O todo no uno, o Uno no todo

Crônica inédita de Ewerton Martins Ribeiro
Ilustração: FP Rodrigues
01/05/2025

STOP.
A vida parou
ou foi o automóvel?
Carlos Drummond de Andrade

Algum tempo atrás, depois que o meu pai morreu, recebi de herança um Uno furgão — uma esdrúxula joia branca, com apenas quarenta mil quilômetros rodados, apesar de já ter mais de dez anos. É uma espécie de Brastemp com rodas — bate como estivesse centrifugando cuecas.

Na subida, a carrinha avança austera e determinada: vai como se lavasse de uma só vez toda a roupa do mês. Quando desce, despenca solta como a água de um enxágue, rangendo placas e bielas, na iminência de alçar voo. É mesmo uma máquina.

O que concluí é que o carro foi feito para andar com carga, como é comum na lida diária de uma pessoa jurídica — algo que nunca acontece comigo, pessoa salvo engano física e sem um pardal pra dar de beber, adepta apenas daqueles seis cês verdadeiramente indispensáveis ao dia de um homem urbano comum.

Calça, Camisa, Chinelo, Cueca, Cartão, Celular: o que mais alguém realmente precisa para poder sair e arranjar alguma encrenca pela cidade? Vá lá, sete cês, neste país tão carente de transporte público funcional: Calça, Camisa, Chinelo, Cueca, Cartão, Celular… e o Carro. Voltamos ao carro.

A herança, portanto, veio a calhar, sobretudo em face de um contexto em que se tornou praticamente impossível comprar automóvel no Brasil — ao menos para quem não é servidor do judiciário, neto de coronel ou filha de militar. Quando os carros ficaram assim tão caros? Perdi esse timing.

Mas cá estou eu com o meu Uno, então não posso reclamar. O contratempo é que o carro não tem ar condicionado nem direção hidráulica, além de balançar mais que carro alegórico nas curvas. Em contrapartida, conta com inesperados vidros elétricos — recurso que, no meu Uno, além do benefício direto, ensina uma importante lição sobre a faculdade da paciência.

Na coluna dos benefícios, soma-se o quesito economia: a última vez que precisei encher o tanque foi no tempo em que o fascismo ainda grassava no país, e amigos e familiares se sentiam confortáveis em bradar todo o seu ódio por nós em praça pública. Bem, talvez não faça tanto tempo assim.

O fato de só ter bancos na frente poderia ser uma questão, mas a limitação tem soado menos como problema que como solução, se é que com o último parágrafo sobre as companhias eu me faço entender. E a questão de a direção ser mecânica… bem, tenho malhado o muque enquanto dirijo, otimizando o tempo.

Nos últimos meses, alguns motoboys me interpelaram nos sinais de trânsito, perguntando se eu estava vendendo. Passado o susto, entendi a razão do interesse: em sua combinação de preço, consumo e espaço, o modelo é um sonho para quem tenta ganhar o do dia com entregas — isto é, mais de 1,5 milhão de pessoas do país.

Já estou com meia dúzia de números anotados — gente interessada em ter prioridade na compra, caso eu decida vender. Se chegar a uma dúzia, faço um leilão. De fato, amigos têm insistido para que eu venda e compre algo mais funcional para a minha rotina de não-entregador da Amazon, mas eu não sei; acabei criando apego.

No início foi a coisa da herança, mesmo: o carro era a última lembrança do meu pai, homem de quem eu sempre tive, contraditoriamente, pouquíssimas lembranças. Mais tarde, passou a ser mais uma coisa nossa — minha e do carro, digo, uma espécie de entendimento mútuo que criamos; uma certa intimidade, por assim dizer.

É como se, de uma herança, eu tivesse vislumbrado um legado.

De uma forma que eu não sei explicar, sinto que eu entendo esse carro, o que ele pode significar em um mundo como o de hoje, ainda que eu não saiba dizê-lo — e sinto que ele, em contrapartida, compõe o conjunto de fatores que conferem algum sentido à minha vida neste momento. Mas… quanto dura um momento? A gente vai ver e, de repente, já passou. Passou?

Sem saber como responder a essas perguntas em um mundo em que tudo se transforma à velocidade da luz e perpetuamente, mas de alguma forma sempre voltando ao mesmo, em vez de vendê-lo, comecei… a reformá-lo. Brincando, brincando, já estou me programando para trocar a ferrugem das chapas de polietileno das janelas pelo luxo de dois vidros verdadeiros…

Mas é mais para dar um astral. De certa forma, faço do meu carro uma máquina de lavar toda uma antiga roupa suja que nunca termina de se limpar, como esse país bem nos ensinou nos últimos anos. Tento me lembrar: de tempos em tempos, é importante também lavarmos a máquina.

***

Certa vez, ouvindo o logos (isto é, o conjunto de leis que, compondo uma harmonia de inteligência onipresente, comanda o universo e se plenifica no pensamento humano — uau!), Heráclito de Éfeso cravou que o todo é uno: dividido-individido, gerado-ingerado, finito-infinito, pai-filho, mortal-imortal. Para Heráclito, o todo é um só, a despeito de toda a sua pluralidade — ou melhor, justo na amplitude dela.

É isto, de certa forma, o que tento dizer: para mim, algo deste uno está simbolizado hoje pelo meu Uno, como de resto cada um simboliza o que quer como bem entende (e sobretudo como não entende, o que costuma ser a praxe).

Ainda Heráclito: todas as coisas que existem em pluralidade diversa se realizam, integralmente, como o próprio cosmo unitário; tudo o que é diverso se consubstancia na singularidade de uma única unidade ontológica, ainda que nada disso possa ser percebido imediatamente — ainda mais quando se começa escrevendo uma crônica sobre um carro, e o rio de palavras deságua em filosofia barateada…

Heráclito é o autor daquela máxima sobre não ser possível entrar duas vezes no mesmo rio, já que da segunda vez tanto quem entra quanto o rio são outros, já. Ele falou sobre todas essas coisas nos anos quinhentos de Antes da Era Comum, quando viveu e morreu — não sem antes reformular a sua antiga máxima em uma versão mais definitiva.

Teria dito Heráclito, antes de oferecer inexplicavelmente o próprio corpo aos cães: “Tudo passa, até a uva passa”. Foi mais ou menos nesta mesma época que herdei este carro de meu pai, para o qual, na falta de solução para os meus impasses… acabo de comprar quatro novos pneus.

NOTA
A crônica O todo no uno, o Uno no todo pertence ao livro inédito O tempo das moscas-de-maio, vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2024.

Ewerton Martins Ribeiro

Escritor nascido em Belo Horizonte (MG), é também jornalista da UFMG e doutor em estudos literários. Publicou a novela A grande marcha (Circuito, 2014) e o infantojuvenil Ficções do minidicionário ou A guerra secreta dos insetos (Urutau, 2022).

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