Nem tudo são flores

Nos poemas de "Parte da paisagem", Adriana Lisboa evoca um eu lírico despretensioso e atento ao seu tempo
Adriane Lisboa, autora de “Parte da paisagem”
30/01/2014

Parte da paisagem, de Adriana Lisboa, reúne poemas sob diversos enfoques, nos quais um eu lírico, carregado de lembranças e projeções futuras num tempo presente, movimenta-se. Por vezes, surpreende-nos, e por outras, é movido por uma serenidade inabalável. Esta parece comprometida em Nirvana, por exemplo: “— Quebraram meu Buda japonês/ e um árduo desejo de vingança… Crença e descrença, ruídos e silêncios, luzes e sombras, amor e desamor, paz e inquietações negociam espaços e sentidos”.

Apesar da advertência: “Esqueça a palavra —”, ela é o veículo de uma busca, “use da palavra apenas/ seu grau de sugestão de vida/ (mesmo sendo o índice/ da sua morte). Entre a palavra e o silêncio transita o ensaio de vozes que dialogam entre si, aproximando tempos e espaços, aparentemente, distanciados. É quando a poesia flui “testando a voz” de um sujeito lírico despretensioso, mas atento ao seu tempo e a outras vozes que alimentam sonhos e sentidos precários, mas indispensáveis para se seguir adiante. Como sinaliza o poema Promessa: “O prato da casa/ é a sobrevivência, então/ (…) continuo de pé. Um joão-bobo,/ um náufrago de pança inchada/ subsistindo de sol a sol.”

A lírica aqui retoma sua forte marca musical, dentre outras referências. A linguagem verbal da palavra escorregadia, na sua flagrante insuficiência, apela para outras, como a musical, cinematográfica, teatral e corporal nas quais a pausa, o silêncio e o nonsense potencializam a construção de sentidos. Em Para voz e piano, o que mais dizer se “quando não se espera que ele venha,/ (…)/ ele surge à porta/ no meio da festa…” Um Ele que não só adentra pela porta, é o objeto de um amor desmistificado das promessas românticas, mas como fato inquestionável se faz presente. No mais, tudo são “cantares” que estabelecem seus fios e desafios de leitura.

Em Anjos, as imagens cinematográficas de Wim Wenders passam por uma releitura, ou melhor, socorrem as palavras na busca de uma “beleza em câmara lenta” que expressem o desejo de nossa humanidade, invejada pelos anjos que com suas asas sobrevoavam o céu de Berlim, mas que se ausentam nesse nosso presente de século 21. “Onde estão os anjos bonitos,/ os anjos de Wim Wenders?”

Aspectos afetivos
A mutilação das meninas da Somália, denunciada e dramatizada no filme Flor do deserto, encontra nas palavras a expressão de indignação frente a uma realidade cruel, inacreditavelmente, presente Neste mesmo mundo em que vivemos. Os títulos, como este, conduzem a leitura para além da moldura da folha do poema, para aquém e além da paisagem descrita em seus detalhes concretos e físicos, mas infinitamente amplos em seus aspectos afetivos e estéticos.

Em notas fica explicitado o diálogo com Drummond, Bandeira, João Cabral, Tom Jobim, Hilda Hilst. Da mesma forma, dedicatórias, epígrafes e outras referências ampliam esse leque. W. S. Merwin, Leonardo Cohen, Thom Yorke participam com epígrafes, sutilmente, da estrutura do livro, dividindo-o em três partes. Assim, o “eu” lírico estabelece o diálogo com vozes de tempos e espaços diversos. Destacam-se tantos os interlocutores presentes na vida cotidiana, quanto outros que já se foram e parecem se cristalizar na memória ou na paisagem, como aquele “Enterrado no ventre/ de uma montanha, desgarrado num meteorito/ daqui a alguns milênios…”

Toda essa polifonia e carnavalização exigem que o sujeito retome o seu eixo em uma espécie de “carnaval ao contrário”. Que seria isso? “Lavar o rosto, desaprender o samba/enredo. Cuidar para que os pés/toquem, apenas, esta avenida.” E, provavelmente, recriar a própria voz, naquela folia íntima da solidão necessária ao ofício poético.

A memória passeia pela cidade, trazendo fragmentos e imagens de velhos tempos: Em Papelaria União, por exemplo, “Era onde eu comprava os meus cadernos/ O centro da cidade era o nosso quintal”. As fotografias e os fotogramas de lembranças de uma Cinelândia, que há muito deixou de ser a praça de cinemas, compõem o poema e as reminiscências. Os cadernos da infância ligam o passado da menina ao presente da escritora, cadernos feitos para anotar “ali nosso futuro em versos/ verdes, duma confiança irrefletida”, incapazes, contudo, de prever os anúncios de um outono por vir.

O teatro de luzes e sombras com suas máscaras e disfarces permeia as palavras em Nada consta e Parque dos cervos, entre outros. “As coisas vão bem, de modo geral,/ disfarçadamente bem. Perucas, bigodes postiços.” As máscaras e os disfarcem servem para fazer suportar a verdade nua e crua: “Essa luz medonha que se esfrega/ na sua cara, o quanto você não daria/por um instante de penumbra?”.

A linguagem corporal estabelece sua fala nas necessidades mais urgentes, alia-se às imagens, aos gestos, e a todos os sentidos: olhos, pele, ouvidos, bocas, e suas relações com o mundo e com a natureza. “Seu corpo encolhido no próprio excesso,/ brotando inábil dos seus pés/ como um pinheiro num penhasco.” Ou como as mãos que afundam na terra: revirando com verbos táteis elementos mortos e vivos do jardim. A natureza viva, plantas, bichos-coisa e bichos-homem se misturam à paisagem de natureza morta, terra e pedra. O corpo de carne, sangue e ossos carrega o sentimento do mundo, como se fosse bicho delicado em busca de abrigo.

Em Lugar, “a ermida corpo, sim, caiada/ e rústica. Mas também ferida aberta/ da mente, esta nação sem chefe,” sem perder a perspectiva temporal, fixa o sujeito na espacialidade instável de um lugar (ermo sem fundo). Dialogando com Bifurcados, de João Cabral de Melo Neto, surge um questionamento: “este lugar que habito (me habita?)”. Corpo e mente, tempo e espaço atravessam suas porosas fronteiras e vazios. Como, em Passagem, vive-se esse nosso tempo contemporâneo de permanente transitoriedade. “Vamos embora/ para um lugar onde se vive de passagem…” já que hoje Pasárgada é inabitável, ou seja, não é mais possível. Um lugar ou um não-lugar onde se é sempre estrangeira, como a Irene boa e latina, sempre de bom humor e clandestina, sob o céu das Américas. Como a poeta gauche que precisa “exercitar a inadequação, sabendo-nos/ ridículas como missa em latim”.

É assim que a poesia penetra com sutileza no cotidiano e na complexidade da vida, paisagem na qual “há muito mais para ver aquém e além da colina”, como diria Hilda Hilst. Memória, corpo, amor e morte, mais que temas, são problematizados, abrindo a discussão sobre a própria linguagem do fazer poético, enquanto eixo principal em pauta. “Pense na poesia/ como o dedo cavando a fresta onde/ há ainda uma pequena chance.” É por essa fresta que “a vaga ideia de liberdade” pode tomar corpo como possibilidade de fuga de um prisioneiro, como possibilidade se sobrevivência e exercício da palavra.

Parte da paisagem
Adriana Lisboa
Iluminuras
120 págs.
Adriana Lisboa
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). É graduada em música e pós-graduada em literatura. É autora de Sinfonia em branco, Azul Corvo, Hanói, entre outros. Seus livros foram publicados em treze países. Vive atualmente nos Estados Unidos.
Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho