Poemas de Sândrio Cândido

Leia os poemas "Profissão de fé" e "Conselhos"
Ilustração: Alexandre Staut
02/06/2021

Profissão de fé

deus:
eu já não lhe creio
mas continuo a escrever poemas

ainda capino a terra
sento-me diante da semente
e choro

ainda entro nos bosques
e canto

e louvo na tua ausência
os que remendam estradas

ainda admiro as mãos
que se recolhem na noite
a tatear um coração

é possível que estejas
fora do que dizem de vós

dói tanto a linguagem
tu sabes

há tanto sertão no mundo
tanto silêncio

se fôssemos botar reparo
diríamos que o teu deserto
nunca terminou

deus
eu já não rezo

só permaneço no mundo
e aceito ser terra

sou essa viola que chama
e dança.

…..

Conselhos

Para João, meu pai.

Ao cair da tarde voltar à casa,
Meu filho, levemos a enxada.

Dela se há de necessitar
quando o pasto maior que o jardim
convulsionar o sonho.

Estar ao rio à beira do tempo
entre o desejo do regresso
e o início da partida.

Essa manhã é apenas prelúdio,
toda canção dói na despedida!

Vede os movimentos da corredeira,
são tão fortes, são tão leves!

Bote atenção no que eu falo
é um evangelho esse rio descendo.

Pergunte pras lavadeiras,
só elas sabem decifrar seus versos.

Escute bem as coisas do nada
coloque nelas o seu coração.

Não se entupa de lagartas,
espere com calma a borboleta.

Meu filho, morrer é lento,
bote reparo no que eu falo.

Dependure seus olhos no tempo
Coloque devagar as sandálias.

Sob a memória estenda o corpo
descalce sem medo o tempo.

Deixe os passos caminharem
não se importe com as estradas.

Há de ter um modo de decocar
pra remendar essa falta.

Meu filho, é essa a tua sina:
cavoucar a linguagem.

Eu nada entendo de poesia
só sei que o adeus é faca.

Não sei modo de salvar palavra
não sei costurar lamento.

Em minhas mãos estão
o boi, o cavalo, a rédea, o freio.

Igual a você também não encontro
maneira de estancar o tempo.

É por isso que eu te digo
levemos a enxada

dela se há de necessitar
quando esburacada ficar a canoa
pra sempre no meio d’água.

Sândrio Cândido

Nasceu em 1991. Afro-brasileiro e mineiro, é poeta, graduado em filosofia e professor. Autor de Epifania (Patuá, 2014) e Dindinhas (Venas Abiertas, 2021), também tem poemas publicados em diversas revistas literárias digitais como Diversos Afins, Germina, Mallarmargens, etc.

Rascunho