Duas poetas italianas

Leia poemas de Mariangela Gualtieri e Maria Grazia Calandrone sobre a vida na pandemia
Ilustração: Carolina Vigna
25/03/2020

Seleção e tradução: Patricia Peterle

Um cenário apocalíptico não visto nas telas do cinema, mas sentido diretamente em nossas vidas há algumas semanas, virou de ponta-cabeça os ritmos cotidianos em muitas zonas diferentes e distantes do mundo. O que aparenta ser uma ficção histérica para uma pequena minoria desconcerta grandes e pequenas economias planetárias, coloca-as em crise e, ao mesmo tempo, põe em xeque o nosso estar no mundo. Nada de histeria ou fantasia, pois as mortes são reais, a quantidade de contaminados e internados em alguns países apontam para o colapso dos sistemas de saúde. Os números, sim, aumentam dia após dia, apesar de a China ter conseguido frear a epidemia em seu território. De epidemia para pandemia, somos todos afetados e todos somos possíveis vítimas da Covid-19, que já entrou para a história do século 21. A imagem que circulou o mundo dos caminhões do exército italiano, na cidade de Bergamo, carregando os corpos das vítimas para outras cidades, sem dúvida, assusta. É uma imagem da guerra: o fantástico tocando o real.

A crise que estamos experienciando leva a tantas outras crises, mas também ao desmascaramento de crises que estavam encobertas ou escondidas. Sem dúvida, uma visão de mundo implodiu com a chegada da Covid-19 — ou, melhor, já havia implodido, mas agora se apresenta de forma tão virulenta nos corpos dos estados e dos cidadãos. A emergência, normalmente, requer a urgência, mas nós já vivemos — muitas vezes sem nos darmos conta — sob esse mesmo regime da emergência. Uma emergência significa também aprender no limite do colapso, romper com os jogos do possível diante de um imprevisto. O dos nossos tempos não é somente um imprevisto, é também algo de ingovernável e incontrolável, e, por isso mesmo, mais ameaçador. A saída do curso comum se impõe inclusive no plano econômico, pois a sociedade — como estamos acompanhando na Itália e agora por aqui — padece pouco a pouco com isolamentos necessários, o ritmo frenético vai sendo freado por imposições e restrições que ferem importantes conquistas que não devem ser esquecidas.

A hipercomunicação e a hiperinformação, que estão à nossa disposição hoje, não foram suficientes para uma reação de prevenção e precaução depois dos anúncios das autoridades chinesas. A esse respeito seria possível abrir uma discussão outra, mas a questão, aqui, é a tagarelice que invadiu as nossas vidas, frases feitas e vazias que enchem algo que permanece oco. Nesse sentido, a língua da literatura — em tempos difíceis — é uma língua que exige certa demora, descarta a tagarelice e acolhe um vozerio do pensamento e do afeto. Com isso, ela não nos isola, não é egoísta, mas é generosa e se abre. Certa tendência da poesia contemporânea traz para seu cerne questionamentos éticos, da condição humana, das nossas relações e do nosso viver em comunidade.

É nesse sentido que duas vozes da poesia italiana contemporânea merecem ser traduzidas e escutadas por aqui: Mariangela Gualtieri (1951) e Maria Grazia Calandrone (1964), poetas conhecidas e traduzidas em diferentes línguas. Mariangela Gualtieri faz uma advertência desde o primeiro verso com “Isso quero te dizer”, chamando para uma reflexão de como vivemos, explorando e abusando cada minuto de nossas vidas, no poema intitulado Nove de março de dois mil e vinte. Um registro apoético no poético, uma vez que na data ficam inscritos o momento de crise e a solidão do isolamento. Maria Grazia Calandrone, com uma grande sensibilidade, pensa nos invisíveis, naqueles que não podem ou não tiveram a autorização para o isolamento forçado, mas que continuam a trabalhar pela vida dos outros colocando a própria em contínuo risco. A chamada Zona Vermelha, título do poema, refere-se aos territórios em que as pessoas não podem mais sair de casa devido ao risco do contágio.

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Ilustração: Carolina Vigna

Zona Rossa, de Maria Grazia Calandrone [1]

a N.

Ho un’amica che continua a lavorare in fabbrica nella Zona Rossa. Alla pressa
il contatto forzato coi colleghi
è stretto. Dice: «Noi operai
siamo carne da macello. Nessuno parla
dei morti sul lavoro», ogni anno un conteggio
di prodotti stoccati e di mosche
morte nella regione della neve, dove l’orto è tagliato dai cancelli
e divide in porzioni disuguali
la terra. Tutto
finisce, per tutti, in due metri quadri
di terra, rivoltata da una benna
manovrata da un uomo reso muto
dal lavoro coi morti. Tutto
è messo a tacere
sotto uno strato di viridescenti muffe nobili
raggelate dal soffio della prima notte. Dice: «Non ho paura
per me». Non aggiunge: «Sarebbe quasi una liberazione». Anzi, emette una
scintilla
di pura gioia
se le chiedo, in pensiero: «Hai mangiato?»
(Roma, 12 marzo 2020)

 

Zona Vermelha

para N.

Tenho uma amiga que continua a trabalhar na fábrica na Zona Vermelha. Na prensa
o contato forçado com os colegas
é cerrado. Diz: “Nós operários
somos carnes de abate. Ninguém fala
dos mortos no trabalho”, todo ano uma contagem
de produtos estocados e de moscas
mortas na região da neve, onde o verde é cortado pelos portões
e divide em porções desiguais
a terra. Tudo
acaba, para todos, em dois metros quadrados
de terra, revirada por uma pá
manuseada por um homem que ficou mudo
pelo trabalho com os mortos. Tudo
é posto em silêncio
sob uma camada de viridescentes mofos nobres
congelados pelo sopro da primeira noite. Diz: “Não tenho medo
por mim”. Não acrescenta: “Seria quase uma liberação”. Aliás, emite um lampejo
de pura alegria
se lhe pergunto, em pensamento: “Você comeu?”.
(Roma, 12 de março de 2020)

Ilustração: Carolina Vigna
Ilustração: Carolina Vigna

Nove marzo duemilaventi, de Mariangela Gualtieri [2]

Questo ti voglio dire
ci dovevamo fermare.
Lo sapevamo. Lo sentivamo tutti
ch’era troppo furioso
il nostro fare. Stare dentro le cose.
Tutti fuori di noi.
Agitare ogni ora — farla fruttare.

Ci dovevamo fermare
e non ci riuscivamo.
Andava fatto insieme.
Rallentare la corsa.
Ma non ci riuscivamo.
Non c’era sforzo umano
che ci potesse bloccare.

E poiché questo
era desiderio tacito comune
come un inconscio volere —
forse la specie nostra ha ubbidito
slacciato le catene che tengono blindato
il nostro seme. Aperto
le fessure più segrete
e fatto entrare.
Forse per questo dopo c’è stato un salto
di specie — dal pipistrello a noi.
Qualcosa in noi ha voluto spalancare.
Forse, non so.

Adesso siamo a casa.

È portentoso quello che succede.
E c’è dell’oro, credo, in questo tempo strano.
Forse ci sono doni.
Pepite d’oro per noi. Se ci aiutiamo.
C’è un molto forte richiamo
della specie ora e come specie adesso
deve pensarsi ognuno. Un comune destino
ci tiene qui. Lo sapevamo. Ma non troppo bene.
O tutti quanti o nessuno.

È potente la terra. Viva per davvero.
Io la sento pensante d’un pensiero
che noi non conosciamo.
E quello che succede? Consideriamo
se non sia lei che muove.
Se la legge che tiene ben guidato
l’universo intero, se quanto accade mi chiedo
non sia piena espressione di quella legge
che governa anche noi — proprio come
ogni stella — ogni particella di cosmo.

Se la materia oscura fosse questo
tenersi insieme di tutto in un ardore
di vita, con la spazzina morte che viene
a equilibrare ogni specie.
Tenerla dentro la misura sua, al posto suo,
guidata. Non siamo noi
che abbiamo fatto il cielo.

Una voce imponente, senza parola
ci dice ora di stare a casa, come bambini
che l’hanno fatta grossa, senza sapere cosa,
e non avranno baci, non saranno abbracciati.
Ognuno dentro una frenata
che ci riporta indietro, forse nelle lentezze
delle antiche antenate, delle madri.

Guardare di più il cielo,
tingere d’ocra un morto. Fare per la prima volta
il pane. Guardare bene una faccia. Cantare
piano piano perché un bambino dorma. Per la prima volta
stringere con la mano un’altra mano
sentire forte l’intesa. Che siamo insieme.
Un organismo solo. Tutta la specie
la portiamo in noi. Dentro noi la salviamo.

A quella stretta
di un palmo col palmo di qualcuno
a quel semplice atto che ci è interdetto ora —
noi torneremo con una comprensione dilatata.
Saremo qui, più attenti credo. Più delicata
la nostra mano starà dentro il fare della vita.
Adesso lo sappiamo quanto è triste
stare lontani un metro.

 

Nove de março de dois mil e vinte

Isso quero te dizer
que devíamos parar.
Sabíamos disso. Sentíamos todos
que era demasiado furioso
o nosso fazer. Estar dentro das coisas.
Todos fora de nós.
Sacudir cada ora — fazê-la render.

Devíamos parar
e não conseguíamos.
Era para fazer juntos.
Diminuir o ritmo.
Mas não conseguíamos.
Não havia esforço humano
que nos pudesse barrar.

E visto que isso
era desejo tácito comum
como um inconsciente querer
quiçá a espécie nossa obedeceu
desatou as correntes que mantêm blindada
nossa semente. Abriu
as fissuras mais secretas
e deixado entrar.
Quiçá por isso, depois, houve um pulo
de espécie — do morcego até nós.
Algo em nós quis escancarar.
Quiçá, não sei.

Agora estamos em casa.

É portentoso o que acontece.
E tem ouro, acredito, nesse tempo estranho.
Quiçá existam dons.
Pepitas de ouro para nós. Se nos ajudarmos.
Há um intenso forte chamado
da espécie agora, e como espécie, agora,
cada um se deve pensar. Um comum destino
nos mantém aqui. Sabíamos disso. Mas não muito bem.
Ou todos ou ninguém.

É potente a terra. Viva realmente.
Eu a sinto pensativa de um pensamento
que nós não conhecemos
E o que acontece? Consideremos
se não é ela que move.
Se a lei que mantém bem guiado
todo o universo, se o que acontece me pergunto
não seja a plena expressão daquela lei
que também nos governa — exatamente como
cada estrela — cada partícula de cosmo.

Se a matéria obscura fosse isso
manter-se ao lado de tudo num ardor
de vida, com a varredoura morte que chega
para equilibrar todas as espécies.
Mantê-la dentro de seus limites, em seu lugar,
guiada. Não somos nós
que fizemos o céu.

Uma voz imponente, sem palavra
nos diz agora para ficar em casa, como crianças
que muito aprontaram, sem saber o quê,
e não terão beijos, nem serão abraçadas.
Dentro de cada uma freada
que nos leva para trás, quiçá nas lentidões
das antigas antepassadas, das mães.

Olhar mais para o céu,
pintar de ocre um morto. Fazer pela primeira vez
o pão. Olhar bem um rosto. Cantar
devagarinho para que uma criança durma. Pela primeira vez
apertar com a mão outra mão
sentir a intensidade da aliança. Que estamos juntos.
Um único organismo. Toda a espécie
carregamos em nós. Dentro de nós a salvamos.

Aquele aperto
de uma palma com a palma de alguém
aquele simples gesto que nos é impedido agora —
nós voltaremos com uma compreensão dilatada.
Estaremos aqui, mais atentos, acredito. Mais delicada
nossa mão estará dentro do fazer da vida.
Agora sabemos o quanto é triste
estar distante de um metro.

 

NOTAS
[1] Publicado em Antinomie, https://antinomie.it/index.php/2020/03/15/la-zona-rossa/

[2] Publicado em Doppiozero, https://www.doppiozero.com/materiali/nove-marzo-duemilaventi

AS AUTORAS
Maria Grazia Calandrone
Nasceu em Milão, na Itália, em 1964. Como poeta, publicou os livros Giardino della gioia (2019), Il bene morale (2017) e Serie fossile (2015), entre outros.

Mariangela Gualtieri
Nasceu em Cesena, na Itália, em 1951. Publicou, entre outros, os livros de poemas Quando non morivo (2019) e Le giovani parole (2015).

 

Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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