Poemas de Adriana Lisboa

Leia os poemas "Palavra eu", "rés-do-chão" e "A saudade" de Adriana Lisboa
Adriana Lisboa, autora de “Hanói”
30/11/2019

Palavra eu

súbito vem o desejo
de um poema em que não caiba
a palavra eu

mas ela desconfiada
salta para dentro da pura
intenção: haverá sabotagem
nesse ao redor
nesse céu de tanto azul
nessa mosca pesada e lúdica
batucando na janela?

tantas coisas prescindem
de mim
tudo é maior do que eu
e no entanto
este instante
em que se pensa isto
em que se escreve isto —
será menos do que
inequivocamente meu?

rés-do-chão

no fundo de cada coisa
o raso
no vasto de cada coisa
o ínfimo
no descampado o íntimo na nudez
um nem atinar com ela
no reles de cada coisa
o tudo dela
vida em revoada

no raso de cada coisa
o cavo
no ínfimo de cada coisa
sua extensão
no descompassado o ritmo na embriaguez
uma espécie de rés-do-chão

em meio metro
de qualquer coisa
um deus descalço
e bom

A saudade

a saudade não é da ordem do tempo
mas sim do espaço
não se trata de querer
rever revisitar reencontrar
(reiteração de verbos
num infinitivo infinito)
mas de algo da equipe do corpo
seu acervo de cheiro e ruído
seu buquê de seiva e voz
a saudade é da ordem do espaço
vago e é sempre hoje
e é hoje sempre
nesse seu breu
escavado
sabe-se como
debaixo das barbas do sol

Adriana Lisboa

Nasceu em 1970 no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente vive nos Estados Unidos. Entre romances, contos, livros infantis e infanto-juvenis, possui mais de dez títulos publicados. Possui três títulos em poesia: Parte da paisagem (2014), Pequena música (2018 — Menção honrosa no prêmio Casa de las Américas) e Deriva (2019).

Rascunho