Memória tem águas espessas

Leia o poema "Memória tem águas espessas"
Luna Vitrolira, autora de “Aquenda — o amor às vezes é isso”
01/03/2024

as mãos calejadas dizem
do corte da cana

carregam entulhos
cinco litros d’água
para sustentar a fome

nas depressões inundadas
os passos afundam
como se afundasse
um navio negreiro

com ele
muitas vidas viraram
obras de museu:

um homem sem rosto
um rosto sem nome
um nome sem gente

e sua terra incinerada

minha família veio num desses
que não afundou
com a tempestade

dispersa
nossa história enterrou-se

difícil encontrar os ossos
e as pedras que dirão de nós

memória tem águas espessas

herdeira de boia-fria
nasci com as mãos ásperas e o destino solto
era o que se dizia de gente assim

seja o que deus quiser

não contava
importante considerar
deus poderia não querer nada
o jeito              cavar o caminho
até o chão morre de sede
não tem medo do que come
mas do quanto jejua
ensina paciência

paciênciapaciênciapaciênciapaciência
paciênciapaciênciapaciência
paciênciapaciênciapa
ciência
ci
ên
cia

nem tudo é pra hoje

sei pelas terras do passado
guardadas
debaixo das unhas
não tem banho demorado que tire

é de família

as vidas se repetem

uma pessoa
se multiplica
pra dentro da vida da outra
que vai nascendo para frente
como fossem partes
de um mesmo e único
espírito
só que mudando de nome

os mesmo vícios
as mesmas quedas
o mesmo erro

as mesmas sinas
os mesmos karmas
a mesma trilha

de mãe para filho
de pai para filha

o ciclo quando não se rompe

represa
repele
reprisa

dizem

a gente tem hora de morrer
para se encontrar de novo

obatalá
ajalá
ori odu

com os pés enraizados na terra
suporto na pele de onde vim
por isso voltei

não temo insistir pisar no mesmo lugar
não temo
refazer
redizer
recomeçar

andar para trás é um jeito de chegar mais longe

o futuro é ancestral

a estrada nunca pareceu longa
irresoluta
apertada
quente
de arder
nas costas

o real nunca pareceu
inerte
morredouro
caduco
de dar câimbra
na língua

o passado
fio que se rompe e se remenda
alinhava retalhos
de órgãos vitais acidentados de sanidade
rede
parabólica
ou de pesca
recolhendo do umbigo
o laço que so

bra

meu rito de passagem
minha fé

na revolta

há séculos moramos na raiva
pelos que atravessaram tantas estradas de água e cana

há séculos morro vendo o corpo escanzelado de nossa genealogia
cantando um grito seco no porão das embarcações

há séculos nasço qual bicho de carga
arrancado de um ventre marcado a ferro
de um vagina cortada
à faca

conheço a sepultura dos descorados
onde está escondida a vergonha
a cara lavada do escravocrata
seus contos de violação
dessangram

aprendi com as plantas que o povo renasce da memória
não há lamento
nem obediência

o relógio circadiano mede o tempo
coordena as respostas de cada hora
e a minha vó é a voz que pede para voltar

Luna Vitrolira

É cantora, poeta, compositora, atriz, pesquisadora, palestrante e mestra em Teoria da Literatura. Autora de Aquenda — o amor às vezes é isso, finalista do Jabuti 2019, que se transformou em projeto transmídia, com o qual estreou na literatura, na música e no cinema, com livro, disco e filme. Memória tem águas espessas será lançado em breve pela Diadorim.

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