Poema de Rubens da Cunha

Leia o poema "Breve dramaturgia para corpos isolados"
Rubens da Cunha, autor de “A guardadora da ponte e outras biografias inventadas”
01/08/2021

Breve dramaturgia para corpos isolados

I
que exílio é viver
na república dos ressentidos
sem ser um ressentido

sem entender
a língua da picuinha
o gestual da vingança

sem saber como lidar
com a queda contínua

II
o silêncio é um osso entre nossos ossos

III
sombras enquanto somos

enquanto saímos dos abismos
enquanto repetimos gestos

plurais e vastos

amamos — às vezes —
pouco escondidos
— noutras vezes —
parcos
porcos

pois sobras alimentam
o que amanhã alimento será

IV
é tarde em nós

lá fora, homens britam nossos ouvidos
agitam seus corpos de pedra e fala

aqui, sussurros
breves pedaços de canções e piadas
alguma dor na espinha

ou no espinhaço
— conforme o dizer da avó —

lá fora, o tempo é uma fêmea atrasada

aqui, o que nos tornamos
sangra e salga memórias
traduz bestagens
chora um pouco
vulgariza-se

em suma,
talvez durma talvez suma

V
mas em nós
tem qualquer coisa de pulso
de voz que se abre

tem qualquer coisa de janeiro
sempre acontecendo

tem rosas também,

um jardim inteiro de noéis e guimarães

e tem alegria
que não pode ser comprada nem vendida

ela vem no sangue:
só sai de nós por doação

Rubens da Cunha

Nasceu em 1971, em Joinville (SC). É docente da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) e editor do Jornal Brasileiro de Teatro Caixa de Ponto. Autor de Campo avesso (2001), Casa de paragens (2004), Aço e nada (2007), Vertebrais (2008), Crônica de gatos (2010), Curral (2015), Breves exercícios para fugitivos (2015) e A guardadora da ponte e outras biografias inventadas (2020).

Rascunho