Boa noite, Burroughs

Conto inédito de Mariel Reis
Mariel Reis, autor de “Vida cachorra”
02/06/2014

Romeu, o cafetão, me quebra um galho vez por outra. A droga no parapeito da minha janela não aparece por acaso, nem a nota de cinquenta paus que escorrego para ele é um milagre. É um sujeito silencioso. Fala o necessário. Outra vez, a mecha de cabelo negro caída na cara, perguntou se eu tinha umas seringas para emprestar. Olhei fundo na cara dele, não parecia intimidado. Levei a mão ao bolso da calça, retirando meu estojo com meu jogo de agulhas, seringas e garrotes. Tirei dele uma velha seringa com o êmbolo danificado. É só o que tenho, disse.

Ele pareceu satisfeito. Saiu apressado, sentando-se mais a frente. Arregaçou a manga da japona, retirando do interior do vestuário o estojo parecido com o meu, amarrando o garrote ao braço. Preparou o pico e o injetou rapidamente. Lançou a cabeça para trás em êxtase, os olhos faiscaram —, em segundos ele não estaria mais ali. Deitou-se na escadaria do edifício, inutilizado, o rosto abobalhado mirando o céu alaranjado da tarde. As primeiras estrelas estraladas como ovos fritos nos seus olhos. Enterrei mais o chapéu, ajeitei os óculos, fechei o sobretudo: ventava frio. Saí da ruazinha, atingindo a avenida principal e estendi a mão para um táxi.

O motorista me olhou de cara feia, perguntou para onde era a corrida. Queria ver o dinheiro, não levaria um sujeito com cara de vagabundo para o outro lado da cidade, arriscando-se a voltar de mãos abanando. Eu tinha a grana. O taxista me deixou entrar. Próximo à ponte, indiquei o caminho. Imaginava a vida do motorista: um sujeito gordo, em mangas de camisa, barba por fazer… Deveria ser imigrante, estar ilegal, ter cinco ou seis filhos e morar na parte pobre da cidade — em um lugar pior do que o meu —, embora minha aparente distinção o tivesse impressionado. Durante todo o trajeto fez uma única pergunta: o senhor é inglês? Não, respondi. Pareço inglês? Ele trancou-se em si mesmo, ligou o rádio numa estação popular. Tocava country.

A noite vertiginosa sobre os prédios. A demência das ruas e os homens, estragados por ela, vendiam todo tipo de coisas. Os letreiros luminosos das casas noturnas, as vedetes, as prostitutas, os michês e os drogados, à meia-luz, negociavam expedientes conhecidos. A polícia revistava os negros. Pago a corrida. Salto do carro. Entro em um dos inúmeros inferninhos da avenida. Aqui não é lar para idosos, diz o segurança. Vai se fuder, rosno. Romeu deve estar voltando a si. É um lindo rapaz. A heroína o torna ainda mais atraente. É violento com as suas garotas. Viados, na verdade.

Bem montados, bonitos. Todos apaixonados por ele. Romeu não amava a ninguém.

O inferninho lotado. As mesas todas ocupadas. As mulheres seminuas rebolando no poste sob a fraca iluminação avermelhada. No balcão, o bartender “Vai querer o que vovô?”. Ele está com a mão espalmada sobre a fórmica. Retiro de minha gravata o grampo e o espeto no impertinente, “Vovô é o caralho! Quero um martini”. Recomponho-me, prendendo-o de volta à gravata. O bartender enrola a mão na toalha que estava sobre o ombro, cospe uns palavrões e pede a outro para me servir.

Uma bonequinha desvencilha-se de um grupo, apoia-se ao balcão e pede gim tônico. Que homem elegante, ela diz. Está sozinho, bonitão? Para alguém de sua idade, você está conservado, emenda. É de graça? A minha voz antipática e os meus olhos pequenos e maldosos percorrem o corpo da mulher. Pode ser… Me paga uma bebida?

Ela abre caminho na multidão. Dirige-se para os fundos do estabelecimento, sobe uma escada. Está escuro. Saímos num corredor de muitas portas, Por aqui, ela segura a minha mão, Por aqui. Romeu gostaria de estar aqui comigo. É um sujeito silencioso, perigoso. Talvez seja uma boa companhia. Tenha boas histórias, caso se animasse a contá-las. É um rapaz bonito. Meus amigos várias vezes o confundiram com um michê. Pagariam seu peso em ouro para sodomizá-lo. Ele é um moralista: não deve dar o cu, nem chupar pau. Deve ser um garoto mimado, morar em apartamento limpo, fora do chiqueiro do meu quarteirão.

Ela para diante de uma porta, retira do sutiã a chave e a introduz na fechadura. Aperta o comutador de luz. O quarto com banheiro é estreito: cama, banqueta, penteadeira, cabideiro e frigobar. Ela tirou a roupa depressa. O que vai querer fazer? Quero que fique quieta. Qual é, cara? Fique quietinha. Deite-se de bruços na cama. Ela obedeceu. Desafivelei meu cinto. Encostei minhas mãos e meu rosto em suas nádegas, Você gosta disso, minha querida? Pedi que estendesse as mãos, e em hipótese nenhuma interferisse no que iria acontecer. Ela estranhou. Mantenha os olhos fechados, disse com voz suave.

Romeu, o orgulhoso Romeu, pagaria uma fortuna para açoitar a sua pele. Quem, meu bem? Romeu? Sim, Romeu ele daria tudo para estar no meu lugar. Ela tentou abrir os olhos. Minhas mãos foram mais rápidas. Retiraram do bolso do sobretudo o rolo de fita silvertape. Improvisei uma venda. Você é maluco, vovô? Amarrei seus braços à cabeceira da cama. Corri a língua em toda a sua coluna. Ela arqueou-se. Não, não sou maluco. Prendi suas pernas. Você gosta de um joguinho, né, vovô? Não respondi. Enfiei os dedos na buceta e no cu. Vai vovô, vai, faz mais. Implorava. Vovô é o caralho! Ergui a correia no ar e desci com violência.

A música alta não permitia a ninguém ouvi-la. Meu braço doía. Retirei o estojo da calça, abri-o sobre a penteadeira. Dobrei as mangas do sobretudo, preparei o pico e amarrei o garrote. Servi-me como a um rei. Ela arfava. Recomecei com os meus dedos, abri meu zíper e disse Mama o vovô, mama. Outras cintadas. Preparei um novo pico. Não era para mim. Procurei a veia de uma das pernas. Ela relutou. Logo estaria tranquila. Retirei-lhe a venda para ver seus olhos. Romeu, Romeu, eu suspirava. Agora ele deve estar tomando a sopinha da vovó, perto da lareira. Fecho a porta, desço. Ela deve dormir ou sonhar com algum lugar maravilhoso. Atravesso todo o lugar novamente até a saída. Na rua, estico a mão para um táxi.

O motorista quer ver a cor do dinheiro, sem ele nada feito. O que um senhor de idade faz em um lugar desses? Não interessa, rapaz. Toca o carro. Desço, pago a corrida. Olho para a escadaria, não vejo Romeu, nem as suas bonecas. A ronda noturna deve ter terminado mais cedo. Não há ninguém na rua. Subo as escadarias do meu prédio, acendo um cigarro, tiro o chapéu, verifico o forro. Entro em casa. Meu gato roça em minhas pernas. É um bichano esperto, este meu bichano. Romeu, Romeu, chamo. Ele salta para o meu colo. Sento-me na poltrona, perto da janela da rua. Romeu é tão vadio e inconstante feito o meu gato. Os meus dedos longos e ossudos correm os seus pelos.

Mariel Reis

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1976. É autor de Linha de recuo e outras estórias (2005), John Fante trabalha no Esquimó (2008) e Vida cachorra (2011).

Rascunho