Cartas de um breve hediondo

Conto inédito de Alessandro Araujo
Ilustração: Theo Szczepanski
02/07/2014

O céu sem nuvens e luminoso à medida que o sol da manhã subia e se deslocava para a direita, umedecendo o dedo não com a saliva ou transpiração, mas com a condensação que deixava fosco o esguio copo de chá gelado que estava agora bem na beirada da sombra.
David Foster Wallace

No crachá escrito Jonas em letras maiúsculas e sua foto gasta. As cartas chegaram multicoloridas, aos montes em bolsas enormes com cidades escritas em canetão e papel amassado. Abriu rapidamente com um estilete e rompeu o lacre, separou nas estantes subdivididas por CEP, região, número, bairro; sua expectativa estava nas de cor vermelha, imaginou uma carta de amor, despedida ou reencontro. Subiu e desceu as escadas com dois malotes, um em cada mão, quando o caminhão chegou às dezessete horas e vinte e sete minutos em uma quarta-feira. Sempre quarta-feira. Suou a testa curta e seus óculos cintilaram, o jaleco molhado e os cabelos calvos brilharam. A separação de cartas no décimo segundo andar do prédio número duzentos e sete da rua aurora, a sala do chefe no décimo primeiro. O que dava certa liberdade nos pontos cegos do sistema de segurança. Jonas adorava o cheiro indecifrável que saía ao abrir o malote, novidades, contas, histórias e todas as outras possibilidades que poderiam acontecer caso fosse ao ponto cego de segurança e escondesse uma delas no bolso grande do seu jaleco amarelo. Ferozmente chegaria a sua casa e leria cada ponto, vírgula e garranchos escritos. De olho na vidraça de mais de três metros de largura e trezentos e setenta e sete centímetros de altura, decorou o número no dia em que o vidraceiro realizou a instalação do transparente para aumentar a visibilidade e diminuir o gasto de energia na expedição. Pela janela, nos segundos em que não trabalhava, deslumbrava os carros passarem como se controlasse a velocidade por um controle remoto, rapidamente as pessoas andavam, os semáforos mudavam de cor, as luzes dos postes acendiam e apagavam. Todos os dias de uma única vez; a ansiedade de viver. Preparava-se cansado para isso, até o dia em que o caminhão de quarta-feira, em dia de sol e nuvens que desenhavam em forma de rede no céu, parou.

Uma arrojada cortina de seda esvoaçava na sala escura do apartamento de Jonas e suavizava o ruído que provocava ao raspar o pé esquerdo enquanto tateava o chão de madeira procurando um de seus chinelos. O copo de café frio no braço do sofá de couro marrom. Abriu a porta e fechou rapidamente, girou a chave e encostou o rosto no olho mágico — deixe a pizza! Ansiosamente repetiu com a mesma tonalidade e colou a orelha esquerda na porta. E só realizou o movimento contrário da chave nos passos distantes do entregador. Voltou ao sofá e aumentou o volume da televisão cujas laterais eram de madeira. Orgulhava-se da idade da televisão, fabulava a transmissão da queda do muro de Berlim, não por política, mas adorava as peças de roupas que os manifestantes usaram. Assistiu a um documentário de moda que tratava do fim da década de oitenta. No centro da sala, apenas uma mesa de madeira que comprou no antiquário de Pinheiros, seu passeio preferido nos dias de folga. A última conquista, o armário arcaico de vidraça colorida e braçadeiras detalhadas, uma imitação barroca que Jonas lustrava aos domingos enquanto ouvia o programa jornalístico de rádio de nome ousado, um título policial. Nele, o locutor enfatizava a sílaba tônica de cada palavra inserindo elementos latinos — Qual é a pro-ce-dên-cia! Morava no prédio Bolshi no décimo quarto andar, um antes do zelador. Fixou o espelho do banheiro e tentou disfarçar a calvície com os dedos. No antebraço esquerdo, a tatuagem feita na época do colegial, percebeu que era cinza. E não preta. Sentiu-se desqualificado. A bicicleta ficava pendurada na saleta, uma espécie de hall curto. Caminhou com a pizza até a sala e abriu cheirando o vapor que saía; tomou café com pizza às dez e quarenta da manhã. Voltou para o espelho, penteou com os dedos e pedalou para a expedição na rua aurora. As nuvens são cores que não podemos identificar. Jonas murmurava aos colegas da expedição nos dias de sol — Olhando-as podemos aguçar a criatividade como uma espécie de pincel gigante, nós desenhamos as nuvens e quando estamos mal-humorados, elas chovem. Era sempre um monólogo, eles não respondiam e Jonas abaixava a cabeça aos finais de suas frases, com o barulho das cartas rangendo o balcão. Leu num cartão-postal com a foto do relógio londrino de St. Stephen em dia de sol — Acho que inspiraria minha saudade, céu é céu. Dá vontade de ser pintor, te amo. Sentiu uma ansiedade que o fez suar frio e virou o rosto para a janela, o céu claro e as nuvens rasas. E foi nesse dia que o caminhão parou.

Muitos vestindo jalecos com o slogan da expedição formaram fila no hall do apartamento. Os pescoços esticavam acima dos ombros de quem estava na frente. Jonas, sentado no sofá marrom de costas para eles, fumava calmamente um cigarro com a carta em mãos. Apenas um por vez, uma única pessoa poderia vê-la por vez. Saíam extasiados, tristes, sorridentes ou corriam em lágrimas para jogar o chapéu ao alto gritando em plena rua movimentada. O olho mágico e as paredes tomaram uma cor púrpura pela luminosidade. A extensão da fila descia até o nono andar, todos falavam uns com os outros e cochichavam com as mãos ao alto e emoções em diversos olhos. A televisão transmitia em volume alto um chiado e o rádio estava ligado, como se o som saísse das caixas laterais da televisão. A novidade da carta chegou até a portaria e ao redor do prédio, um segredo que as pessoas comentavam na fila do pão, no banco e enquanto atravessavam o semáforo vermelho, ansiosas e amontoadas no edifício Bolshi. Entravam e saíam indiferentes com a velocidade dos carros, pessoas que esbarravam em outras enquanto caminhavam. Uma desceu correndo pelas escadas, ofegante gritou — Venham ver! No apartamento de Jonas! Até uma senhora andou pela calçada e um ônibus cheio de crianças buzinou. As pessoas de bicicleta acenaram para a janela do apartamento de Jonas. O primeiro jornalista apareceu na calçada por volta das dezoito horas e quinze minutos, foi isso que o padeiro informou quando um junky perguntou para ele o que estava brilhando na janela daquele andar, apontando com o indicador.

O sol forte e o céu pintado à mão com pequenas e transparentes nuvens, as calotas prata do caminhão refletiam calças e sapatos. A porta grande e branca por onde desciam malotes abarrotados de cartas destinadas a vários lugares. Jonas desceu pelas escadas para chegar mais rápido. Ajeitou os poucos cabelos, pegou os malotes e subiu no elevador. Correu, com o estilete abriu o malote. Começou a distribuir nas estantes os envelopes grandes, coloridos; olhou a janela. Vasculhou com a mão esquerda e tateou um poroso, puxou e ele era dourado. Um dourado cartão-postal. Quando virou a imagem, foi a cor mais bela e cintilante que já viu; com nuvens claras e desenhos de todas aquelas brancas, em forma de rede, destacadas em branco. E toda sua ansiedade pelos minutos, horas, dias em que poderia sentir a vida pulsar desapareceram. Numa quarta-feira, quando parou o caminhão às dezessete horas e vinte e sete minutos.

Alessandro Araujo

Nasceu em São Paulo (SP), em 1983. Em 2012, lançou Pro Santo e outras perdições (Editora Torre). Em breve, lançará a coletânea de contos Nada foi dito.

Rascunho