Prisma do caos

Autor de "M, o filho do século", Antonio Scurati analisa os principais pontos que ajudaram a consolidar o fascismo no mundo e fala sobre o tempo pandêmico
Antonio Scurati, autor de M, o filho do século
01/08/2020

Tradução: Patricia Peterle

A retrospectiva das monstruosidades históricas, como o Holocausto ou as ditaduras em suas diversas nuances, traz a pergunta óbvia e sem resposta: como a população permite que a barbárie aconteça? Parece fácil perceber a lenta movimentação do que pode ser evitado. Nem tanto. Este trabalho monumental do professor italiano de Linguística e Comunicação Antonio Scurati, M, o filho do século, vencedor do Prêmio Strega, refaz a caminhada de Benito Mussoluni, instalando um observatório dentro do escritório do fascismo, em um romance repleto de detalhes, que cobre o período de 1919 a 1925. É a primeira parte de uma trilogia. O autor, que se debruçou sobre inúmeras e diversificadas fontes de pesquisa, apostou sobretudo no que chama de “fé na pedagogia da literatura”. O resultado é um assombro.

Qual mundo forjou Mussolini? Que elementos dentro e fora dele ajudaram a criar o monstro? Uma das primeiras imagens do livro é a de uma Milão empesteada, com ruas fedorentas, miseráveis e perigosas, onde é preciso tapar o nariz para se atravessar. O asco e o nojo inevitáveis. Mas não apenas a sujeira se alastra mais do que fumaça — os sentimentos que animam a sanha do ditador e de todos os que o acompanharam de perto vão tomando conta dos percursos. Sabemos aonde vão dar estes passos, mas recuperar o trajeto rumo ao terror da forma como faz Scurati é impressionante. A descrição da cena em que Mussolini primeiro aparece no romance traz o prenúncio do trabalho magistral: “Seja como for, Benito Mussolini, nesta noite do início de abril, contempla ainda por alguns instantes sua corte dos milagres, estica o pescoço para o alto e para a frente, cerra os maxilares, levanta o rosto em direção ao céu em busca de ar respirável, a cabeça já quase calva. Ergue a lapela do paletó, esmaga o cigarro sob o sapato, aperta o passo. A cidade está envolta em trevas, e os becos da depravação arrastam-se atrás dele como um enorme organismo minado, um gigantesco predador ferido que manda rumo ao fim”.

No ar, a mistura de gripe espanhola e malária. A morte despudorada de uma falange de guerreiros que voltavam da guerra. Desajuste, desemprego, ruína de toda espécie. Eis alguns dos elementos cruciais para que o que já era ruim se tornasse ainda pior. A insatisfação de todos os lados e obviamente a forma como Mussolini se aproveitou de tudo isso para a construção do projeto de poder são detalhados no livro, que vendeu mais de 400 mil cópias e foi traduzido para uma centena de países.

De Milão, onde mora, Scurati falou para o Rascunho, explicou seu processo de criação e a opção por um romance em vez de uma biografia — um trabalho “desestabilizador e extenuante”. Nesta entrevista, ele analisou os pontos principais que ajudaram a consolidar o fascismo no mundo a partir de um homem sem nenhum projeto político. “Mussolini era um homem vazio, sem ideologia, que soube fazer seus os medos e as frustrações do século. Ele mesmo se definia como ‘a supremacia tática do vazio’, mas sabia estar perto das pessoas, escutar seus medos e instrumentalizá-los para transformá-los em ódio e violência a serviço das conquistas do poder. Pode parecer estranho, mas nos anos em que subiu ao poder, Mussolini não tinha ideias. Ou melhor, usava as ideias para se livrar delas. Seu único programa era combater. O mal que traz na história tem a forma da água, e a água toma a forma de seu recipiente”, esclarece Scurati.

Ele falou também sobre o tempo pandêmico, que derrubou uma era de “distração e prosperidade”, como escreveu no belíssimo ensaio A literatura da inexperiência. Em uma sociedade em que nos tornamos “ameaçadores e ameaçados”, preservar-se em um ar irrespirável é um dos maiores desafios. Manter-se distante de novas ameaças ditatoriais também.

“Mussolini era um homem vazio, sem ideologia, que soube fazer seus os medos e as frustrações do século.”

Em um ensaio recente, você escreveu que da sua janela em Milão via o fim de uma era. A era “do distraído período de paz e prosperidade” acabou. Em termos específicos, na Itália, qual foi a mudança mais evidente? Você pensa em escrever algum dia sobre esta realidade que estamos vivendo?
Como escrevi em um ensaio, La letteratura dell’inesperienza [A literatura da inexperiência], nossa geração fez parte daquela parte da humanidade mais agitada, protegida, com maior perspectiva de vida e mais bem vestida, nutrida e cuidada da face da Terra, mas nesse período teve a experiência direta da morte, da doença, fez fila para o pão e para se alimentar. Não estávamos preparados, porque nosso aprendizado era o da irrealidade da televisão. Na Itália, assistimos a guerras, atentados, à chegada dos migrantes ao vivo pela televisão da sala de casa. Vivíamos, mas sem experiência da vida. A mudança de perspectiva foi a mais evidente: de um lado estávamos isolados em uma vida cotidiana marcada pelas relações virtuais e, do outro, fomos obrigados a uma reflexão prática sobre como educar os filhos, como preservar um ar respirável, como tomar conta de si próprio, dos outros, como chorar e honrar os próprio defuntos.

Você enfatiza que tudo no seu livro é real, dos personagens aos diálogos, mas o livro é um romance, e a técnica das várias vozes narrativas, com utilização dos vários pontos de vista, embora com ênfase à voz do Duce, deixa evidente que se trata de um trabalho de arte literária. O que o motivou a optar por escrever um romance e não uma biografia simplesmente?
Um dia, enquanto estudava a vida de Leone Ginzburg, grande intelectual antifascista, para meu romance anterior, Il tempo migliore della nostra vita [O tempo melhor da nossa vida], assistia a um filme do Instituto Luce com um discurso de Mussolini e vendo aquele rosto e aquela gestualidade tão peculiares, disse para mim mesmo: mas isso aqui ninguém nunca contou… estava pensando, naturalmente, do ponto de vista do escritor, não daquele do historiador. O observei com os olhos despojados dos preconceitos antifascistas, o observei como matéria, pela primeira vez, narrativa. A inserção de documentos da época foi uma escolha inicial para garantir o que o leitor iria ler na parte romanceada, depois esses documentos começaram a dialogar entre si e a formar uma subtrama em que se descobre, com comoção, a cegueira dos homens diante de suas próprias vidas quando estão imersos nelas.

Este personagem que você recupera em minúcias é assombroso. Você conviveu de perto com ele, como se estivesse sentado à sua frente durante muito tempo e ainda convive, pois está escrevendo a continuação do que será uma trilogia. Qual foi a sensação de estar tão perto de personagens brutais? O que ficou de mais forte?
Coloquei para mim uma regra, ou seja, que a narração deveria ser em terceira pessoa, assim não queria correr o risco de identificação, também no plano moral. Mas a verdade é que os personagens são presenças muitos fortes e, depois da minha imersão por tanto tempo e tão profunda em seus pensamentos e em seus escritos, Mussolini acabou por tomar a palavra. Mas isso acontece no início, no final do romance e em um outro momento, então decidi limitá-lo a esses poucos momentos. Não foi simples. Entrar em profundo contato com a mente, com a psique e com aquela fascinação coletiva foi desestabilizador e extenuante, mas me ajudaram na escolha documentária e na fé na pedagogia da literatura.

“O que me interessa, permanecendo profundamente antifascista, é contar o fascismo através dos fascistas, o que não significa aderir à ideologia deles.”

O fascismo, como você mesmo já disse, movimenta-se dentro do jogo democrático e é assim, neste meio, que ele cresce. Pode sinalizar alguns exemplos?
Posso contar de algumas assonâncias com o presente que descobri enquanto escrevia. A retirada dos democráticos no momento em que a política se torna mais brutal, para citar George Mosse e Hanna Arendt, o rancor da pequena burguesia rebaixada, a fraqueza da velha classe parlamentar, a cegueira da inteligência liberal e o suicídio da esquerda… Contudo, por sorte, há um fator que nos distancia desses anos tremendos, ou seja, a violência cotidiana.

A sua pesquisa é minuciosa. Você se debruçou sobre incontáveis fontes históricas para aprimorar o romance. Dentre tudo o que você descobriu, o que mais o chocou? Ou simplesmente surpreendeu?Consultei monografias, biografias, arquivos de jornais e muita correspondência particular que me deram detalhes como o tipo de sapatos que usava Matteotti, no dia em que foi assassinado, ou o comportamento cafona de Mussolini, que olhava para seu chapéu durante um encontro íntimo com sua amante Margherita Sarfatti. São detalhes que nutrem a atmosfera da narrativa. Em relação aos documentos reproduzidos no romance, as citações testemunham como os contemporâneos, na maioria das vezes, não entendiam nada do que estava acontecendo. Uma das coisas mais fascinastes é que, a cada guinada da história, as coisas poderiam ter sido diferentes. Estudando os fatos históricos, muitas vezes disse para mim mesmo: “Não, é incrível, não pode ter acabado como sabemos”. Espero ter conseguido transmitir essa minha surpresa. Como, por exemplo, Mussolini perde as eleições e os socialistas organizam uma paródia de funeral debaixo da sua janela, com carro fúnebre transportando um fantoche do corpo de Benito Mussolini. Poucos anos depois, ele se tornará Presidente do Conselho, com a nomeação do rei Vittorio Emanuele.

Quais foram os ingredientes básicos que forjaram a ascensão do Duce em termos da psicologia do personagem?
Mussolini era um homem vazio, sem ideologia, que soube fazer seus os medos e as frustrações do século. Ele mesmo se definia como “a supremacia tática do vazio”, mas sabia estar perto das pessoas, escutar seus medos e instrumentalizá-los para transformá-los em ódio e violência a serviço das conquistas do poder. Pode parecer estranho, mas, nos anos em que subiu ao poder, Mussolini não tinha ideias. Ou melhor, usava as ideias para se livrar delas. Seu único programa era combater. O mal que traz na História tem a forma da água, e a água toma a forma de seu recipiente.

“Hoje assistimos a um atraso de civilidade: decepcionadas com as promessas da modernidade, as pessoas cedem a pulsões regressivas.”

Este tipo de ditador-arquétipo teria espaço na nova era que você acredita que começaremos a viver?
Hoje assistimos a um atraso de civilidade: decepcionadas com as promessas da modernidade, as pessoas cedem a pulsões regressivas. E inclusive a política, para aumentar o consenso, está disposta a descer alguns degraus na escala da civilização: isso é muito perigoso. O embrutecimento da linguagem política, a queda da participação das instituições e dos partidos na vida são sinais preocupantes, que se escondem na retórica da democracia direta por meio da internet.

Você fez uma opção corajosa por não repetir o ângulo objetivo de sempre e fazer uso do ponto de vista de um ditador, conferindo-o subjetividade, o que, acredito, tenha suscitado muitas críticas. A sequência irá ser no mesmo estilo? Haverá alguma alteração na forma?
A forma do romance permanece a mesma no segundo volume de M que estou terminando nesses dias. O que me interessa, permanecendo profundamente antifascista, é contar o fascismo através dos fascistas, o que não significa aderir à ideologia deles. Pode-se refundar o antifascismo narrando-o com liberdade e com os riscos da narração literária. Toda a parábola do fascismo tem um alto índice de romance, pelas tramas e destinos incríveis, frequentemente desconhecidos, e vou narrá-los. Como grande apaixonado por séries de TV, queria desafiá-las, com um modelo de narração que abraçasse um longo período, como em Games of Thrones: tentar transplantar para a literatura aquele tipo de história em que se narram lutas de poder e as tragédias que elas causam.01

M, o filho do século
Antonio Scurati
Trad.: Marcello Lino
Intrínseca
816 págs.
Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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