes do fim de cada um desses, um bravo macho alfa estufou o peito e arreganhou os dentes em um grito estridente para seus agressores, como se pudesse medir forças com toda a indústria bélica humana. Seus dentes foram arrancados por disparos quase instantâneos, provocados pela atenção que atraiu para si, e sequer teve tempo de virar a cabeça para proteger ao menos a arcada, pois teve seus miolos estourados por tiros que vinham da retaguarda. Tombaram corpo e parte do que um dia foi uma cabeça de macaco, entre pedaços de cérebro, dentes e um sangue escuro que tingiu para sempre de escarlate a memória do solo daquele lugar.

Apenas uma M1A1 era vista em meio às dezenas de submetralhadoras disparadas. O macaco que a empunhava era visivelmente diferente dos outros. Era albino, de pelagem alourada, quase branca, e tinha olhos vermelhos como rubis polidos. E, também ao contrário de seus companheiros de genocídio, tomados pela adrenalina da batalha covarde, mantinha uma estranha calma enquanto disparava premeditadamente sobre este ou aquele chimpanzé em particular. Escolhia suas vítimas sem pressa, e caso elas tombassem assassinadas antes que ele tivesse a chance de fazê-lo, ainda assim fazia questão de dar um tiro no crânio da carcaça recém-criada. O grito abafado dos macacos nas árvores e as saraivadas de balas não abalavam sua confiança, mas em meio à balbúrdia, esqueceu-se de seu entorno para fazer um gesto bonito. Depositou a ombreira de sua arma no galho em que estava e a empunhou de pé, em um gesto majestoso, digno de uma estátua de guerra erguida na praça de uma cidade civilizada, botou uma das mãos no peito e deu um grito longo e triste. Era de se pensar que os outros macacos seguiriam seu gesto, já que o rhesus albino indicava em suas características todas as evidências de ser o líder da capela. Mas ele estava sozinho em sua cerimônia pessoal. Nenhum símio prestou atenção ao fato, todos estavam empenhados em matar e morrer.

Os poucos chimpanzés que tiveram a sorte de correr com leves ferimentos de bala nos membros uma vez que o que seria uma primeira leva de disparos cessou foram perseguidos pelos rhesus que desciam da copa das árvores em alta velocidade berrando incessantemente de forma irada. Um a um, todos eles foram capturados pelos algozes. Alguns poucos — três, ou quem sabe dois — foram executados como seus pares, com tiros de metralhadora disparados quase à queima-roupa contra a cabeça. Os outros tiveram destinos iguais, mas de formas diferentes. Um deles foi enlaçado pela bandoleira de uma Heckler & Koch e, enquanto era imobilizado pela faixa, teve sua cabeça esmagada contra uma árvore com o auxílio de um pedregulho, desajeitadamente empunhado por um rhesus raivoso que repetiu o golpe muitas vezes após o derradeiro momento de vida de sua vítima. Outro foi humilhantemente montado nas costas por outro macaco, que enterrou sua cabeça na areia enquanto dava coronhadas tortas em sua nuca até que seu crânio também foi esfacelado. Um último, cujo corpo foi encontrado o mais longe da cena, foi arrastado pelas orelhas ao longo da faixa de areia para, enfim, ser placidamente afogado nas águas do Oceano Atlântico. O primata que interrompeu essa vida sacudiu um pouco a cabeça do chimpanzé para constatar a sua morte e por fim o deixou boiando ao sabor da maré, que eventualmente trouxe os restos mortais para a orla.

E foi assim. Em dez minutos, perto de sessenta chimpanzés foram brutalmente assassinados, cerca de trinta quilômetros ao norte da foz do esteiro Kagboro, por um sem número de macacos rhesus agigantados, saídos de lugar nenhum empunhando armas feitas pelo homem para matar outros homens. De maneira claramente premeditada, dilaceraram as vidas de outros macacos que sequer lhes eram conhecidos. À exceção do macaco albino, o fizeram de forma raivosa, sem cerimônias e tomados por um ódio que talvez nunca seja explicado. Por outro lado, explicar sentimentos nunca foi um talento humano, e por isso mesmo, também nunca foi algo desejável de maneira objetiva. Usa-se a descrição de sentimentos para preencher o vazio de sentido da música e da literatura, mas como se pode lançar mão de tal artifício para colocar em palavras o gatilho da barbárie, sendo que qualquer intuito nesse sentido será invariavelmente uma tentativa de justificá-lo? Mas aqui estamos mais uma vez, tentando usar a linguagem, essa criação tão injustificada diante do que se passou nesta costa, para tentar compreender o assombro de tamanho primitivismo. Paremos com essas tentativas desde já.

O bando se agrupou no solo, e os macacos calmamente foram recarregando suas armas com carregadores já preparados com balas, como se houvesse mais alguma coisa para se matar por ali. Começaram então a procurar por eventuais sobreviventes entre as pilhas de corpos, mas não havia dúvida de que estavam todos mortos. O assombro da destreza bélica dos símios se iguala ao assombro por seu senso de organização para procurar pela vida entre um amontoado de cadáveres. As buscas não eram organizadas, e aos poucos, foram se conformando de que a execução da emboscada fora bem-sucedida. Começaram a marchar para dentro do continente africano, bem lentamente e de forma desorganizada. Foi então que o macaco albino, que mantinha a calma que demonstrou durante todo o ocorrido, subiu em uma pilha de mortos e, tal qual um general, mais uma vez repetiu o gesto. Descansou a ombreira de sua metralhadora americana sobre a espalda de um chimpanzé morto, apoiou um pé em sua cabeça e outro em sua lombar, levou uma mão ao peito e emitiu um grito triste, mas não desesperado. Desta vez, todos os outros macacos o ouviram. Já não estavam mais concentrados em abater os chimpanzés, e todos os olhos se voltaram para a cena. O grito do macaco durou bons segundos, em um único e longo fôlego, como se entoasse o final de uma ária. Assim que o ar deixou seus pulmões por completo, todos os outros macacos levaram suas metralhadoras à altura dos olhos do rhesus albino e, sem qualquer ponderação, descarregaram as balas de suas armas. Metralhado por cima dos outros macacos mortos, ele caiu de pronto sobre a pilha e por lá ficou, como se nunca estivesse em outra posição que não a de um morto em cima de outros mortos, indicando apenas ser um dos últimos a morrer. Os rhesus abaixaram as armas, lançaram um olhar sobre o corpo aloirado que jazia sobre um monte preto de costas, cabeças, braços e pernas e, de pronto, viraram as costas e foram embora.

Yuri Al'Hanati

Formado em jornalismo pela UFPR, mantém o canal Livrada. Publicou contos nas revistas Arte e Letra: Estórias e Jandique. Seu conto Hominho integra a coletânea Livro dos novos (Travessa dos Editores). É autor do livro de crônicas Bula para uma vida inadequada (Dublinense).

Rascunho