O mar é longe, irmão?, perguntou isso tão baixo que quase não entendi. Provavelmente porque continuava, em pequenos intervalos, a fungar, mantendo os ombros retesados. Com esforço a boca entreaberta. De vez em quando, a mão apertando o nariz e a agonia de tentar tirar de dentro de si os últimos resquícios das águas barrentas do Itapecuru-Mirim. Todas as partes descobertas do corpo tomado pela insolação. O desenho de suas duas pás, frágeis, dava a impressão de que, a qualquer instante, se desprenderiam, como se não fosse mais necessário fazer parte daquele corpo. Em mim a vontade de, pelo menos, pentear os cabelos dele. Diante do meu silêncio, o mano tossiu várias vezes e, desconsolado, repetiu apenas o mar é longe, dando a entender que não era mais uma pergunta.
A fala tu é homem, e não marica voltou a me causar incômodo e a vontade de perguntar ao pai do que importa? A minha frente, quando Baltazar apressou os passos em direção à nossa casa, eu o respondi no susto ele nunca pescará um lírio. Nem pequeno, nem grande. Supus que a reação do mano foi a de sorrir de canto de boca, pois ele era menos metódico, embora mais introspectivo. As gramas encharcadas na beira do Itapecuru-Mirim foram a nossa última imagem palpável do rio. Dali em diante, o segui pela general lott e toda a travessa militão sem dizer nenhuma palavra. No fundo no fundo eu estava cansado de sonhar com araucárias.
[…]
Na beira do Itapecuru-Mirim mirei as costas de Baltazar. Por vezes, pequenas sucções se formavam entre as costelas. De um lado e do outro da coluna as costas se modificavam a cada tentativa de obedecer aos gritos de nosso pai. As carnes vermelhavam a cada momento em que tomava fôlego, por breves segundos, e o mano voltava, incrédulo, a tentar afastar o barco das margens do Itapecuru-Mirim. O esforço de manter o ritmo. A respiração. Um dos pés fincado na areia. O outro encostado na ponta do casco. Sufocado, o irmão, vez em quando, esguichava baixinho como se essa atitude fosse a única maneira de dizer que estava vivo. Ou tivesse a certeza de que aquilo a qualquer instante terminaria. A garganta aparentemente seca. O ar pesando em suas carnes. Perto dele algumas libélulas triscavam a ponta do rabo na água. Tudo isso fazia com que minha raiva ficasse maior do que a de nosso pai. Se a mãe estivesse ali, gritaria cala a boca, homi, meu filho não é marica. E se fosse não tinha nenhum problema. Não tenho dúvidas de que antes de ela terminar de pronunciar essa frase, o pai avançaria sobre a cabeça dela, como tem sido nas últimas vezes. Só soltaria quando suas mãos estivessem cheias de tufos dos longos cabelos. Só a deixaria em paz quando a boca de nossa mãe sangrasse.
De cabeça baixa, olhos fechados, para juntar mais força, respirando com a boca entreaberta e as duas mãos agarradas ao casco do barco, meu irmão procurava empurrá-lo sem ter a certeza do que era ser marica ou homem. O pai em pé, vez ou outra, cambaleando no fundo do barco. Aquilo me fez murmurar ele bem que podia pegar o remo, forçar contra o chão e ajudar o mano a empurrar essa coisa. Pelo menos isso. Semicerrei os dentes e, só depois, comecei a caminhar apressado à beira do rio Itapecuru-Mirim. Na distância em que tanto o pai quanto o mano pudessem me ouvir, coloquei as mãos em formato de concha aberta ao redor da boca e gritei deixa eu ajudar o mano, pai, deixa? Visivelmente o estado de espírito dele ficou mais abalado, por isso voltou a olhar o mano de cima a baixo e, ao cabo de poucos segundos, respondeu, à sua maneira, nem se atreva, moleque. Aqui ninguém deve nada a ninguém. Entendeu?
Outra vez fui obrigado a desamparar o irmão na sua tristeza. […] O peito de Balta encharcado de suor me deu a certeza de que ele continuaria tentando empurrar o barco até as últimas consequências. A minha vontade de abaixar e catar pedras só aumentou, porque o reflexo do sol na água embaçava meus olhos.
Em dado momento não aguentei mais a ânsia, abaixei e enchi uma das mãos de pedras. Fiquei em pé. Pensei na mãe. Na sua boca sangrando. Nos olhos vermelhos de tanto chorar. Nela dizendo tudo isso vai acabar um dia. Sem coragem soltei uma a uma no chão. Nove ao todo.
No desespero o mano dobrou ao meio os dedos das mãos. Por causa disso perdeu o ritmo corporal que vinha tentando manter. Flexionou os punhos. A boca contraída. Ele esmurrará a canoa?, cogitei. Que sentido tinha o nome do barco para o pai? As letras bem grandes pintadas de branco, amarelo e vermelho “deus proverá”. O pai não tirou os olhos da reação de Balta. O mano contou até cinco duas vezes. Suspirou fundo e voltou a empurrar o barco. Aproveitei para esboçar um sorriso de canto de boca ao ver a embarcação se mover vagarosamente. O pai não quis deixar eu ajudar, mas vai comer mosca dessa vez. Quando Baltazar conseguiu desencalhar de vez o barco, com dificuldade, ele jogou a metade do corpo para dentro. Ofegante, forçou os pés contra o chão e impulsionou o que ficara de fora, conseguindo colocar o corpo inteiro na canoa. Inconformado, o velho murmurou, meio que sorrindo, até que enfim a marica conseguiu.
Caminhei rápido na direção do barco e sem ninguém ajudar repeti os mesmos movimentos do mano até cair no interior da embarcação. Incrível como o pai se manteve o tempo inteiro de costas para nós dois. Colocou as tralhas de pesca entre os antebraços. O chapéu de palha sombreando a cabeça e os ombros. Dei as mãos ao mano, verguei a costas pra trás e o levantei.
Não demorei a aprender que um homem é a continuação das desgraças de outros homens. Que nenhum sabe como curar de vez as suas ou as misérias uns dos outros. Mesmo na complacência há silêncios que morrem no meio de nossa língua. Só me dei conta disso quando a canoa, ao ser levada ao meio do Itapecuru-Mirim, começou a balançar e, em poucos segundos, meus pés já estavam completamente engolidos pela água. Na agonia, minha primeira reação foi mover os braços em direção aos olhos. Senti a frieza subir as pernas. As pestanas começaram a dar sinais de medo. De repente abaixei a cabeça e foi impossível enxergar meus calcanhares, porque a rio Itapecuru-Mirim estava mais turvo do que o normal. Àquela altura a dúvida se o pai pegaria ao menos algum lambari fez com que aumentasse a ânsia em meu estômago vazio. Às vezes eu nem peço perdão por imaginar que se o velho fosse o pedaço de um biombo, seria mais útil não apenas a minha irrevogável tristeza, mas a do mano, a de nossa mãe, as rezas de dona Dica e a Lindalva que gostava de repetir o mundo é grande. E eu acabei por acreditar nisso.
Abruptamente o pai começou a gritar pega a caneca ligeiro, diacho. Joga a água pra fora, seu peste! Apesar da voz entrecortada pelo vento, deu para entender. Os olhos dele estavam ficando avermelhados tal qual os do capirota que Balta costumava desenhar sem chifres e pintar bem forte com bic vermelha, em seu caderno. Em suas sobrancelhas toda a hostilidade com a qual vinha me tratando nos últimos dias. Sentado rente à popa, nosso pai estava com os punhos, ora ou outra, submersos, mas matinha os braços rígidos. As águas do Itapecuru-Mirim respigaram em meus olhos, porém seria pior se tivesse sido no escuro, foi o que imaginei.
Sentado perto da proa o mano tremia. Meio ingênuo, olhava fixamente o banco de areia onde a canoa esteve. Com o balançar das águas a parte visível da tarrafa se distanciou de nós. Espantado, Balta levou as mãos à boca. Confuso, senti vontade de ficar de joelhos imaginando que seria mais fácil secar o barco. Ou na última hora fazer o sinal da cruz na altura de meu peito. Em seguida colocar a cabeça entre as mãos e pensar no desejo excessivo da mãe em ter um turíbulo folheado a prata, a corrente de meio metro, mesmo ela não entendendo quase nada do evangelho. O que a mãe justificava dizendo são os mistérios de deus. Aquilo ora me fascinava, ora me intrigava. Se bem que ouvir ela afirmar isso era como entender de vez que o mundo é grande.
Se colocasse qualquer remo em pé, a pá desapareceria por completo no aguaceiro. Não havia o que fazer. Olhei a beira do rio e o forte remanso puxava para o fundo do Itapecuru-Mirim as regiões mais arenosas do chão, enquanto a canoa balançava como se fosse emborcar a qualquer instante. As tralhas da pesca começaram a flutuar. Estufei o peito. A sensação de vertigem tomou conta de nós. À minha frente, a imagem dos fios de cabelos da mãe esvoaçando igual às moitas de chananas quando o vento bate nelas. A mãe inconformada a esbravejar qualquer palavra que lhe viesse ao pensamento.
A primeira coisa a sair fora do barco foi o mocó de tecido com três ou quatro pequenas pedras dentro. Entre os vãos dos estribos da canoa foi possível perceber vários chumaços de algodão tingidos de óleo queimado começarem a se soltar. Na mesma hora veio em minha cabeça a frase que, de vez quando, o avô Custódio costumava a falar ao pai não existe na face da terra um bom sem defeito. Às vezes o pai murmurava algo assim pouco importa. Ajoelhado, continuei a jogar água para fora do barco sem coragem de olhar o rio.
Em questão de minutos, mais da metade do barco afundou. De repente comecei a submergir sem conseguir tirar os olhos das margens do Itapecuru-Mirim. Os arbustos ressecados. Os barrancos de areia. As pedras nem pretas, nem cinzas. Incontáveis pés de espinheiras espalhados ao longo do leito do rio. As lâmpadas de algumas casas acesas sem necessidade. Em meio ao desespero percebi a ponta do barco, num movimento estranho, aparecer e desaparecer em segundos. Foi impossível enxergar também os últimos resquícios das cores branco e azul no céu. Eu não tinha dúvida de que umas quatro ou seis moitas de juncos nos arrancariam daquele desespero.
No fim das contas foi como se a culpa tivesse sido minha e de Balta. A todo momento eu tinha a sensação de continuar ouvindo o pai esbravejar, incessantemente, desgraçados, o barco não pode afundar. Isso é tudo que nós temos na vida, seus miseráveis. Repetiu isso cerca de três vezes, até o som da fala ficar, tanto pra mim quanto pro irmão, totalmente inaudível. O velho na mesma mania de sempre, aumentando o tom da voz na palavra seus. Seus filhosdaputa. Seus merdas. Seus pranada. Só faltou ele dizer seja o que deus quiser, como de costume, embora nem mesmo o pai teria certeza do significado daquilo entre nós.
Com a metade da canoa tomada pelo rio, eu e o mano afundamos nas águas barrentas do Itapecuru-Mirim. Olhos abertos. Perto dali o barulho das dragas diminuíram quase a formar minúsculos assobios. Eu debatia os braços e as pernas, em agonia. No desespero, procurei qualquer coisa a que pudesse segurar e, de certa maneira, tentar retornar à superfície. Era tarde demais para desentender os gritos do pai contra nós desgraçados, o barco não pode afundar. Isso é tudo que nós temos na vida, seus miseráveis. As costas pesadas. Os ouvidos a zumbirem. Apesar do esforço de manter a respiração presa, senti vontade de arreganhar a boca e soltar o ar preso nos pulmões. Ver como as bolhas, formadas pela corrente de ar e pelos movimentos das pernas e dos braços, se misturariam.
Embora ficasse evidente a nossa angústia, eu queria ter conseguido estender uma das mãos ao mano. Falar a ele alguma coisa que tivesse a ver com amor ou neblina. Mas, ainda que estivéssemos próximos, era impossível discernir qualquer gesto ou traço na fisionomia do rosto um do outro. As águas barrentas do Itapecuru-Mirim deixavam constrita a nossa pele preta. Em pânico, desejei ter entre nós alguns pés de samambaias iguais aos de dentro do poço de nossa casa, para segurarmos. Contabilizei mentalmente que coisa de mais sete ou nove segundos alcançaríamos o lodaçal que formava o fundo do rio.
Exatamente naquele instante eu tive a certeza de que o pai nunca mais seria capaz de pescar um lírio. Nem pequeno, nem grande. Em meio ao desespero, enquanto afundávamos, nada ficou mais evidente do que a imagem de nosso velho. Barba crescida. Unhas sujas de barro do Itapecuru-Mirim. Minutos antes, a gritar empurra o barco, diacho! Tu é homem, e não marica. Bota mais força!
Àquela altura só pude pensar em duas coisas. No irmão enfiando, calmamente, vários pedaços de felpas de pau no chão molhado. A terra marcada pelas pontas dos dedos dele. Os seis bois feitos de improviso com pequenas mangas verdes. As pernas de palitos de fósforos. Os olhinhos, o nariz e a boca feitos cavados perto do talo. Duas minúsculas felpas servindo de orelha, outra maior de rabo. A vala cavada próxima a cerca, escorrendo água. Dizia ele ser o Itapecuru-Mirim. A outra coisa foi a imagem da mãe coçando a cabeça, enquanto apertava com a outra mão o seu terço de bolinhas cinzas e dizendo promete Mundico que tu nunca vai levar os mininus pro rio. Promete, homi. Tu sabe melhor que ninguém que água não tem cabelo.
Não sei quanto tempo durou a coisa toda. As bolhas de ar. O redemoinho envolto das pernas. A boca com gosto de terra. De súbito a vertigem do pai perto de nós, no fundo do Itapecuru-Mirim. Segurou-me pelo braço, o irmão pelos cabelos e trouxe-nos de volta à superfície, nadando só com os pés. Quando percebeu que dava de ficarmos de pé, nos soltou, esbravejando sai d’água, sai d’água, à medida que nadava de volta no rumo do barco e das talhas de pesca. Instintivamente tiramos as camisas encharcadas e as torcemos.
NOTA
Este trecho pertence ao romance inédito Fedor da carne de deus, cuja publicação está prevista para 2026.