O tempo das palavras

Pelo quarto, ecoa meia conversa; o suficiente para ela ser decifrada
Ilustração: FP Rodrigues
25/02/2017

Uma baía ao amanhecer. Tudo está calmo, ainda acordando. As lâmpadas de alguns prédios brilham, amarelas, ainda borradas pelo amanhecer. É uma zona industrial com fábricas, galpões e guindastes. Antes do expediente tudo parece estático e abandonado. Algum verde se intromete na cena, resquícios da natureza; de um outro mundo possível. Nesta hora da manhã, o verde, as verdades e as vontades confundem-se. No centro deste pequeno complexo industrial, destacam-se dois grandes moinhos para geração de energia eólica. Eles giram devagar, indiferentes, aproveitando o vento que sopra calmamente. Eles existem como se fossem parte da natureza; como se sempre houvessem existido. Os moinhos giram. As luzes refletem-se na água. O tempo passa. O vento sopra. Os moinhos como árvores. Tudo escurece.

Gustavo abre os olhos sem vontade. Em algumas manhãs é especialmente difícil levantar-se, ele pensa. Mas ele já está acostumado. Faz uma semana que quase não dorme. Ao invés de olhar pela janela, para os moinhos que o observam dia e noite, que provam que nada mudou, ele olha para a parede. Está cansado daquelas grandes hélices, sempre impassíveis, sempre certas de si mesmas, girando quase estáticas, dizendo: “para que a pressa? No seu tempo, tudo se ajeitará”. Olhando para a parede, ele se imagina deitado na cama, em um quarto que também é sala e cozinha; um quarto com móveis usados e um tapete persa que Ana o ajudou a escolher.

Na cama, ele tenta fugir da luz que entra pela janela, e busca outro horizonte. Quando está prestes a integrar-se no branco da parede, prestes a esquecer que logo precisará voltar à sua vida normal, seu celular começa a tocar. No visor aparece o nome de Ana. Mas não é com ela que ele quer falar; ainda assim, o celular insiste. Depois de um tempo, Gustavo estica o braço e, com sono, atende a chamada.

“Alô?”

Pelo quarto, ecoa meia conversa; o suficiente para ela ser decifrada. Não há mistérios, só vontades e desencontros.

“Não tem problema. Eu já estava praticamente acordado. Pode falar… Eu resolvi não ir à aula hoje… é, não tenho cabeça… Em quinze minutos? Hum… não, tudo bem. Eu desço em quinze minutos. Até já.”

Gustavo não tem mais tempo nem razão para ficar na cama. Sem pensar, aceitara sair de casa. Já era hora. Há vantagens em sermos mecânicos; em sermos puxados para fora da cama pela necessidade de cumprir uma promessa quase esquecida. Na bagunça, ele encontra uma calça jeans e uma camiseta listrada menos amassada que as demais. Com sono, faz tudo devagar, mas decidido. Quase esquece que não era em Ana que ele pensava; que não era com ela que queria encontrar-se. Ao menos, ele repete para si mesmo, o dia já tem um objetivo claro. Vestido, ele ajeita o cabelo olhando-se no espelho. Apesar de continuar desarrumado, solta um suspiro resignado e dá-se por satisfeito. Pega uma máquina fotográfica, coloca na mochila, e vai até a geladeira, onde acha uma maçã. O gosto da pasta de dentes faz dela uma fruta esquisita. Ao mordê-la, sem perceber, Gustavo faz uma careta.

***

Ilustração: FP Rodrigues

No Carro, dirigindo pelos subúrbios da Nova Inglaterra, ao som de música country, Ana tenta puxar conversa.

“Pegou a máquina?”

Desde que Gustavo entrara no carro, ele não falara nada. O azul claro da manhã já substituíra o lusco-fusco da madrugada. Com um vestido de bolinhas coloridas, Ana parece o oposto do seu amigo, vestido com uma camisa amassada e listrada. Dois palhaços. Uma equipe?

“Pegou a máquina?”, ela repete mais incisiva.

“A máquina? Está na mochila. Mas não entendi direito para onde vamos…”

Ana sorri satisfeita. Talvez agora, começada a conversa, a manhã desenrole-se como ela imaginara.

“É porque eu não falei. É uma surpresa.”

Gustavo sorri. A brincadeira é boba porém charmosa. Enquanto Ana dirige, ele muda a estação do rádio sem pedir. Depois de um tempo, encontra uma estação que o agrada. Ana sorri como se soubesse que ele finalmente encontrara o que procurava.

“Donizete,” ele diz. “Una furtiva Lacrima. Posso deixar aí? Aliás, posso mexer no rádio? Esqueci que o carro é seu.”

Cada um do seu jeito, cada um por motivos um diferentes, os dois sentem-se cúmplices. Acham que se entendem. Mas nunca estamos cem por cento na mesma página. Gustavo aumenta o som. Os dois escutam a música por um instante. Quelle festose giovani/ invidiar sembrò./ Che più cercando io vo?/ Che più cercando io vo?/ M’ama! Sì, m’ama, lo vedo. Lo vedo. Ana continua:

“Você está melhor?”

“Igual.”

“Quase não tenho saído de casa. Mas estou bem.”

“Não falou mais com ela?”

“Falar o quê?”

“Você ao menos tentou ligar outra vez?”

“Não, não tentei. Imagino que ela não queira falar comigo. E, depois, não há muito o que dizer. Não é bem uma história original,” ele completa. “Ainda que doa como se fosse.”

Depois de um longo silêncio, a conversa, dolorosa por motivos diferentes para cada um dos dois, se assenta. Só então Ana continua:

“Mas nada que algumas semanas não resolvam.”

“Claro. O mundo continua girando.”

“Como um moinho.”

“Como um moinho.”

“Por isso que se distrair é bom. Ajuda a passar o tempo.”

Gustavo assente com um sorriso e olha para a paisagem enquanto a música acaba de tocar: Ah, cielo! Si può! Si, può morir!/ Di più non chiedo, non chiedo./ 
Si può morir! Si può morir d’amor. Os dois ficam um tempo em silêncio. A ironia, se existe, passa despercebida; perde-se na tradução e na melodia; dissipa-se no ar. Mais acordado, Gustavo continua:

“É normal querer ficar em casa depois de uma pequena crise, não é? É uma prova de que havia algo.”

“Sim. Mas compromissos são… compromissos. Você não tinha aula hoje?”

“Decidi não ir. Foucault, Deleuze, não sei. Achei melhor ficar em casa.”

“Você é tão metódico. Se não está na biblioteca sabemos que há algo errado. Foi por isto que resolvi te convidar para um passeio.”

“A rotina é o melhor ansiolítico.”

Não era esta a resposta que Ana esperava. Ainda assim, ela sente-se contente em ter tirado o seu amigo da solidão do seu apartamento. Falta agora conseguir puxá-lo de seu pequeno abismo e trazê-lo para o seu lado. Percebendo sua amiga pensativa, Gustavo continua:

“É engraçado como uma crise, mesmo besta e juvenil, transforma a normalidade em um desafio. Tudo, até a coisa mais simples, de repente, torna-se um obstáculo. É como se passássemos a arrastar blocos de concreto por aí… como se ir até o banheiro ou a faculdade fossem desafios intransponíveis”.

“Não é para tanto,” diz Ana com um sorriso. “O dia só está começando.”

“Acredite. Levantar da cama hoje demandou uma concentração e energia descomunais. Acho que se você não tivesse me ligado, eu ainda estaria lá, deitado, olhando para aqueles moinhos girarem insistentemente devagar do outro lado da baía.”

“Você sabe que é um prazer.”

“Mas o problema é que sair da cama não é só sair da cama,” continua Gustavo sem dar ouvidos à amiga. “Ir à biblioteca não é só ir à biblioteca. Quando acordo assim, preciso me preparar, pensar em quem vou encontrar em cada lugar aonde pretendo ir, e se quero ou não encontrá-los; se valerá a pena ou não a angústia de ver quem eu preferiria evitar.”

Ana sente-se responsável por seu amigo. Os cinco ou seis anos que os separam parecem muito mais. Mas como ser compreensível sem ser condescendente? Como interpretar, dentro do que ela sente, o que sente seu amigo?

“É por isso que temos rotina,” insiste Ana. “Assim você não precisa decidir ir à biblioteca. Você vai porque é hora e dia de ir à biblioteca. Igual a almoçar ou ir ao banheiro. Não é por isto que você é metódico assim?”

“Mas o problema é quando a rotina é interrompida por força maior, como agora que não consigo dormir. Como continuar vivendo uma vida medida?”

“Não sei. Mas cedo ou tarde tudo volta ao que era. Isto é claro. Não é como se o mundo fosse desmoronar por causa dos nossos dramas particulares.”

“Talvez não, mas talvez sim. Sem rotina não há harmonia. E sem harmonia não há produtividade. E sem produtividade, quem somos nós? Não existem artigos, não existem bolsas de estudos, não existe doutorado.”

“E quem liga para isso? Para o nosso doutorado…”

“Este é só o começo. O equilíbrio não é só profissional… também é… também é cósmico. Tudo depende de tudo, entende? Portanto tudo é importante, até os mínimos detalhes da nossa rotina, até sua pesquisa sobre Deleuze e Guattari.”

Ana sorri. Pensa na lógica que Gustavo criara para justificar sua vontade em não sair de casa. Pensa que seria mais fácil ele simplesmente dizer que ainda não superou seu tropeção amoroso. Entrando no jogo com um prazer quase sádico, mas também com ciúmes da aporia que Gustavo criara para Nicole, Ana continua a conversa:

“Será que este equilíbrio cósmico existe mesmo? E se ele existe será que depende de nós? Não sei se vale a pena nos preocuparmos com isto. Acho melhor aproveitar o dia ensolarado, o passeio e a companhia,” ela completa com um sorriso.

Aceitando o desafio, Gustavo continua com empolgação redobrada, levando seu raciocínio adiante:

“Como não depende de nós? Toda e qualquer decisão, por menor que seja, em uma lógica fractal, é fundamental. Tudo depende de nossas escolhas, porque tudo está conectado. E nossas escolhas dependem de tudo, porque o todo e as partes estão alinhados. Se mexermos em uma parte pequena do universo, no nosso dia a dia, mexemos em todo o universo. É muita responsabilidade”.

Ana ri, pensando no lado menos cósmico da angústia do seu amigo. Não era assim que ela imaginara sua manhã antes de sair de casa. Ao menos Gustavo parecia entretido com a conversa e a companhia, disposto a aproveitar o passeio.

“Física quântica ou paranoia?”, ela completa. “De qualquer jeito, suponhamos que um de nós mexa no universo, na parte e no todo, e o que é que tem? As coisas estão em movimento… o universo está em expansão… mais ou menos um empurrão não mudará muita coisa.”

“Como não? Se aceitarmos que tudo está conectado, precisamos aceitar também que com uma decisão errada, seja ela grande ou pequena, podemos bagunçar todo o planeta. O cosmos, por pior que as coisas pareçam, está em um equilíbrio delicado, sobrevivendo na beira do precipício. Quem quer arriscar deitar tudo a perder? A verdade é que as coisas sempre podem piorar. E ninguém quer, em sã consciência, apressar o fim do universo. Não fomos feitos para viver com este peso nas costas.”

“Não?”

“Não. Nem eu nem ninguém. Palhaço ou astronauta, este é um peso grande demais para carregarmos.”

“Então,” continua Ana com ar triunfal, “é o que eu disse. O melhor é mesmo ignorar esta lógica fractal e continuar alheio às nossas responsabilidades cósmicas. Eu, por exemplo, aceito não pensar em nada disso. O problema é você que criou a teoria. Se ignorá-la, o que será dela? Ela perde sua função paranoica poética. Um desperdício.”

“Quem disse que eu não acredito?”

“Se acreditasse não estaria aqui. Ou estaria? Ainda estaria na cama, ignorando seus medos, ou encarando os seus moinhos, vendo o tempo passar sem fazer nada, sem aproveitar este dia ensolarado.”

“Talvez. Ou talvez eu esteja vivendo em negação, só isto; ignorando as minhas responsabilidades perante o todo. Afinal, não é fácil assumir que temos parte no caos do universo. Ainda que, se você parar para pensar, esta teoria justificaria minha vontade de não sair de casa; daria um ar positivo a toda esta semana e suas lágrimas derramadas. Hoje, se ficasse em casa, me privaria deste dia maravilhoso, da sua agradável companhia, mas tudo em prol de um bem maior: o equilíbrio do universo. Eu seria… um mártir. Abdicaria de prazeres mundanos em nome do bem de todos nós. Ficaria em casa, cuidando para não alterar o balanço do universo, das coisas e dos homens.”

“Não sei… Acho que só o fato de você ter pensado nisto deveria ser mais uma razão para sair de casa e não ficar o dia na cama pensando em como justificar, sem encarar a verdade e o mundo, sua vontade de continuar deitado. Isto para mim tem outro nome: depressão.”

Gustavo ri. Não há como ignorar que há algo de charmoso na insistência de Ana em colorir seu dia. Para se redimir, ele responde em tom de brincadeira:

“Viver é realmente complicado. Não é nossa culpa que não estamos preparados.”

As casas suburbanas dão lugar a uma outra paisagem, marcada pelo mar e seu horizonte infinito. O carro segue o recorte do continente. O dia é realmente bonito. Detalhes em temas marítimos adornam as casas e jardins: barcos a vela, âncoras, gaivotas e marinheiros. Depois de uma pausa, Gustavo continua:

“Não sei. Quanto mais penso, mais acho que o equilíbrio das coisas é realmente complicado. Talvez você tenha mesmo razão e ficar na cama não seja uma solução. Se o equilíbrio das coisas for mesmo delicado como falávamos, ficar na cama é tão perigoso quanto sair. O balanço do todo talvez dependesse exatamente da minha ida à universidade, da minha decisão de sentar, todos os dias, na mesma escrivaninha, ou da minha participação em aulas e seminários.”

“Da sua leitura de Foucault e Adorno? Duvido.”

“Não há solução. Se a escolha certa for exatamente sair da cama, e em vez disso fiquei deitado a manhã inteira, a culpa também é minha. E, para piorar, neste caso eu teria pecado pela minha covardia; pelo medo de não enfrentar o mundo e recusar, por exemplo, seu convite para passear. Minha inércia colocaria tudo a perder.”

Ana sorri. Sente-se, finalmente, próxima do seu amigo. Sente-se perto de uma solução.

“Então é isto: saia de casa. É bom para você, para mim e para o universo. Elucubrações demais não levam a lugar nenhum. Para mim sua tese só confirma o que todos já sabíamos: você, assim como o universo, anda fora do eixo.”

“Pode ser,” responde Gustavo rindo. “Mas talvez não. Talvez a solução fosse mesmo ficar na cama e minha coragem, e a sua espontaneidade, colocaram tudo a perder…”

“Pode ser.”

“Viver é mesmo uma grande aporia.”

“Uma grande aporia.”

“Felizes são os objetos inanimados que não têm escolhas ou arrependimentos.”

“Não. Mas também não escrevem poesia.”

Gustavo sorri.

Ana estaciona o carro em um descampado à beira da estrada e, sem falar nada, desce. Gustavo desliga o rádio, pega a mochila, e vai atrás dela. Os dois seguem por uma pequena trilha entre as árvores. A vegetação é a mesma que vimos até agora: verde, viva e vistosa. Gustavo começa a tirar fotos. Ana desaparece mais à frente; sente-se, ao mesmo tempo, próxima e distante do amigo. Não sabe ao certo o que ele quer; ou se a compreende. Percebe que, até agora, no fundo, só falaram dele, de suas vontades e dificuldades. Depois de tirar algumas fotos, Gustavo vai ao encontro de Ana que, já no fim da trilha, senta-se em uma ponte levadiça abandonada. Metade da ponte ergue-se imponente enquanto a outra está abaixada. Abandonada, não serve mais como ponte: não chega ao outro lado. Está incompleta. Gustavo senta-se ao lado da amiga. Depois de um tempo, ela aponta para a parte da ponte levantada e diz:

“Os meninos da região sobem até o topo. É um rito de passagem.”

Gustavo ri, e diz: “Coragem excessiva. Todos passamos por isso.”

“Você fala como se fosse vinte anos mais velho. Eles são só um pouco mais novos do que você. Logo aprendem a sentar aqui e contemplar a vista. Algumas coisas vêm com a idade.”

“Vêm. E outras se vão. Uma troca… De qualquer jeito, não se preocupe. Não vou tentar subir ali. Já desisti de te impressionar. E ando resignado com a minha mediocridade; com a verdade de quem sou.”

Ana ri e, com certo ar de superioridade, completa:

“Fique quieto que já está bom demais. Não precisa me impressionar… e muito menos auto depreciar-se.”

Gustavo, olhando a água, pensa por um momento. É difícil esquecer suas preocupações. Os dois ficam em silêncio e observam a paisagem. Ana pensa: no que Gustavo está pensando? Depois de um tempo, ela tenta reiniciar a conversa.

“A mais pura vida contemplativa. Olhando tudo, apreciando o tempo e a brevidade da vida e das coisas, sem nos preocuparmos demais, sem precisar de teorias que expliquem o que sentimos e queremos.”

Gustavo parece distraído. Ana aproxima-se um pouco mais de seu amigo e insiste:

“Shelley dizia que os poetas são legisladores invisíveis do mundo; que são eles quem, no fundo, sabem como as coisas devem ser. Os críticos literários, os políticos ou comerciantes tendem a esquecer o real valor das coisas e de momentos como este.”

“Ele dizia, é?”

“São os poetas que garantem que está tudo em seu devido lugar; que as folhas, as cores e a água ainda são folhas, cores e água. Que a vida continua colorida por mistérios.”

“Talvez o mundo seja mesmo dos poetas”, continua Gustavo. “Mas há tempos que deixei — deixamos? — de ser poetas. Só sabemos estudar e produzir artigos, escrever prefácios ou julgar uns aos outros. Talvez você ainda escreva poesia, mas não gosta de me mostrar, o que, convenhamos, é o mesmo que não escrever.”

“Não escrevemos hoje, mas depois quem sabe… Literatura tem destas coisas, tem um tempo próprio, devagar, indiferente a nossas ansiedades e pressas…”

Gustavo suspira e diz:

“É o tempo das palavras.”

Os dois ficam em silêncio por um momento e Gustavo completa:

“Ana, poeta e salvadora de Gustavos. Esta devia ser a sua alcunha.”

Os dois riem. A amizade permite que sejam afiados, que digam certas verdades e brinquem com os desejos um do outro. Mas não garante que eles se entendam por completo.

“Você não sabe falar sério, sabe?” continua Ana. “As vezes acho que sou o outro do seu diálogo, aquele que não tem muita importância. O escravo que confirma aquilo que o filósofo tem a dizer.”

Gustavo ri. Pensa se concorda ou não com a amiga; se está ou não evitando falar sobre o que Ana gostaria de falar; se ele sabe, ao certo, o que ela quer.

“Desculpe. Eu ando mal humorado,” ele continua. “Acho que de artigo em artigo nossas vidas tem diminuído de tamanho. Para os outros, que não estudam o que estudamos, nos tornamos uns chatos.”

“Tudo bem. Seu mal humor me contagiou, só isso. Você precisa aproveitar mais o verão. Ele não vai durar muito tempo.”

Ana aproxima-se ainda mais de Gustavo, como se estivesse com frio. Sente calor. Ele, distraído, não percebe, ou finge não perceber a sutileza do desejo de sua amiga. Ana, como quem não quer nada, continua a conversa:

“Bonito o sol, não é? Ele reflete na água e deixa tudo alaranjado, daqui à outra margem. É um bom dia para começar a recolocar as coisas em movimento.

“Verdade.”

“Fiquei feliz que você aceitou vir passear. Faz tempo que quero te trazer aqui e não consigo.”

“É muito bonito.”

“As pessoas costumam vir aqui em casais. Parece o lugar ideal para o primeiro beijo.”

Ana aproxima-se mais um pouco, mas Gustavo, pensativo, sem perceber sua amiga, continua:

“Ou para fumar maconha.”

Ana para por um momento, como se algo a tivesse atingido. Gustavo deita olhando para o céu, afastando-se involuntariamente do corpo de sua amiga, que continua sentada. Pensativo, ele suspira. A sua passividade, devagar, parece vencer o desejo de Ana. Sentada, ela parece mais tímida do que antes. Olha para os seus joelhos. Depois de um silêncio prolongado, enquanto os dois escutam o barulho da água, Gustavo levanta e vai até a parte vertical da ponte. Parece que vai subir, testa a madeira, sobe o primeiro degrau, mas desiste e volta até sua amiga. Sente uma vontade súbita de falar. Com mais energia do que antes, com uma vontade de compartilhar que até então não sentira, ele retoma a conversa:

“É possível estarmos tão perto e tão distantes ao mesmo tempo? Um dia estamos apaixonados, mas no outro olhamos para a mesma pessoa e não vemos nada de especial; ou ela olha para a gente e não nos vê. É como se, de uma hora para outra, não fôssemos mais os mesmos.”

Ana ri, suspira e diz:

“Desencontros.”

Sem escutá-la, Gustavo continua:

“O problema é que as pessoas não mudam na mesma velocidade; têm tempos diferentes. Nunca parecem estar na mesma página. Quando se encontram, o momento dura uma faísca e já estão distantes novamente, pensando em outras coisas, em outra pessoa.” Num suspiro, Gustavo completa: “Eu não mudei, mudei?”

“Você?”, diz Ana com espanto.

“Foi ela quem mudou, internamente, sem me avisar.”

Ana precisa de um momento para se recompor e entender de quem ele está falando. Depois de um tempo, diz:

“Talvez ela não tenha percebido que mudou; ou talvez vocês dois tenham mudado sem perceber. Por que não?”

“Eu olho para ela e vejo a mesma pessoa. Mas ela, quando olha para mim, parece não me reconhecer. É desesperador. Foi ela quem mudou sem aviso, só pode ser. Quando voltei das férias, ela simplesmente não estava mais aqui. Via tudo com olhos diferentes, inclusive a mim.”

“Talvez ela tenha avisado,” diz Ana com paciência, “mas você não percebeu. As vezes é preciso ler as entrelinhas.”

“Entrelinhas? Não há entrelinhas. Só há ela, que parou de retornar minhas ligações. Só isso.”

“Ou talvez vocês dois tenham mudado. Mas ninguém percebeu até já ser tarde demais. Por isso o desencontro.”

“Ainda assim: como pode? Uma hora as coisas mais idiotas e sem sentido que eu fazia eram engraçadas e interessantes. Mas, de repente, ela acha tudo maçante e sem graça. É difícil saber o que aconteceu; qual evento a fez ver as mesmas coisas de outra maneira; entender por que ela vê, em outrem, o que há alguns meses via em mim. Não tem explicação.”

“Relacionamentos são assim. Não há o que fazer. São, ou não são. Valem a pena, ou não valem. A gente só precisa ter sensibilidade para ver quando é hora de começar algo novo.”

“Eu não consigo me conformar.”

Gustavo senta-se ao lado de Ana. Os dois olham a paisagem em silêncio. O vento balança as árvores na beira do rio. A água passa sob a ponte. A manhã já não existe mais. Gustavo suspira. Palavras, palavras, palavras. Ele sente fome. Quer voltar para seu quarto, voltar a olhar os moinhos em silêncio.

“Vamos?”, ele diz impaciente. “Temos uma bela caminhada para chegar ao carro.”

Ana olha para Gustavo com intensidade. Se pergunta se podem existir, ao mesmo tempo, mundos tão semelhantes e tão diferentes; se podem duas pessoas estarem tão próximas e tão distantes. Ela sabe que seus interesses se alinham, mas e seus desejos? Cansada, ela diz:

“Você parece sempre pronto para ir embora.”

“Não, tudo bem,” responde Gustavo um pouco irritado. “Vamos quando você quiser. Não há por que ter pressa.”

Gustavo pega a máquina fotográfica e levanta. Ana fica sentada olhando o amigo. Pensa em encontros e desencontros; no Gustavo e na Nicole, nela e no Gustavo, na Nicole e no Pablo. Gustavo, por sua vez, tira fotos da ponte e do rio, das pedras e de Ana. Tenta não pensar em nada. Devagar, de forma automática, anda até a trilha por onde chegaram. Ana, depois de um tempo sentada sozinha na ponte, se levanta e vai até ele:

“Vamos?”

“Tem certeza? Eu não quero te apressar.”

“Não. Também preciso estudar. É melhor começarmos a voltar.”

***

Ilustração: FP Rodrigues

Como na vinda, mas ao contrário, vemos pelas janelas as mesmas árvores e casas, agora sob nova luz. É quase meio dia. Incomodado com o silêncio, talvez se dando conta de que não era este o passeio que sua amiga imaginara, Gustavo puxa conversa.

“Gostei da trilha. O lugar é mesmo muito bonito.”

“Achei que você fosse gostar. É um dos meus passeios prediletos na região.”

“Precisamos repetir mais vezes essas escapadas. As vezes acho que não sou espontâneo o suficiente. As vezes preciso de um empurrão para sair da rotina, ou do quarto… enfim, foi gostoso. Eu estava precisando.”

“Que bom. Vamos repetir. Em geral é você quem não pode… quem está ocupado.”

“A vida da gente é assim… sempre ocupada.”

“Não sei se é isto. Você só aceita meus convites quando já cansou de estudar… ou quando ninguém mais te convida para algo melhor.”

Gustavo ri. Pensa na verdade do que diz Ana. Para manter as aparências, entretanto, ele rebate:

“Nem vem. Sempre que posso, aceito seus convites. Hoje, por exemplo, nem perguntei aonde íamos: peguei minha mochila e desci, como ordenado.”

“Pois bem, vou convidar outras vezes. Ainda preciso te levar à praia. Não acredito que você está aqui há três anos e ainda não entrou no mar. E digo mais: não foi por falta de convites.”

Os dois riem.

“Tá certo,” completa Gustavo. “Não desista. Este semestre vamos à praia. Promessa.”

Os dois ficam em silêncio por um bom tempo. Gustavo olha pela janela pensativo, como na vinda. Ana liga o rádio, que está na mesma estação de antes. Agora toca Habanera, de Bizet. L’oiseau que tu croyais surprendre/ Battit de l’aile et s’envola./ L’amour est loin, tu peux l’attendre/ Tu ne l’attends plus, il est là./Tout autour de toi, vite, vite. Ana interrompe a música:

“Não é a mesma música que tocou na vinda?”

“Não me lembro. Será?”

Ana pensa por um momento. Não se lembra se era mesmo esta a música que tocara na vinda. Não sabe por que disse isto. Ela suspira.

“Não importa…”, diz, mudando de assunto. “Achei que era. Eu adoro esta parte da estrada. Ali naquela ilha tem um farol. Nada mais Nova Inglaterra.”

“É mesmo. É tão… Virgínia Woolf.”

“É diferente do Brasil, a paisagem, não é?”

“É, diferente… mas igual. Os mesmos dramas.”

“Diferente mas parecido. Igual nunca é.”

Os dois voltam a ficar em silêncio. Pensam nos seus próprios desencontros. Finalmente entram em sintonia. Escutam o final da música: Il vient, s’en va, puis il revient./ Tu crois le tenir, il t’évite,/ Tu crois l’éviter, il te tient! O carro deixa as estradas arborizadas e entra na cidade. Depois de algumas curvas, Ana estaciona na frente do prédio onde pegara o Gustavo pela manhã.

“Chegamos.”

“Chegamos? Não tinha percebido que já estávamos aqui.”

“Gostou do passeio?”

“Muito. Obrigado por insistir. Eu realmente precisava espairecer um pouco. Precisava pensar em outra coisa.”

Ana ri. De forma irônica e formal, completa:

“Não há de que, my dear. É sempre um prazer.”

Gustavo dá um beijo na bochecha de Ana, pega a mochila e sai do carro. Os dois ainda trocam algumas últimas palavras:

“Nos vemos amanhã?”, pergunta Ana.

“Com certeza. Estarei na biblioteca. Podemos tomar um café.”

“Você não quer almoçar?”

Gustavo pensa por um momento antes de responder.

“Não sei, estou um pouco atrasado com os estudos. Acho que vou comer algo rápido na biblioteca. Esta semana será uma correria só.”

Ana sorri. Acostumada, responde:

“Claro. Eu passo lá para tomarmos um café.”

Gustavo acena uma última vez e, com a mochila nas costas, vai até a porta do prédio. O sol está alto no céu. A luz forte dá novas cores à paisagem. A partir de agora, com o cair do dia, a luz esmorecerá até sumir de vez. Gustavo entra no prédio sem olhar para trás. Com o carro estacionado, Ana observa o amigo desaparecer. Pensativa, o acompanha com o olhar, medindo a manhã que passaram juntos. Fica no carro sozinha. Sorri. Desliga o rádio. Depois de algum tempo, que apesar de curto parece longo demais, volta a si mesma e, deixando Gustavo de lado, retoma o controle do seu dia. Ela dá a partida no carro e some na próxima curva. Sobra uma casa, estática, sob o sol do verão, do outro lado da baía onde os moinhos ainda giram, vagarosos, sem pensar em parar.

 

Marcelo Lotufo

Nasceu em São Paulo (SP), em 1987. É mestre em Literatura Comparada pela Brown University. Escreveu duas peças de teatro ainda inéditas, uma sobre Beckett e outra sobre Rimbaud. Trabalha na tradução de poemas de John Yau e em uma novela sobre um casal de escritores.

Rascunho