O lírico vespeiro

Quarenta e cinco anos depois de organizar a antologia que lançou Ana Cristina Cesar, Heloisa Buarque de Hollanda reúne nova geração de poetas
Heloisa Buarque de Hollanda, organizadora de “As 29 poetas hoje”
23/03/2021

Há 45 anos, em 1976, a antologia 26 poetas hoje — organizada por Heloisa Buarque de Hollanda — reuniu nomes como Ana Cristina Cesar, Chacal, Roberto Piva, Zulmira Ribeiro Tavares, Torquato Neto e Waly Salomão, entre outros. Figuras que hoje são reconhecidas e influentes no meio literário. No entanto, nem sempre foi assim.

Na época da publicação deste conjunto que se tornou histórico, “a academia, o jornalismo mais conservador e os poetas mais reconhecidos receberam o lançamento como uma peça de ‘não literatura’”, explica Heloisa no texto de introdução à reedição do volume, publicada neste ano pela Companhia das Letras.

A “crítica ranzinza” dos anos 1970, porém, não deu conta de aplacar o movimento natural das coisas. Aquela forma de expressão poética mais livre e marcadamente contracultural, a qual Heloisa considera que tenha sido uma forma de enfrentamento eficaz aos “anos de chumbo” no Brasil, deu muitos frutos — a incontornável influência de Ana Cristina Cesar nas formas que as poetas foram encontrando para lidar com diferentes temas, por exemplo.

Depois de quase meio século, o inimigo agora é outro. Em meio a um cenário em que os haters e canceladores da internet parecem exercer um papel mais violento e destruidor do que os barões do bom-tom do passado — e que o governo se apresenta como um inimigo mais brutal —, a pesquisadora lança As 29 poetas hoje — trazendo nomes como Mel Duarte, Ana Frango Elétrico, Bell Puã, Bruna Mitrano, Yasmin Nigri e Nina Rizzi, entre outros.

“Ambas antologias são geracionais, marcam a voz de poetas jovens, com a diferença que a primeira, de 1976, trazia a palavra de uma classe média branca, predominantemente masculina. A segunda já exibe a diversidade profunda entre as mulheres, suas experiências, dores, demandas”, explica Heloisa. “A poesia de mulheres ganhou voz, liberdade e espaço.”

Desse novo recorte, surgido quando a organizadora foi estudar a quarta onda feminista, uma das novidades é a presença das mulheres do slam — “um exemplo vigoroso do compromisso da nova poesia com a transformação social” e que “potencializa a força original da oralidade”, comenta Heloisa.

Nessa maneira relativamente nova de se organizar e produzir, que pode ser caracterizada como uma competição de poesia falada na qual corpo e voz são fundamentais, “a poesia desliza do livro para o corpo como instrumento expressivo e se quer como mensagem”, esclarece a organizadora da obra, emprestando a definição da slammer pernambucana Luna Vitrolira.

Nas prateleiras nacionais desde fevereiro, ainda é cedo para definir o impacto que As 29 poetas hoje terão sobre os rumos literários. Heloisa, no entanto, parece preparada para o que der e vier: “Vivo mexendo em vespeiro, a polêmica faz parte do show”. Todo bafafá causado pela antologia 26 poetas hoje, afinal, definiu a agenda de pesquisa que estruturou a carreira da paulista.

Para além das dores de cabeça que podem vir a reboque, e sabendo de antemão que um recorte como o proposto por uma seleta desse tipo é “violento” e “como qualquer forma de violência, gera reação”, Heloisa afirma que “a poesia hoje está se democratizando e alcançando mais poetas, leitores, ganhando as ruas, multiplicando-se em várias práticas da palavra”.

“A poesia de mulheres ganhou voz, liberdade e espaço.”

É provável que daqui algumas décadas seja possível avaliar com maior precisão qual foi o saldo desse trabalho — e se a reedição do livro 26 poetas hoje, aliás, teve algum tipo de impacto como à época de seu lançamento. A organizadora das antologias deixa os leitores com uma pergunta inquietante: “Será que daqui a 45 anos a poesia vai ser nosso esperanto?”.

• O que espera da repercussão da antologia As 29 poetas hoje? Há alguma mensagem principal que o conjunto pretende passar?
Toda antologia é polêmica. Essa é uma regra que não tem exceção. Imagino que as polêmicas girem em torno de representatividade — o que, certamente, não consegui dominar — e em torno da abertura temática e de linguagem que essa poesia está trazendo. Ela é forte, substantiva, não está para brincadeiras. E isso provoca reação. Se não provocar, alguma coisa errada aconteceu. Estou curiosa e antenada com a recepção da antologia. Tenho uma escuta forte para a crítica. Não rejeito críticas, nem me ofendo. Aproveito as críticas no que elas têm de melhor. A recepção negativa dos 26 poetas hoje, em 1976, de certa forma, definiu a agenda de pesquisa que estruturou minha carreira.

• Quais principais diferenças e semelhanças têm As 29 poetas hoje com os nomes da antologia de 1976?
As duas refletem respostas a governos conservadores e autoritários. A primeira registrando a memória e a experiência da “geração AI” ou “geração do sufoco” e a segunda marcando posição e espaço na guerra do governo contra a “ideologia de gênero”. Ambas são geracionais, marcam a voz de poetas jovens, com a diferença que a primeira, de 1976, trazia a palavra de uma classe média branca, predominantemente masculina. A segunda já exibe a diversidade profunda entre as mulheres, suas experiências, dores, demandas. Temos ainda outras diferenças e semelhanças entre as duas antologias como seria de se esperar, mas essas duas me parecem as mais estruturantes.

• A nova antologia foi motivada, em alguma medida, pela nostalgia? Pensa ter alguma obrigação ou responsabilidade ao fazer esses recortes?
Não. Responsabilidade nenhuma. Acontece que pesquisa é uma caixinha de surpresa que se desdobra de formas muitas vezes inesperadas. Fui estudar as novas linguagens políticas do ativismo da quarta onda feminista e me defrontei com essas poetas, que vieram em direção a mim como uma onda gigante. Eu, desde sempre viciada em poesia, não resisti e mergulhei de cabeça, seguindo o canto das sereias.

• Desde Ana C., que é tida como pioneira e influenciou nomes incontornáveis da poesia contemporânea, o trabalho feito por mulheres encontrou um rumo próprio e sólido?
Certamente. Mas demorou… Ana é do início dos anos 1980. Já se passaram 40 anos. Mas essa trajetória coletiva foi linda. Foram tantas poetas aparecendo no pós-Ana, cada uma dando um passo à frente, mexendo com a suposta linguagem feminina, apertando cada vez mais o cerco de um suposto feminino, esticando os limites do que pode ser dito, do que seria esse misterioso universo de mulheres. Pouco a pouco, uma enorme linhagem de poetas mulheres romperam a barreira do som. Agora, já é. Não tem caminho de volta. A poesia de mulheres ganhou voz, liberdade e espaço.

“Uma antologia matematicamente mais exclui do que inclui. Qualquer recorte desse tipo é violento.”

• As 29 poetas hoje traz nomes do slam. Quais novidades ou ingredientes esse gênero adiciona à poesia contemporânea? Trata-se de um movimento que pode se solidificar dentro da academia, por exemplo?
O slam é um exemplo vigoroso do compromisso da nova poesia com a transformação social. O formato da poesia política do passado se reformula e ganha na poesia de mulheres a forma de atitude, viés ou mesmo de um pressuposto político bem mais eficaz do que um conteúdo explicitamente político com dicção de propaganda. E o slam talvez seja a forma mais clara desse ativismo poético. A poesia desliza do livro para o corpo como instrumento expressivo e se quer como mensagem (na definição de Luna Vitrolira, slamer pernambucana). O slam ainda potencializa a força original da oralidade, que tradicionalmente estruturou a poesia. Enfim, imagino que sim, a academia vai abrir espaço para o estudo dessa expressão. Neste sentido, já temos uma tese excelente de Roberta Estrela D’Alva, pioneira do slam entre nós, com um estudo vertical sobre a vocalização nas apresentações do gênero.

• Quarenta e cinco anos depois, como avalia a repercussão e a influência da antologia 26 poetas hoje no meio literário e na sociedade brasileira?
A antologia tornou-se histórica. Provavelmente por conta da articulação entre os poetas marginais e outros que tinham uma opção menos formal, que era como a poesia daquela hora estava se definindo. O trabalho de João Cabral, o concretismo, a poesia-práxis, o poema/processo eram não apenas a novidade, mas também um modelo poético bastante prestigiado naquela hora. Assim, a poesia marginal, articulando herdeiros do alto modernismo e da contracultura, foi recebida como alternativa às vanguardas literárias. O que não era 100% correto. Sobretudo, a poesia da contracultura ou marginal já apresentava um vínculo com as vanguardas, mais precisamente a vanguarda concretista, através de seus poemas oswaldianos. Mas foi assim, como tendência antiformalista, que a chegada dos marginais foi experimentada. E foi assim que foi precocemente “cancelada” como não literatura. Mas, pouco a pouco, a própria história e o tempo foram desatando as articulações que fiz na composição da antologia e as diferentes poéticas ali aglomeradas foram seguindo caminhos próprios, marcando suas diferenças, e se aproximando, cada uma a seu modo, do cânone literário.

• Devido à pecha de “poesia marginal”, você recebeu uma indireta do Chacal em um poema do livro Quampérios (1977). Nos anos que se seguiram à publicação de 26 poetas hoje, qual foi sua relação com a turma da antologia? E com aqueles que tentaram diminuir seu trabalho?
A melhor possível. Chacal é meu parceiro, fazemos muitas coisas juntos. Realizamos, por exemplo, um evento grande sobre poesia no Sesc um tempo atrás. Um viradão, A palavra toda, que teve uma sessão chamada (por sugestão de Chacal) de As margens plácidas, com os poetas marginais, já velhinhos, trêmulos… Chacal é magistral, não marginal. O povo da crítica talvez voltou a ser amigo. Vivo mexendo em vespeiro, a polêmica faz parte do show.

• Figurões das letras e do jornalismo receberam os 26 poetas hoje como “não literatura”. Atualmente, ainda há espaço para os barões do bom-tom?
Os barões do bom-tom são imortais. Mas agora ganharam a companhia ruidosa dos haters e dos cancelamentos bem mais violentos e destruidores do que a crítica ranzinza do passado.

• A autopublicação fez a cara dos anos 1970. Hoje, a internet oferece possibilidades semelhantes. Está mais fácil para um autor se fazer por si mesmo?
Passei muito tempo nos anos 1990 pesquisando os rumos da poesia em meio digital. Fiz duas antologias, Enter e Poesia, testando plataformas e o horizonte possível de uma palavra estendida. Não rendeu muito. Temos uma poesia digital muito boa, mas a poesia na forma impressa se fortaleceu como nunca. O que quer dizer que a internet para a literatura, ao contrário do que pensávamos no início da disseminação dos meios digitais, é fundamentalmente uma distribuidora. Assim, temos um alcance infinitamente maior para a palavra literária do que antes. Provavelmente, a popularização da poesia hoje tenha a ver com isso.

• Considerando o momento atual da política brasileira, qual é a relevância das expressões contraculturais?
A contracultura, no Brasil dos anos 1970, para além de sua missão original de ser antissistema, uma rebelião jovem contra o status quo, surge se modelando como uma das linguagens de resistência contra o regime militar. Atualmente, a cultura é o foco mesmo da “guerra cultural” do governo. Mas, ao contrário do regime militar que tinha como armas a censura, a prisão e a tortura, hoje o governo trabalha com a estratégia do desmonte, mina as instituições por dentro, tirando verbas e colocando dirigentes comprometidos com o extermínio da esquerda vista como “dona da cultura”. O inimigo está mais brutal e menos frontal. Não vejo os movimentos contraculturais como enfrentamento eficaz como nos anos de chumbo.

“Vivo mexendo em vespeiro, a polêmica faz parte do show.”

• A gigante Companhia das Letras lançar essas antologias combativas é uma forma de a expressão contracultural ser assimilada pelo mainstream? Há alguma validade nessa discussão?
Sinceramente, acho que essa discussão ficou perdida nos anos 1970. A função social da cultura vem se transformando rapidamente, o mercado também, e a ideia ingênua de assimilação saiu de cena. A relação política-mercado-cultura-resistência virou uma equação prismática e estratégica bastante sofisticada. Vide a relação centro-periferia no mercado cultural.

• O espírito da juventude combina mais com a postura combativa? Escritores e poetas vão “perdendo vitalidade combativa” com o passar dos anos?
Talvez. Mas pelo que tenho visto dos “novos velhos” na cena cultural, como Gil, Caetano e tantos outros setentões e oitentões, a rebeldia de antes transforma-se em legitimidade para falar mais alto e em ponte para novos talentos que garantam a voltagem crítica da cultura.

• Um recorte proposto por uma antologia necessariamente exclui poetas. Muita gente já lhe cobrou por isso? É difícil lidar com o ego do artista?
Sempre. Uma antologia matematicamente mais exclui do que inclui. Qualquer recorte desse tipo é violento. O que, como qualquer forma de violência, gera reação. Por outro lado, essa reação promove inevitavelmente um debate bastante rico sobre valores, sobre critérios de avaliação e legitimação literários, sobre diversidade cultural e muito mais coisas frequentemente desagradáveis mas fascinantes.

• Transformando um comentário de Armando Freitas Filho em pergunta: grandes poetas quando se vão deixam um perfume no ar, inescapável?
Armando é um guru, um bicho poético. Vive de poesia. Respira poesia. Se alimenta de poesia. É um caso raro de dedicação exclusiva a esse universo. Por isso, o que ele diz está dito. E, particularmente, a máxima acima, que ele construiu pensando no legado de Ana Cristina Cesar, é tão verdadeira quanto bela.

• Quase meio século separa os 26 poetas hoje da sua antologia mais recente. Que cara pode ter uma nova reunião daqui 45 anos? Quais caminhos imagina para a poesia?
O que vem se tornando visível é que a poesia hoje está se democratizando e alcançando mais poetas, leitores, ganhando as ruas, multiplicando-se em várias práticas da palavra. Será que daqui a 45 anos a poesia vai ser nosso esperanto?

As 29 poetas hoje
Org.: Heloisa Buarque de Hollanda
Companhia das Letras
264 págs.
26 poetas hoje
Org.: Heloisa Buarque de Hollanda
Companhia das Letras
280 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

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