O jardim sitiado

Conto inédito de Jozias Benedicto
Ilustração: Dê Almeida
01/04/2022

Ligo para o caseiro, Sr. Adalto, um homem forte e de poucas palavras, polícia aposentado, que há muitos anos vai limpar meu jardim e vigiar a casa quando viajo, quero saber se está tudo bem por lá, se choveu e as plantas se afogaram ou se não choveu e elas estorricaram, se chegou alguma encomenda importante ou não importante, se morreu alguém nas redondezas. Só estou fora de casa há quatro cinco dias no máximo uma semana mas parece que tudo acontece justo quando estou longe.

Ele demora a atender, desligo, ligo de novo, dou um tempo, na quarta ou quinta tentativa ele atende, me diz que caiu um rato na piscina, digo a ele para pescar o rato com o puçá e encher a piscina de cloro, ele me responde que o rato morreu e estava estourado, podre, a água da piscina escura com o sangue do bicho, fedendo muito, os intestinos boiando, vermes. Ele tinha passado o dia esvaziando a piscina e agora ia lavar os azulejos com água sanitária. Ele estava com sua voz de sempre mas para quem o conhece há anos, como eu, embora sem intimidade pois ele é muito reservado e eu também, dava para sentir um tom estranho nos silêncios, uma nota de pressa, de incômodo, não fosse ele um senhor calado eu diria um timbre de raiva ou de nojo. Ou quase. Perguntei o tamanho desse tal rato que fez tanto estrago, se era um rato ou uma ratazana, ele respondeu que era quase do tamanho do cachorro. Um poodle? Não, maior, como um rottweiler.

Peço para ele se tranquilizar, e depois ir enchendo a piscina aos poucos, se a água da cisterna não for suficiente para encher a piscina toda de uma vez, aguardar a água da rua encher a cisterna e depois puxar para a piscina um pouco a cada dia, para não sobrecarregar a bomba. Ele já sabe disso tudo, mas sempre repito pausadamente as instruções, ele sabe cumprir ordens e é muito fiel.

Chego em casa alguns dias depois. Não guardo as malas, vou direto ao jardim, acendo as luzes todas e a piscina fulgura ao luar, a água está límpida e com doces pequenas ondas pela brisa de um resquício de primavera arejando um pouco o calor infernal do verão. Os canteiros de bougainvilles que ladeiam o muro também estão lindos, as flores rubras resplandecem, seu Adalto fez uma bela poda e as plantas reagem bem, ele é muito dedicado. De perto ainda se sente na terra o cheiro forte do estrume especial que tudo fertiliza, que faz as flores brotarem em cores e perfumes desregrados. Vou até os canteiros, aqueles mais escondidos, separo um e outro galho e encontro o que já sei que vou encontrar, entre as raízes espinhentas e a terra úmida remexida, uma bola de futebol murcha, o amarelo-limão da bola desbotado em um acastanhado de coisa morta. Protejo minha mão com um saco plástico e recolho a bola, vai com outros detritos para um latão de lixo que jogo na pedreira desativada assim que for passear com os cachorros.

Se toda vez que some uma criança na vizinhança minha piscina tiver que ser esvaziada e depois enchida de novo o reservatório que abastece nossa região vai secar, a crise hídrica é uma realidade, esses ex-policiais não têm a menor consciência ecológica.

Jozias Benedicto

Escritor e artista visual, vive e trabalha no Rio de Janeiro (RJ). Seu primeiro livro de contos, Estranhas criaturas noturnas, foi finalista do prêmio Sesc de Literatura 2012/2013. Como não aprender a nadar conquistou o Prêmio de Minas Gerais 2014 (Contos) e o Prêmio Moacyr Scliar 2019, da UBE-RJ. Recebeu premiações da Fundação Cultural do Pará (2018) por Um livro quase vermelho e da Fundação Cultural do Maranhão (2018) por Aqui até o céu escreve ficção, editado pela Patuá em 2020. Publicou dois livros de poesia, Erotiscências & embustes (2019) e A ópera náufraga (2020), ambos pela Urutau, que lançará neste ano seu romance de estreia, Doze noites e seus trabalhos.

Rascunho