A escola de direito

Trecho de romance de Andityas Soares de Moura Costa Matos
Ilustração: Fabio Abreu
01/07/2022

Nunca conheci um profissional do direito que realmente gostasse de livros. Sim, eles têm suas estantes cheias e mesmo abarrotadas, mas gostar de livros, não. Querem fazer parecer que são muito cultos e leem de tudo, não só direito, e sim de tudo. Mas gostar de livros, não. Nem mesmo de livros de direito. Estes são os que eles mais odeiam e que gostariam de destruir sem dó em uma fogueira porque são a causa de suas desgraças. Parecer que gostam de livros, sim. Gostar de verdade de livros, não. E isso ocorre especialmente com os professores de direito, não só com juízes, promotores e advogados, os mais estúpidos entre os estúpidos que, além do mais, podem mandar prender quem os chama de estúpidos. Mas talvez eles não sejam assim tão estúpidos. Pode ser que pelo menos alguns entre eles não sejam estúpidos consumados. É possível que ao menos alguns não ostentem o terrível e ridículo hábito de fingir ser grandes apaixonados pela leitura. Suspeito que alguns poucos juízes, promotores e advogados assumam tranquilamente não serem nada mais do que juízes, promotores e advogados, sequer se importando com leitura e outras modas, tendo assim ao menos a dignidade mínima de não quererem parecer grandes apaixonados pela leitura, ao contrário da maioria dos profissionais do direito e de praticamente todos os professores que dia e noite e sem qualquer pejo ou descanso querem ser não só conhecidos mas também celebrados como grandes apaixonados pela leitura. Querem fazer todo mundo acreditar que eles leem e gostam de tudo. Compram toneladas de livros, participam de lançamentos e inclusive se fazem publicar. É claro que pagam por tudo isso. Mas a qualidade da escrita que produzem os denuncia, denuncia que esses supostos grandes leitores não leem na verdade nada, pois seria impossível que escrevessem tão mal se lessem um pouquinho que seja. Compram muito, não leem nada. Conheço mais de um entre eles que mantêm duas mansões. Uma para si e outra para os livros, já que compraram e compram tanto, em um frenesi alucinante, que precisam de outro espaço para acumular essas montanhas de livros não lidos, que os carteiros entregam diariamente às suas empregadas com a ajuda de carrinhos de mão. O fato é que os profissionais do direito têm um ódio epitelial da leitura. E dentre eles os professores de direito são os que têm um ódio mais profundo e em maior grau, dado que, de alguma forma misteriosa, compreendem que são medíocres, o que não passa pela cabeça dos juízes, promotores e advogados, aos quais o dinheirão que ganham os engana e os faz pensar que realmente são gente importante. Além disso, juízes, promotores e advogados — mas não quaisquer advogados, somente os mais ricos e caros entre eles — se cercam de várias máfias de puxa-sacos que constantemente os incensam, lhes dizem que são preclaros e inteligentíssimos, os chamam de “doutor” em qualquer situação, especialmente se não forem doutores de verdade, pois para ser doutor é preciso um doutorado que, de fato, a maioria dos juízes, promotores e advogados não possui nem quer possuir. Quem sim tem esse título são os professores, embora não todos, já que nos cursos de direito sempre foi comum bastar ser juiz, promotor ou advogado rico e caro para dar aulas, o que se encara como um hobby, um tipo de lazer “cultural” que lhes autoriza a dizer todos os dias a uma plateia literalmente cativa que gostam de livros e de literatura em geral, e não só de livros de direito, em relação aos quais nutrem na verdade o mais profundo nojo. No interior do país, até pouquíssimo tempo, não havia sequer um doutor ensinando nos cursos jurídicos, que se contentavam e mesmo se alegravam de ter no seu corpo docente o juiz e o promotor da cidade, e em certos casos até o delegado. Nas capitais sim havia um ou outro doutor, mas que era também juiz, promotor ou advogado rico e caro. Gerações inteiras de profissionais do direito foram formados por juízes, promotores e advogados e não por professores, como se estivessem ainda na Idade Média, quando para ser hortelão era imprescindível se tornar aprendiz de outro hortelão mais velho e experiente. E é por isso que o ódio à leitura e a mania de fingir o contrário desse ódio à leitura foram transmitidos como uma herança a todas as gerações de profissionais do direito, chegando inclusive aos professores de direito atuais, dos quais já se exige um título de mestre ou de doutor para dar aulas. Entretanto, a exigência de titulação para dar aulas não aumentou o nível intelectual dos que se tornam professores de direito, e sim rebaixou o nível de exigência que normalmente se põe a quem quer ser mestre ou doutor em alguma área do saber. Não é, portanto, que se tenha aumentado o nível das cabeças pensantes nas faculdades de direito, e sim que se rebaixaram todos os padrões que se tinham por adequados para se transformar alguém em mestre ou doutor, e assim os profissionais do direito puderam também ser mestres e doutores em direito, o que sempre pareceu cômico aos mestres e doutores de outras áreas, que sabem perfeitamente bem que um dos requisitos para serem mestres e doutores em qualquer área é o gosto pela leitura, que é precisamente o que falta a alguém que escolheu cursar direito. Quando alguém se decide por um curso universitário e não tem o menor gosto pela leitura e pela literatura em geral, não escolhe matemática ou física como se costuma pensar. Escolhe direito. E isso porque quem escolhe direito, apesar de seu baixo nível intelectual, é sagaz e sabe que não lhe será exigido mais do que duas coisas: primeiro, que decore durante algum tempo milhares de artigos de lei e opiniões de juízes, promotores e advogados ricos e caros. Segundo, que não tenha nenhum gosto pela leitura e ainda assim use de todos os meios para fingir que gosta de ler sempre e em quantidades assombrosas. Quem pensa assim e escolhe cursar direito não se engana e se torna, como se costuma dizer, um bom operador do direito. Quem não pensa assim e escolhe cursar direito se decepciona e inevitavelmente acaba desistindo do curso ou se matando. Sei de muitas pessoas que simplesmente desistiram do curso de direito mesmo cursando o último ano e foram felizes com suas paixões pela leitura, que não fingiam, mas que de fato sentiam, com o que os anos que passaram nos bancos das escolas de direito lhes surgiram na mente não apenas como nojentos, mas excruciantes e impossíveis de suportar. Conheço também casos de alunos que se mataram porque não aguentavam mais decorar artigos de leis e opiniões de juízes, promotores e advogados ricos e caros e, além disso, ainda eram obrigados a conviver com quem fingia descaradamente gostar de leitura, mas nunca gostou e jamais gostaria, em tempo algum. Não aguentam e se matam, seja pulando de prédios, se jogando em trilhos de trem ou por meio de algum outro método eficaz que não deixe margem a dúvidas ou quanto a seriedade da vontade de se matar, já que para esses desesperados se tornou impossível conviver com colegas e professores que da maneira mais sem-vergonha que se possa imaginar fingem gostar de leitura e de livros, mas na verdade não gostam e mesmo odeiam a leitura e os livros que a proporcionam. E entre estes os piores são sem dúvida os professores de direito, que por dever de ofício precisam fingir que gostam de livros e da leitura em geral, mas odeiam tudo isso com um ódio imenso. Os professores de direito estão sempre a carregar braçadas inteiras de livros, sim, verdadeiramente enormes braçadas de livros que fariam cambalear os mais fortes e musculosos entre os operários da construção civil. Mas não os professores de direito, estes não cambaleiam com suas braçadas de livros. Andam eretos, com o nariz empinado, de terno e gravata ou com um vestidinho brega e de preço exorbitante se for mulher, e debaixo do braço volumes e volumes dos mais pesados, grandes in folios com capas duras. Verdadeiras braçadas de livros transportados inutilmente para aqui e para acolá porque os professores de direito não têm outra missão senão fingir que leem estes livros e os reverenciam, quando na verdade os odeiam e os desprezam. Hoje as coisas se tornaram mais fáceis, pois ao invés de passear com tais enormes braçadas, com esses feixes de livros pesadíssimos, basta ao professor postar em suas redes sociais a capa e alguns trechos desses livros antes duramente arrastados pelas escolas de direito e também pelos tribunais. Assim parece que ele leu e lê muito quando na realidade ele apenas usa as redes sociais para ver notícias de futebol, pornografia, vídeos de gatinhos e as vulgaridades mais grotescas. Contudo, sabem os professores, essas raposas!, que nada substitui a visão física das braçadas de livros carregadas pela Escola de Direito afora e seu consequente e hierático depósito na mesa do professor, que passa então a aula inteira mostrando aos alunos embasbacados e subletrados esses tais livros, comentando um por um como se os tivesse lido todos de cabo a rabo, mas na verdade o que o professor faz é simplesmente resumir o conteúdo das orelhas e das quarta-capas desses livros nunca lidos e verdadeiramente virgens de qualquer leitura. Lembro de um professor efetivo que, sendo avaliador em certo concurso para preencher uma vaga de professor substituto na Escola de Direito, se limitou a trazer uma pilha inacreditavelmente enorme de livros e, mostrando a capa de cada qual ao candidato que devia examinar, descreveu de modo superficial o tema de cada livro, dizendo que isso e aquilo, presente neste e naquele livro, faltou à fala do candidato que, necessariamente, deveria ter sido então reprovado no final, mas no final foi não apenas aprovado, mas aprovado com louvor, com o que o candidato diligentemente fotografou todos os livros, um em cima do outro, pelo lado das lombadas, de maneira a facilitar as coisas para depois comprar todos eles. Foi o que disse o candidato e futuro professor de direito: comprar todos eles e não ler todos eles, pois é evidente que não se espera de um professor de direito que leia algum livro, mas se espera que ele compre muitos e cada vez mais livros. Na verdade, o professor que passa a aula exibindo seus livros, entre os quais não podem faltar os caríssimos importados e escritos em língua estrangeira, se possível em alemão, dá uma valiosa lição a seus alunos, a qual, obviamente, alguns não conseguem entender, e são justamente estes que acabam se matando ao saltar do último andar de um prédio ou ao se deixarem esmagar debaixo das rodas de um trem. Agindo como age, o professor ensina as regras secretas da camarilha dos assim chamados operadores do direito, e aquele que não compreende essa didática e simbólica lição deve mesmo abandonar o curso ou se aniquilar da forma que julgar mais adequada. Nos primeiros meses na Escola de Direito, eu próprio não conseguia entender perfeitamente esses sacros mistérios, mas com o tempo fui me acostumando. Naqueles dias eu costumava visitar as bibliotecas de professores de direito famosos por sua intelectualidade, reconhecidos por todos como muitíssimo competentes, e notava algo inquietante: eles diziam gostar de livros, mas em suas bibliotecas só havia livros jurídicos, só colecionavam, conheciam e reverenciavam livros jurídicos. Sempre que adentrava em suas bibliotecas, me perguntava onde estariam os livros de verdade, pois só havia livros jurídicos. Inocente, eu não sabia que estava a tratar então com os melhores entre os profissionais do direito, pois eles não se preocupavam em aparentar que gostavam de livros em geral, mas apenas de livros jurídicos, com o que passavam por ser grandes técnicos e operadores do direito. Logo me pareceu óbvio que eles não gostavam de livro nenhum, mas se sentiam na obrigação de encher suas estantes e ao menos fingir que se deliciavam com livros como os seis volumes dos Comentários ao Código Comercial de 1850 (código vigente até hoje) e o Manual de audiências trabalhistas, sem se esquecer de coleções inteiras da revista Lex, grossos e encorpados volumes que enchem quilômetros de estantes e mais não são do que compilações de leis e de outras normas jurídicas. Sem dúvida, os que ostentavam bibliotecas exclusivamente jurídicas eram os melhores entre os professores de direito porque não fingiam gostar de literatura, muito embora sempre tivessem uma frase feita de Camões ou de Fernando Pessoa para citar, quase sempre errada ou inexistente na obra de tais autores. Os piores entre os profissionais do direito, que hoje são a maioria, não abrem mão de se apresentar como grandes leitores e até mesmo grandes escritores. Julgam que para tanto é indispensável uma imensa biblioteca com lombadas coloridas e chamativas. Mas se o olho for minimamente hábil, poderá notar que essas lombadas são todas falsas e despropositadas, do mesmo modo que são falsas e despropositadas as supostas leituras desses professores, que comentarão tudo que estiver na moda sem realmente ter lido nada do que está na moda ou fora dela, e forçosamente fingirão ler tudo que julgarem culto, erudito e primordial sem ter a mais remota noção do que é culto, erudito e primordial. Nas suas bibliotecas podem ser encontradas, por exemplo, coleções completas em capa dura de Dostoiévski, mas quem conhece essas edições sabe que são traduções indiretas feitas a partir do francês e não traduções diretas feitas a partir do russo. Isso um profissional do direito que finge gostar de leitura não pode saber, e mesmo que soubesse, não lhe importaria, pois a única coisa que lhe importa de verdade é a vistosa encadernação vermelha com letras douradas que combina tão bem com as encadernações da revista Lex. Em seus trabalhos “científicos” esses professores citam Platão e Aristóteles indicando a página de livros comprados em bancas ou lançados por alguma editora do interior de São Paulo, sendo para eles desconhecida e incompreensível a maneira correta e usual de citar autores clássicos, que é mediante a paragrafação das edições que normalizaram os textos de tais autores clássicos, a de Stephanus no caso de Platão e a de Bekker para Aristóteles, indicada nas margens das páginas de qualquer edição decente desses clássicos, mas não naquelas compradas em bancas ou lançadas por alguma editora do interior de São Paulo. É sumamente delicioso ver as bibliotecas simuladas, maquiadas e desequilibradas dos professores de direito, que sempre vão enfiar uma edição da Bíblia com as margens ornadas de ouro entre incontáveis volumes de versos escritos por eles próprios (ou por seus amigos) e escabrosas edições das Flores do mal e demais livros supostamente primordiais cujos tradutores indicados na página de abertura simplesmente não existem e não passam de invenções das editoras que publicaram tais livros abomináveis para assim não pagar direitos autorais à família do tradutor morto de quem chuparam e modificaram levemente o trabalho de tradução, tornando esses livros clássicos obras de tradutores fictícios. É assim que trabalham as não só suspeitas, mas verdadeiramente infames editoras que criam tradutores fictícios, ou seja, trabalham contando com o senso “crítico” dos professores de direito e dos profissionais do direito em geral, que sem dúvida vão esgotar e esgotam as sucessivas tiragens desses livros horrendos.

Andityas Soares de Moura Costa Matos

É escritor, tradutor e professor na UFMG. Publicou livros de contos, ensaios e poesia no Brasil, em Portugal e na Espanha. Desde 2019, produz uma tetralogia de neocantigas de escárnio e maldizer, com livros como Deus está dirigindo bêbado e nós estamos presos no porta-malas e Poemas póstumos: fantasias para rapazes e moças durante o genocídio. Com lançamento previsto para o segundo semestre, A escola de direito é seu romance de estreia.

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