Fundo falso

"Chove sobre minha infância", de Miguel Sanches Neto, completa 25 anos e é um marco da autoficção brasileira
Miguel Sanches Neto, autor de “Chove sobre minha infância”
01/06/2025

Chove sobre minha infância — um marco da autoficção brasileira — acaba de ganhar a sexta edição, ao completar 25 anos de publicação. Nesta entrevista, Miguel Sanches Neto defende a atualidade de seu romance, para além da mera autobiografia: “A ficção está em primeiro plano, pois só secundariamente ele se rende à autobiografia, é um livro atual que contraria o pacto ingênuo e raso da verdade autobiográfica”. Também comenta sobre a construção do livro, aspectos da literatura contemporânea e a respeito de sua carreira como ficcionista.

Chove sobre a minha infância é um exemplo de autoficção que radicalizou seus limites, em parte pelo fato de incluir um álbum de fotografias de família. Fale um pouco sobre a autoficção na sua obra e sobre o processo de como as edições seguintes foram se despindo deste referencial.
Escrito em 1998 e publicado em 2000, no alvorecer da autoficção entre nós, este romance pretendia deliberadamente enganar o leitor, porque se propunha como mero relato memorialístico, em que um autor até então inédito como ficcionista apresentava a sua história familiar mais ou menos convencional. Nesta arquitetura literária, a utilização de fotos criava uma fachada realista para um livro que tinha uma gramática ficcional que se queria subterrânea. Sempre explorei estas confusões de gênero, testando seus limites, questionando suas premissas, para surpreender o leitor no final. Toda a narrativa construída pelo menino e pelo jovem Miguel — que passa por uma mudança de linguagem ao longo dos capítulos — é destruída pela carta da irmã dele, de natureza artificial mas que se propõe como um documento revelador que muda os rumos da compreensão daquela trajetória autocentrada em um heroísmo masculino — algo assim de como se constroem as figuras fortes no mundo dos homens rudes. Então, quem vence na estrutura interna do romance é a ficção, pois só a superfície do nome e das imagens não é suficiente para sustentar o literário, é necessário o princípio inventivo, que estava subjacente. E também a voz feminina, periférica na estrutura, mas implosiva em relação ao discurso até então construído pela primeira pessoa de um eu confiante em si. Há, poderíamos dizer, uma representação inicial da voz feminina (da mãe, das tias, das professoras etc.) por meio do narrador masculino que só emerge com poder de significação na personagem Carmen, que cria a reviravolta do romance. Para constituir este cenário de superfícies narrativas e de gênero que induz a uma leitura torta, corrigida só no final, as fotos tinham uma função de linguagem e não de mera ilustração, como nas memórias ou na autobiografia. Logo em seguida, quando o livro foi traduzido na Espanha, estas fotos acabaram recusadas pela editora, o que me levou a tirá-las das edições seguintes aqui no Brasil, para manter uma unidade. Mas elas fazem parte da recepção dele, gerando inclusive polêmicas em torno de minha estreia. Era meio inadmissível jogar de maneira tão descarada com estas confusões narrativas naquela época. Como se fosse um desrespeito à verdade. Penso que meu romance, em que a ficção está em primeiro plano, pois só secundariamente ele se rende à autobiografia, é um livro atual que contraria o pacto ingênuo e raso da verdade autobiográfica, tão comum nos livros que cultuam sociologicamente o lugar de fala. No meu livro, todo lugar de fala tem sempre um fundo falso. Este fundo falso se chama literatura.

Chove sobre minha infância parece atestar a impossibilidade de se construir uma autobiografia, um pouco na linha do que o Philippe Lejeune estudou, em O pacto autobiográfico?
Exatamente, reforça o caráter desviante da narrativa do eu, não um desvio para burlar sua natureza protetiva (esconder o que não é digno de uma memória positiva) ou para fingir uma importância ou mesmo por uma traição não intencional da memória, mas para criar um efeito ficcional sobre o material vivido. É um texto com um excedente de ficção, seja factual ou estrutural. Na autoficção, o material biográfico, por mais fidedigno que se queira, é uma falsificação com função estética.

• Como se dão os “eus” envolvidos no romance: as memórias do menino, o homem que revive as experiências do menino e o autor que elabora o texto ficcional?
Há um registro de linguagem que acompanha e distingue estes eus. Eles são antes de tudo linguagem em estado de amadurecimento. Os momentos mais ingênuos, a compreensão insuficiente dos fatos, o amor extremado pela mãe jovem e pela avó, enfim esta fase inicial é um código de percepção lírica e de uso da linguagem desarmada que vai compondo um retrato linguístico do menino. Os capítulos são rápidos e de um para outro há uma evolução, como se fossem fotogramas criados pelas palavras. Depois vem a linguagem feroz, revoltada e desbocada, própria da passagem para a adolescência. O jovem se veste com um vocabulário e uma sintaxe que são a própria expressão de uma fúria, momento em que se adensam os conflitos com o padrasto e com o mundo. É a explosão do sexo, da política, da revolta, da escatologia. Isso tudo está contido no âmbito da linguagem usada. O adulto, no livro, que faz algumas interferências ao longo do texto e depois aparece no capítulo final, já tem um estilo mais desencantado sobre o tempo da infância e da adolescência, e não se vê mais como vítima, mas como o algoz que provocou o padrasto e o desafiou para conjugar nele toda a sua revolta contra o período de exceção de liberdade. Como tinha o braço curto, como era o fim da ditadura, o jovem se revoltou contra a família postiça para enfrentar, como se fosse um moinho de vento, o mal militar que atormentava o país. Assim, o livro descreve intrinsecamente os personagens pelas configurações de linguagem. Neste caso, o autobiográfico não está no factual, mas no manejo da caneta — para lembrar a música citada na carta da irmã Carmen — A enxada e a caneta. O adulto admite que a enxada, o mundo rural de onde veio, sofreu uma demonização indevida em sua narrativa e isso altera a sua linguagem final, que não se aceita triunfal, e sim vencida. E o autor é este eu em construção, que faz com que aquelas suas miragens, que são momentos forjados ficcionalmente, sejam uma representação das faces de cada fase. Tudo sempre no plano da estrutura e da linguagem.

• Apesar das várias representações (menino, jovem, adulto), parece que tudo sempre volta para a perspectiva da criança, o que confere à narrativa uma grande dose de lirismo. Você diria que o foco desta produção seria o reencontro com este menino?
Talvez seja a tentativa de reencarnação dele pela linguagem. O lirismo advém deste olhar desarmado do menino que, de fato, perpassa todo o romance, indo e vindo no tempo, e que cria uma unidade narrativa dentro da diversidade que eu quis construir. O menino não é biográfico no sentido histórico, mas enquanto forma de ver as coisas. Isso pode criar uma adesão a ele ou uma aversão, porque sua presença é muito forte na narrativa, principalmente no tom e na perspectiva dela.

Chove sobre minha infância retrata um Paraná dos anos 1960 e 1970 em que a ruralidade está muito presente nos hábitos e costumes, em contraste com a cidade para onde o narrador escapa. De que forma este Paraná ainda existe fisicamente e também qual é o espaço dele hoje na sua ficção?
Ele existe hoje como ausência. É um outro interior, de grandes lavouras mecanizadas, rico para os que são ricos, perverso para os que são pobres. Há no romance uma ideia de comunhão de classe, de concerto de gentes, de histórias de diferentes grupos que se mesclam, uma tentativa de criar uma visão positiva daquele tecido social dominado pelo pequeno agricultor, pelo pequeno funcionário, algo como uma cosmogonia extemporânea do Brasil popular, nascido do então recente desbravamento das terras do interior. Tudo isso se desfez rapidamente com a mecanização e as monoculturas, que baniram do campo as populações que moravam em colônias, em pequenos sítios, em patrimônios. O maior símbolo disso é que, como não há mais gente no campo, voltaram a existir onças que vagam pelas reservas legais das fazendas. Até o barracão de máquinas do agricultor hoje é na cidade. Eu tento retratar em alguns contos e em romances (como Inventar um avô [2023]) este outro interior, o da solidão verdejante da soja e do milho.

Miguel Sanches Neto

• É emblemática no romance a inserção de passagens que evocam o “sabor”, em particular o mundo das frutas, na construção de metáforas relevantes. Você diria que a sensorialidade é um dos eixos centrais da sua escrita?
É sim. Tento escrever uma literatura com cor, cheiro, sabor. Despertar no leitor uma memória sensitiva de algo, dentro desta ideia de que a literatura é um equipamento que vai muito além do narrar. Busco colocar o leitor dentro do livro, para que ele sinta, por exemplo, o cheiro da terra quando vem a primeira chuva depois de uma longa seca. É um perfume tão intenso e tão rápido, porque logo tudo se encharca, que precisa ser aspirado com narinas dilatadas. O uso da memória é mais do que falar de coisas que aconteceram, mas fazer com que coisas que aconteceram na vida do leitor sejam despertadas pela ficção. Depois de uma cena em que conto como foi a primeira vez que o narrador comeu uma fatia de abacaxi, uma fruta improvável em sua casa, o leitor deve reagir ao gosto de abacaxi que ele traz na memória, positiva ou negativamente. A vida é assim presentificada no ato da leitura, no qual o leitor, antes elemento externo, se integra ao livro. A maior potência de um texto estará sempre naquilo que produz essas vivências no leitor. Hoje, fala-se em turismo de experiência. A literatura é a maior propiciadora de experiências. Livros assim lidos são possibilidades de ser. São vidas somadas à nossa vida.

• Não vejo Chove sobre minha infância como um texto confessional, mas a confissão — ou, mais especificamente, a vontade de confessar — teve algum papel na escrita e na construção do livro?
Tive uma formação católica, em que a instituição confessional funciona com seu caráter, digamos, salvífico. Falamos de nossos pecados, segundo um dogma, para expulsá-los. O ato de confissão, assim, se reveste de uma força exorcista: expulsar o mal. Pode ter ficado algum resquício desta formação em mim, mas são marcas formais, mecanismos de criação, métodos de discurso. O escritor se apropria deles, mas faz um uso totalmente construído. O eu que narra não é o eu que quer a salvação religiosa ou a catarse psicanalítica. É um construto. Ele foi criado para produzir determinados efeitos emocionais e reflexivos no leitor. Ele não quer um ombro amigo para amparar-se. Todo narrador que se sustenta pela ficção está em um duelo intelectivo e emocional com o leitor. Esta circunstância, em que há um jogo ou disputa, compromete a confissão que, no meu romance, entra como modelo de linguagem, totalmente apartado da sua função original. O meu narrador não quer a validação de sua história, ele quer levar o leitor a reconhecer as vítimas de sua narrativa, e se condoer delas. O herói oculto do romance é quem mais foi culpado pelo narrador: o padrasto. Uma figura em que condensei representações da maldade e da perversidade. Na autoficção, vale a teoria pessoana do fingidor descarado.

NOTA
* A última pergunta foi feita por Julio Pimentel Pinto.

Chove sobre minha infância
Miguel Sanches Neto
Tinta Negra
256 págs.
Naira Nascimento

É professora de literatura da UTFPR.

Rascunho