O luto do romantismo libertário

Obra de Juliano Garcia Pessanha é marcada pelo diálogo da literatura com a filosofia e a psicanálise
Juliano Garcia Pessanha, autor de “Certeza do agora”
01/05/2024

A obra de Juliano Garcia Pessanha surgiu por meio do Prêmio Nascente (Abril-USP), que recebeu em 1997 nas categorias ficção e poesia. “Foi uma revelação”, segundo o crítico Manuel da Costa Pinto. Apresentava diferentes gêneros literários — ensaio, ficção e poesia em prosa —, explorando os mesmos conflitos, “de maneira hipnotizante”. Publicou Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilidade perpétua (2009), pela Ateliê, depois reunidos em Testemunho transiente (Cosac Naify, 2015), que recebeu o Grande Prêmio da Crítica da APCA. Seus textos — como a marcante narrativa Heterotanatografia (termo oposto a “autobiografia”) — trazem um diálogo da literatura com a filosofia e a psicanálise. É também autor de Recusa do não-lugar (Ubu, 2018), Epigramas recheados com cicuta (Sesi-SP, 2018) e O filósofo no porta-luvas (Todavia, 2021). Certeza do agora ganhou nova edição recentemente pela Nós.

• Esta é a terceira edição de Certeza do agora, desde seu lançamento, há mais de 20 anos. Como foi o convite para a reedição pela Nós?
Fiquei contente, porque o livro já não estava circulando. A segunda edição foi pela Cosac, que fechou logo depois. Quando meus quatro primeiros livros foram publicados num único volume [Testemunho transiente], ficou muito pesado. Agora ficará mais leve, cada um publicado de modo independente. Acho que a Nós vai fazer os quatro. Em breve farei uma cirurgia, depois disso vou revisar o Sabedoria do nunca para republicação.

• Você atualizou o texto, em colaboração com a poeta Michaela Schmaedel. Como foi essa parceria?
Mais jovem, quando os livros saíram, eu era muito teimoso, não gostava do trabalho de revisão das editoras. Ficava incomodando. Agora percebo que pode melhorar muito, um revisor que não é invasivo. Que respeita o texto do autor. Não é que enxuguei muito — dei uma melhoradinha. A Micaela é minha namorada, eu lia em voz alta para ela. Então me ajudou na escuta. Ela é poeta, e faz parte do poema ser enxuto.

• Os textos de Certeza do agora têm, ao final, referência a leituras públicas, com local e data. Como foram essas leituras?
Vinte e cinco anos já que se passaram. Eu tive a sorte, circunstancialmente, de ser convidado para eventos e poder testar o livro, ler em voz alta. Era muito bom, para ver a reação das pessoas, para eu mesmo escutar. Podia perceber se as pessoas estavam afetadas. Naquele momento, eu estava entusiasmado com a escrita. Literatura é muito afeto.

• Em O filósofo no porta-luvas, você descreve o personagem Juliano Pessanha como um “esquizão gentil”. A ternura é importante para você?
Sempre dialoguei com as nomenclaturas psiquiátricas, psicanalíticas… Pela maneira como me constituí, eu tinha dificuldade de ser mais agressivo, mais positivo. No sentido de não ter tanta força de me impor no mundo. Minha cabeça tinha a ver com escrever. Então me autointitulei “esquizão gentil”. Mas aí tem uma brincadeira, o livro tem muito humor. Agora não estou mais nesse repertório. É difícil a gente se autodefinir, não tem um diagnóstico tão bom, né? [risos].

• Mas a gentileza permanece… Em palestras e entrevistas, destaca-se a ternura da sua voz.
O que você entende por gentileza?

• A origem da palavra tem relação com nobreza. Mas hoje também significa trato carinhoso, delicadeza.
É um termo importante, nesse sentido de cuidado com o ambiente, com as coisas. A falta de cuidado é um problema do mundo contemporâneo. Se é possível um mundo mais gentil, a gente não sabe.

• Alguns textos seus, como Heterotanatografia: esse-menino-aí [de Certeza do agora] estão disponíveis em audiolivro, na sua voz. Como foi a gravação?
Eu estava nervoso e um pouco resfriado. Sou muito alérgico. Tinha que ler sem erros, continuamente, num dia só. Fiquei meio estressado. É diferente ler na presença das pessoas, ou ler sozinho com microfone de rádio. Só você numa sala, o silêncio, eu não estava acostumado, como um ator seria capaz. Eu me esforcei, mas não sei. Não olho depois, fico envergonhado e acabo não conferindo. Foi uma experiência que depois não se repetiu. O projeto não foi tão divulgado.

• A narrativa Heterotanatografia foi lida no CAPS-Itapeva, em 2001, antes da publicação. Em O filósofo no porta-luvas você escreve que Frederico é “oficineiro do CAPS” [Centro de Atenção Psicossocial].
Fiz uma leitura lá, depois fui convidado para organizar uma oficina de escrita e leitura. Eu ia toda semana no CAPS-Itapeva, com várias cópias de textos. Éramos eu, os estagiários, a equipe de psicologia e medicina. Participavam uns vinte e cinco usuários do CAPS. Foram seis anos muito ricos, publicamos até um livro dos participantes da oficina. Quando escrevi o Porta-luvas, usei essas experiências.

• Algo te chamava a atenção nesse atendimento público?
Acho que naquela época era mais aberto. O ambiente já estava meio dominado pela psiquiatria médica, mas senti um acolhimento. A oficina era muito animada. Eu lia Hilda Hilst, Lautréamont. Chegamos a ler Notas do subsolo, do Dostoiévski, inteirinho lá. Fiz muitas amizades, tanto com os psiquiatras, quanto com os usuários. Hoje a farmacologia está dominando mais. Num momento, teve uma indisposição, porque o pessoal do CAPS queria usar minha oficina como sanção premial. Eu era contra, o acesso deveria ser livre, não para premiar quem poderia ir ou não. Já faz uns dezoito anos. Depois nunca mais voltei. Fiquei triste quando soube do destino de alguns participantes, que morreram ou se suicidaram.

• Em Recusa do não-lugar, você escreve que Hilda Hilst “mergulhou a vida no parto de uma obra”. Que outras escritoras são referências para você?
Uma vez estive na casa da Hilda, ela já tinha morrido. Falei sobre a poeta russa Marina Tsvetáeva, de que gosto muito. Uso o exemplo da Hilda para a centralidade que a literatura teve, e agora parece ter menos. As jovens poetas que conheço hoje, que poderiam ser como Hilda, então na academia. Há uma cultura de terrorismo analítico, de saber tudo. O operador teórico se tornou mais importante que a literatura. Houve alguma ruptura histórica, o capitalismo ficou muito mais forte. As pessoas escrevem em residências. Acho difícil ver uma jovem rica que vai para um sítio se dedicar à obra.

• Em Certeza do agora, você atribui ao escritor uma missão elevada, de caráter trágico: “fazer a mediação entre dois idiomas intraduzíveis”, entre o olho da nuca, e o olho pra dentro do trem…
O olho da nuca seria o deslumbramento, a descoberta poética do mundo, a colheita do originário… Isso não teria uma mediação com o mundo capitalista, tecnológico, dentro do trem. Ficam dois idiomas, duas regiões imiscíveis. O escritor seria alguém que passa nesse quebra-molas, indo de um lado para o outro. Eu era muito ligado ao pensamento do Heidegger, o não-esquecimento do ser, a poesia. Acabei abandonando essa posição. Nem sei se ela é sustentável hoje, pode parecer uma aristocracia do poeta com P maiúsculo. A escrita da poesia sempre depende de um estrabismo, de um desalojamento no mundo dentro do trem. Isso ainda sustento. Mas nos meus livros posteriores tentei brincar, ironizar a posição que eu tinha antes.

• Em O filósofo no porta-luvas, o personagem Frederico é definido como profeta-filósofo. O personagem-filósofo está apartado do Juliano, personagem-escritor. É essa separação que você define como “velório do meu romantismo libertário”?
Fui vivendo essa desilusão, o luto dessa posição do poeta como guardião do aberto, do olho da nuca, que profetiza uma nova constelação do mundo. Eu próprio não consegui me sustentar aí. Precisei cair para me tornar uma pessoa comum, na luta da sobrevivência. Tentei sair desse binarismo, desse romantismo libertário, como se Jesus fosse voltar. Passei a desconfiar disso, olhar de outras perspectivas. As coisas são muito mais difíceis.

• Em entrevistas, você contou que não escreve cotidianamente, que não é propriamente um “escritor”. Que significado a escrita tem para você?
É uma pergunta difícil de responder. Dou aula em faculdades de escrita criativa, existe uma concepção quase técnica, ensinar como faz a coisa. Há uma parte técnica realmente. Mas nunca me senti escritor porque só escrevi quando um assunto se precipitou, estava urgente no meu próprio corpo, bastava transcrever. Agora estou num período deserto, procurando repertórios. Não sinto aquela urgência. Minha singularidade, sinto que já esgotei na minha escrita. Estou tentando mudar, ler outros repertórios. Não sei o que vai acontecer. Alguma coisa sempre perdura… Esqueci agora do que a gente estava falando. Fiquei nervoso e esqueci.

• Das novas leituras, você quer mencionar alguma obra?
Estudei alguns livros do [Bruno] Latour. Organizei um grupo para leitura da Anna Tsing. Hoje estava lendo a Donna Haraway. Tento entender esse pessoal de Berkeley, ver o que é isso. Estamos num momento de urgências, um sentimento apocalíptico de não ter mais mundo para ser explorado e devastado. Por outro lado, as pessoas estão acostumadas a certo bem-estar, a certo nível de vida. É um problema gigantesco. Se vai ter alguma contenção, talvez ninguém saiba. É complicado você chegar para seu netinho e falar: “Olha, a vovó viajava para os Estados Unidos, andava de avião, mas você não vai mais”. Dificilmente algum governante vai se eleger com um discurso desse.

• Você lê outros gêneros, literatura de gênero, de entretenimento? Algo que não costuma falar em entrevistas?
Não tenho uma leitura secreta. Para me distrair, descansar, sou da geração da televisão. Às vezes fico até triste, por olhar muita televisão. As minhas leituras estão nos meus livros. Agora tento ler história, economia, como se quisesse ganhar competência para falar mais do mundo… Não sei se vou conseguir essa migração. Dos autores que li — Pessoa, Kafka, Heidegger —, sinto que algo saturou. Só isso não basta. Esses grandes mestres ficaram em parte mortos para mim.

Juliano Garcia Pessanha

• Você acompanha os embates no campo literário, como a censura, as guerras culturais… Ou as autorias não-brancas que têm se destacado?
Já estou envelhecendo, mas acompanho sim. Às vezes fico assustado, porque na literatura o cara podia dizer tudo… de repente certas palavras e certas coisas ficam proibidas. Todo mundo fica com medo de ser cancelado. Isso inibe, talvez, a ficção.

• Com você já aconteceu algo assim?
Ainda não. Também não me policiei nesse sentido. Talvez eu tenha me atualizado mais no debate climático, a biologia e a antropologia, tentando compreender o que sai politicamente desses autores. De literatura, estou lendo o crítico George Steiner, acho muito interessante.

• O filósofo no porta-luvas é todo narrativo, diferentemente dos outros livros, que se compõem também de ensaios e aforismos. O humor é marcante no livro. Essa mudança trouxe novos leitores à sua obra?
Boa pergunta. Admiro o escritor polonês Witold Gombrowicz, que tinha muito humor. Em O filósofo no porta-luvas tentei fazer um romancezinho, é uma ficcionalização dos temas que trabalhei em Recusa do não-lugar. No humor, você só consegue criar se tiver isso em você. Acho que sempre fui engraçado, mesmo à minha revelia. Essa posição do olho da nuca levava a algo meio sublime. Tinha que quebrar isso. O humor foi o jeito, né?

• Epigramas recheados de cicuta, em coautoria com Evandro Affonso Ferreira, traz textos curtos, com humor às vezes sutil, às vezes escrachado. Como foi trabalhar com o Evandro?
Eu estava na rabeira do Evandro, que é bastante humorista, né? A gente sentava junto num restaurante árabe, almoçava e tentava criar essas frases. Ele já tinha muitas, depois entrei e criamos os dois… tem umas duzentas no livro. Eu gostei e sugeri continuar, mas era também a editora do Sesi, que fechou para livros não didáticos, como comentei. Nem tenho esse livro, nunca consegui ter.

• Você gostaria de falar sobre seus planos atuais?
Tenho dificuldade de me deslocar no tempo e falar daquele rapaz… Sabe quando você mudou e ao mesmo tempo não mudou? É esquisito. Tinha uma certeza tão vívida de certos assuntos, que foi se desalojando. É uma experiência estranha. É mais agradável quando você está embebido de uma certeza, de uma convicção. Eu era um rapaz, agora o pessoal me chama de senhor na rua. Por dentro, você não mudou tanto, mas vai envelhecendo, né? Os vinte e cinco anos que me separam desse livro [Sabedoria do nunca]… fiquei acreditando naquilo, mas não acreditando.

• Seu primeiro livro, Sabedoria do nunca, vem de diários que você fez durante muitos anos. Você pensou em retomá-los, nessa fase de mudanças?
Hoje tudo acelerou muito, WhatsApp, celular… eu também me acelerei. A escrita do diário ficou para as minhas origens. Os primeiros três livros são muito tirados dos diários que fiz de 1983 a 1995. Com o tempo fui rasurando, virou canteiro de obras. Hoje em dia, tenho só umas cem ou duzentas páginas dessa época. Nem sei se dá para fazer uso. É como um pintor que aprende a pintar, depois ele já incorporou e não precisa mais do diário. É uma pena, seria legal. Agora, depois que eu for operado, vou dar uma melhoradinha no primeiro livro e a Nós vai republicar.

Certeza do agora
Juliano Garcia Pessanha
Nós
112 págs.
Sabina Anzuategui

É autora de Escrevi pra você hoje (2023), Uma mulher sem ambição (2021), Luciana e as mulheres (2019), O afeto (2011) e Calcinha no varal (2005). É bisneta de Marciano. Ama os cachorros platonicamente.

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