Mudados

Conto Inédito de Ismar Tirelli Neto
Ilustração: Carolina Vigna
01/05/2020

Refiro um acontecimento meu contemporâneo. Os homens daqui do bairro foram todos acrescidos de certo balbucio, repentinamente perderam agilidade. Impossível precisar quando este abatimento teve início, estão visivelmente mais lentos. Não sei diante de que hesitam. Tantos dengues. Até porque não saberia dizer diante de que se encontram.

Faz amarelo. Atravessam ruas com passos de enorme elaboração.

Abraços com isto, vem se tornando cada vez mais raro vê-los a sós. Uma nova peripatética. Os passos dos pares regulam bem, aparente naturalidade, mas a marcha, como disse, diminuiu, aprofundou. As vozes, a prosódia, em contraste com a andadura, esta sim se artificializou por inteiro. Primária, limpa de interrupções a um grau quase ideal. Como se o teatro não tivesse avançado um isto desde os idos de Molière.

Quando cruzamos com eles, as palavras que por vezes nos alcançam parecem vir da mesma região obscura (tectônica) dos passos.

Agregam-se na boca ao longo de largos intervalos de silêncio, acabam — se porventura dão a nós — por soar intervalares elas mesmas, como se tencionassem — estes homens, com estas palavras — colocar ali, nos cruzamentos, no comércio miúdo, na dura luz de verão, mais tempo.

Para quê? Não compreendem de todo o que estão dizendo? Estarão apenas retransmitindo alguma mensagem?

São palavras novas, não de todo assimiladas, isto é claro. Palavras e gestos que pesam de descobrimento. Cenas se erigem em diferenças e semelhanças. Vala entre vita activa e vita contemplativa. Que escala? Abundam definições de cultura, algumas canônicas, pura cacofonia. A América está mudando, esgalhando-se, as Américas. Os corpos dos homens na América no meu bairro. Na minha idade. Faz amarelo.

Os corpos dos homens da minha idade, os elementos visíveis e probatórios, não parecem ter sofrido nenhuma modificação identificável. Assinalo-o porque seria fácil figurá-los como velhos, como crianças. Poderíamos então dizer que envelheceram todos de uma hora para outra, poderíamos qualificar o balbucio de que foram acrescidos de “infantil”. Poderíamos aproximá-los de outros contingentes igualmente definidos pela precariedade, pela constante necessidade de cuidados.

É outra a coisa que acontece.

Encouraçam-se ainda nas Academias, nadam, trabalham o mesmo feitio, cabelos começando a rarear no cimo da cabeça. Quando deixam as barbearias, os botequins — o que serve para demonstrar empiricamente que existem e frequentam ainda barbearias, botequins —, estacam. Avaliam o quanto a rua se inclinou durante sua ausência.

Em tais ocasiões, se repararmos bem, é patente o fervedouro pianístico dos dedos, amarelo, amarelos, claro comunicador de que batem em retirada do eixo. Ficam longo tempo parados em limiares, até que algum irmão de lapso eventualmente se emparelhe. Seguem a caminhada juntos.

Estiveram ausentes? Este tempo todo? É evidente o contraste com outros bairros, bairros mais comerciais. O nosso, mesmo não sendo exatamente boêmio, tem lá seu quinhão de parques, pracetas, e as residências, algumas inexplicavelmente viradas de lado, mantêm dentro dos bolsos os punhos que os edifícios do centro erguem irados para o céu.

Agora, quando os homens do meu bairro descem com o lixo, trazem consigo o esforço das escadas e o arquejo de galgá-las de volta. Quem faz o cubo mágico que lhes meteram na boca, que tanto remexem na casa da língua? Quem assopra estes passos, em direção a quê?

A nós?

Ora, quase não venta por aqui nesta época do ano.

Ismar Tirelli Neto

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1985. Em 2019, foi semifinalista do Prêmio Jabuti com o livro Os postais catastróficos (7Letras). Pela Editora 34, acaba de publicar a tradução de Autobiografia do vermelho, de Anne Carson. Atualmente reside em São Paulo (SP) e ministra oficinas de escrita criativa.

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