Artífice da prosa concisa

Antonio Carlos Viana trabalha exaustivamente e “enxuga até o osso” seus breves e precisos contos
Antonio Carlos Viana, autor de “Cine privê”
30/10/2015

Considerado pela crítica como um dos renovadores do conto brasileiro contemporâneo, o sergipano Antonio Carlos Viana tem obsessão por lapidar as frases de seus contos ao extremo. Seu método é o de podá-los para que reste só o essencial à história. “Eu enxugo até o osso”, explica. Sua estética contística — caracterizada pelo estilo seco, narrativa concisa e precisão cirúrgica — já lhe rendeu a alcunha de o “João Cabral de Melo Neto da prosa”. Comparação que vê com felicidade, mas também com certo exagero, embora conheça como poucos a obra do poeta pernambucano. Professor aposentado de literatura da Universidade Federal de Sergipe, Viana carrega no currículo um doutorado em Literatura Comparada na Universidade de Nice, na França, sobre a poesia de João Cabral e a poética de Paul Valéry. Nesta entrevista — realizada em etapas devido às duras sessões de quimioterapia a que se submeteu semanalmente —, o escritor revela a saga para concluir o mais recente livro, Jeito de matar lagartas, que coincidiu com a descoberta de um tipo raro de câncer, o mieloma. De volta a Aracaju para se tratar, após um período sabático em Curitiba, Viana conta como a doença mudou sua rotina de trabalho, da urgência da vida e da experiência com a dor, e do lirismo que há por trás da secura de suas palavras.

• O senhor está completando 40 anos de carreira, com respaldo de boa parte da crítica literária, que o apresenta como um dos responsáveis pela renovação do conto brasileiro contemporâneo. Que avaliação faz em relação ao que se percebeu em suas obras, especialmente as que lhe deram maior visibilidade — Aberto está o infernoCine Privê Jeito de matar lagartas? Há algo com o qual não concorde?
Para o autor é muito difícil dar uma opinião sobre a própria obra. Não posso comparar a consciência que tenho hoje de escrever com a que tinha quando comecei. Sempre fui um estudioso de teoria literária e foi ela que me guiou desde o começo, pois, sem ter esse conhecimento, o escritor fica sem parâmetros para avaliar o que faz. Não digo que todo escritor tem que saber teoria como um especialista, mas precisa estar seguro de seu ofício. Precisa, sobretudo, ter muito conhecimento da linguagem, das nuances de sua língua, ter lido os grandes escritores para aprender com eles. Dizer que o escritor tem de dominar bem a língua em que escreve é uma obviedade. Quando leio um autor que não sabe empregar bem as palavras, não o abandono logo de saída, mas passo a lê-lo com má vontade. Quanto a concordar ou não com a crítica sobre meus livros, longe de mim tal pretensão. O leitor tem sempre razão, seja ele um crítico azedo ou apenas um leitor comum, aquele que compra o livro para se divertir.

• Seu mais recente livro, Jeito de matar lagartas, coincide com sua luta contra o câncer. De que forma a doença interferiu na rotina do seu trabalho? Dá para se tirar proveito literário com a experiência da dor?
Antes de ter uma doença tão grave, a gente acha que tem o tempo todo pela frente e vai adiando os projetos. Não devíamos adiar nada, a vida é agora e pode acabar dentro de um minuto. Eu tinha (tenho) muitos contos arquivados e nem os relia, achando que não passavam de exercícios de aquecimento. Quando comecei a sentir fortes dores em março do ano passado, resolvi desovar alguns contos e fui mandando para o Paulo Henriques Britto. E ele foi aprovando. Não publico nada sem antes passar pelo olhar de meus quatro primeiros leitores. Mandava pra ele e pra meu filho, que mora em São Paulo. Mandava também para duas amigas sinceras, dessas que são capazes de me dizer que o conto é ruim. Esses quatro primeiros leitores foram aprovando os contos, e eu só não ficava desconfiado porque confio cegamente na opinião deles. Eu achava que aquelas histórias arquivadas há tanto tempo não valiam grande coisa. Eu tinha um livro pronto sem saber. Em maio do ano passado, as dores nas costas pioraram e vi que ia ter de me dedicar dali em diante à doença ou morreria. Em duas semanas, fiz a revisão dos contos selecionados e mandei pra Vanessa Ferrari, minha editora na Companhia das Letras, e ela os aprovou. Àquela altura a literatura tinha pouco valor para mim. O que eu queria mesmo era me livrar das dores. O livro ficou quieto durante sete meses, eu achava que nem ia sair mais, até que, ainda internado no hospital, recebi a notícia de que ele sairia em janeiro (de 2015). De certa forma, essa perspectiva de ver mais um livro publicado me deu forças para continuar lutando contra a doença e as dores que se agravavam a cada dia. O diagnóstico do mieloma demorou a sair, o que só fez complicar o quadro. Entrei na químio pesada e agora estou bem. A dor nos faz sentir a urgência da vida. Ainda não senti vontade de escrever sobre esse tema, mas acho que, assim que tudo for superado, escreverei sobre tudo isso, de forma natural.

• Então, praticamente a maioria dos contos do novo livro já estava escrita?
Sempre tive o hábito de escrever todos os dias. Fiz isso também em Curitiba, durante cerca de dois anos. No livro, a maior parte dos contos tinha sido escrita antes de Curitiba. Como tenho mania de ficar reescrevendo-os, não sei dizer ao certo quais escrevi antes ou depois de morar lá. Curitiba é a cidade ideal para você se desligar do mundo e se dedicar a uma arte. Tudo lá é mais fácil que no resto do Brasil. Tinha o tempo todo à minha disposição, transporte fácil, médico à mão, cinema, teatro… O ócio e o lazer são importantes para quem escreve. O ideal mesmo é escrever por escrever. Um dia qualquer a gente relê tudo aquilo e consegue salvar muita coisa do incêndio.

• Diferentemente das demais obras, no novo livro velhice e morte são temas mais recorrentes. Por outro ângulo, os contos sobre a infância imprimem um tom de reminiscência, mais saudosista, como se percebe no conto que dá nome ao livro?
Minha forma de produzir é meio caótica. Nunca me sento diante do laptop com uma história formada na cabeça. Deixo que ela venha de forma livre. Se der certo, bom; se não, parto para outra. Mas o escritor sente o pulso de uma boa história desde as primeiras palavras. Quando sinto que o que tenho em mãos pode render uma boa história, me dou por feliz. Revisitar a infância sempre rende muito, visto que a memória nos traz elementos dos quais nem suspeitávamos. Talvez, por força da idade, os temas da velhice estejam aparecendo com mais força. A velhice é também uma fase muito rica para ser explorada, sobretudo o lado erótico, tão esquecido pelos contistas. Parece que só os jovens e os de meia-idade têm vida sexual, o que não passa de um grande preconceito. Converse com uma pessoa da chamada terceira idade, deixe-a se abrir sobre sua vida e as surpresas serão grandes. O erotismo é algo presente em todas as fases da vida. Por que não ir atrás e escrever sobre esse tema? O interessante é que os contos saíram com um humor que eu nem imaginava. Dos meus livros, creio que Jeito de matar lagartas é o mais bem-humorado, humor amargo, mas humor.

• No conjunto de sua obra, seu estilo é caracterizado pela secura de narrativas curtas, concisas, frases com precisão cirúrgica. Sua prosa é cruel e impiedosa, segundo os críticos. Essas características são um projeto que o senhor persegue?
Quando comecei a escrever, já havia lido a obra de João Cabral de Melo Neto e de Graciliano Ramos. Os dois sempre me fascinaram pela secura da forma, o que não significa, porém, que não haja lirismo neles. Os poemas de João Cabral sobre a mulher são altamente líricos, mas numa linguagem sem floreios, sem palavras ditas “bonitas”. A morte de Baleia, em Vidas secas, tem muito lirismo, basta ir lá conferir. Há algo mais lírico do que a visão da cadela diante de um mundo cheio de preás? O importante é ver como cada um desses autores faz o lirismo vir à tona. Você pode criar uma cena lírica sem recorrer àquelas palavras tradicionais, o que seria um clichê. O lirismo nasce da força da palavra. Até um palavrão pode ter sua carga lírica, é só saber a hora exata de usá-lo, para não cair na vulgaridade.

• O que o guia na construção de sua prosa? A sonoridade das frases? Como entra a correção gramatical?
Como já disse, dominar a língua é a primeira condição do escritor. Acho que quem escreve prosa deveria ler muita poesia para treinar o ouvido. A sonoridade, a harmonia das palavras, é algo fundamental num texto. Às vezes, procuro horas, dias, meses, uma palavra que caiba em determinada frase, só por causa da sonoridade. Num conto de Cine Privê, fiquei fuçando o dicionário em busca de uma palavra que melhorasse a sonoridade desse fragmento de frase: “um monte de colchonete enrodilhado”. Essa sequencia de “tt” não faz bem ao ouvido. Tinha de encontrar uma palavra que tivesse a letra d, e aí terminei chegando a “imundície”, que no interior é empregada no sentido de grande quantidade e também no de sujeira. Assim cheguei a “uma imundície de colchonete enrodilhado”. A mistura de consoantes surdas e sonoras (t/d) resolveu o problema. O escritor precisa saber que deve pegar o leitor primeiro pelo ouvido. Daí a busca incansável da palavra exata. Saber métrica ajuda muito.

• Embora não goste de rótulos, os críticos classificam-no como o “João Cabral de Melo Neto da prosa” e também o comparam ao mineiro Aníbal Machado…
Me comparar com a secura de João Cabral é um pouco demais, porém me deixa muito feliz. Não devo é me empolgar com isso, senão posso cair na vaidade tola. Quanto a Aníbal Machado, confesso que nunca pensei nele ao escrever. Li Aníbal nos tempos da faculdade e gostava, seus contos são altamente líricos. Nunca mais o reli, mas tenho a impressão de que ele não enxuga muito o texto. Eu enxugo até o osso. Vou podando, podando, até só restar o que acho essencial para a história. Por que dizer com cinco palavras o que posso dizer com uma ou duas? O trabalho de cortar é um dos mais difíceis, porque às vezes você sacrifica trechos que eram bons. Já me aconteceu de suprimir parágrafos inteiros porque ao terminar eu via que não precisava deles. Dói um pouco, mas escrever é sacrificar, antes de tudo, o nosso gosto. A gente trabalha em nome de uma personagem. Se a frase ou o parágrafo não acrescentam nada, guilhotina neles.

• Na sua avaliação, algum conto seu poderia ser classificado também como crônica? Você se preocupa com as linhas tênues que separam o conto da crônica?
Admiro muito os cronistas. Eles são capazes de pegar um dado bem simples do cotidiano e transformar numa bela crônica. Basta ler hoje os grandes cronistas como Antonio Prata e Humberto Werneck. O cronista precisa ter uma visão bem especial do mundo que o cerca. Se não tiver essa mirada, não será um bom cronista. O bom da crônica é, diferentemente do conto, que não precisa ter um conflito central, basta ter esse olhar acurado diante da realidade. Eu digo que a crônica desenvolve o olhar na horizontal, o conto, na vertical. Não corro o menor risco de escrever uma crônica e confundir com um conto. Primeiro porque, como professor de literatura, sempre precisei passar aos alunos a diferença entre esses dois gêneros. O que escrevo não tem nada a ver com crônica. Meu olhar é mesmo de contista. Vejo algo e já penso no conflito que dali pode nascer. Sem isso o conto não vai render. As linhas que separam um gênero do outro são bem definidas. Mesmo na crônica de ficção, a gente vê que as personagens são mera ilustração de um fato, elas não têm complexidade psicológica, algo que é fundamental num conto.

• O que acha da produção atual de contos? Poderia destacar algum autor?
Nossa produção contística parece que sofreu uma freada. Não sei se foi porque as editoras deixaram de investir no gênero ou se foi porque os contistas foram escasseando mesmo. Procuro nas livrarias livros de contos e não os encontro. Gosto de ler os novos autores. A década de 90 foi mais rica que a atual. É que o conto ainda é visto como a antessala do romance, como se o autor estivesse se exercitando para algo mais grandioso. Mas digo com toda certeza que escrever um conto perfeito é tão difícil quanto escrever um poema ou um romance. Não é a extensão do gênero que diz de sua validade, mas o trabalho com a linguagem. Mário de Andrade levou 17 anos para terminar um conto. Já levei quase esse tempo também. Não que eu ficasse todo dia retrabalhando o conto, seria uma coisa de louco. De vez em quando eu o retomava, lia, não gostava, reescrevia, lia de novo e assim o tempo foi passando. Mas terminei chegando ao que queria. Contistas de hoje que aprecio? Cíntia Moscovich, Marcelino Freire, e a vencedora do Prêmio Paraná de Literatura de 2014, Adriana Griner. Seu livro No início nos faz prever uma contista que tem muito a dizer e como dizer. Dos antigos, sempre rendo minha homenagem a José J. Veiga, que nunca deixa de ser atual, e à feliz iniciativa da Companhia das Letras de publicar toda sua obra. Quem ainda não o leu, leia pelo menos Os cavalinhos de Platipanto, uma obra inesquecível. 

• O senhor acha que a busca pela perfeição estilística o impede de publicar um romance? E com a poesia, qual a sua relação?
Não é bem a busca pela perfeição que me impede de escrever um romance. A verdade é que sou muito impaciente, e saber que iria ter de conviver com um mesmo livro por uns quatro ou cinco anos já me deixaria tenso. Aprendi com o tempo que a tensão não é amiga do escritor. A gente deve escrever com toda liberdade, sem estresse, sem se cobrar muito. Prefiro escrever contos porque posso trabalhar com vários ao mesmo tempo. O trabalho também é difícil, como já falei, mas trabalhar um conto que se resolve em poucas páginas (não gosto de contos longos) é bem melhor do que ficar rendendo uma história que parece não ter fim. Meu fôlego é curto. Fico admirado com os grandes romancistas que conseguem preencher páginas e páginas em torno do mesmo tema. Eu procuro liquidar tudo rapidamente. Não sei render conversa nem mesmo na vida real. Pode ser que um dia eu aprenda e aí escreverei essa obra que, pra falar a verdade, não me faz falta.

• Diferentemente do senhor, o seu filho, o jornalista André Viana, publicou no ano passado o romance O doente, pela Cosac Naify, um livro ousado esteticamente, que se distancia em parte, creio eu, das caraterísticas de suas obras, mas que mantém alguns traços do seu estilo, como a sutileza no humor, às vezes trágica, e certo apelo ao erotismo. Quais diferenças e semelhanças o senhor percebe entre o livro do André e a sua obra?
André me surpreendeu com esse livro. Eu sabia que ele estava escrevendo, mas não sabia que ele já o havia terminado. Eu o li ainda muito no começo, dei uma ou outra opinião, e depois ele resolveu não me mostrar mais. Como passou pelas mãos da Marta Garcia, a editora dele na Cosac, fiquei tranquilo. O livro dele tem uma forte carga erótica, mas um erotismo diferente do meu, mais sem limites em certos momentos. Mas o livro pede isso, já que se trata de uma confissão e ninguém confessa nada com meias palavras. O humor também é mais forte, o meu é mais sutil, é mais um riso de canto de boca, diferente do dele, mais aberto. Creio que nossas aproximações ficam por aí. Foi bom ele ter começado já se libertando do pai, escrevendo um romance e não um livro de contos. O doente é um livro corajoso. Acho que eu não chegaria a tanto.

• Dalton Trevisan e Rubem Fonseca completaram 90 anos de vida e ainda escrevem contos. Eles não dão entrevistas e circulam por aí anonimamente. Qual a sua opinião sobre isso, na medida em que os escritores fora do eixo Rio-São Paulo precisam de visibilidade para se projetar?
Creio que isso é, antes de tudo, uma questão de temperamento. Há pessoas que adoram uma mídia. O excesso de exposição não proíbe ninguém de circular por lugares públicos. Eu mesmo já me recusei muito a participar de encontros literários, feiras, cursos, mais por timidez que por medo de exposição. A timidez, fui vencendo aos poucos, sobretudo depois que enfrentei a Flip. Aquele auditório é a melhor terapia para quem é tímido. Ou você se cura de vez ou se esconde para sempre. Ultimamente, por culpa da doença, tenho participado pouco de encontros, quase nada, para falar a verdade. A última vez foi uma oficina de conto que ministrei no Itaú Cultural, em São Paulo, em 2013. Sendo do Nordeste, esses encontros são muito importantes para nos tornarmos conhecidos de um público tão distante, geograficamente falando.

• Quais são seus próximos projetos?
Depois de ficar gravemente doente, a gente deixa de fazer planos. Hoje vivo o dia a dia, leio, não estou escrevendo nada, mas um dia espero voltar a escrever. Pretendo ser fiel ao conto. Se por acaso um adquirir fôlego para um romance, o farei de bom grado. Já falei com meu filho para escrevermos um a quatro mãos. Ele tem esse fôlego e paciência, talvez pelo fato de ser jornalista, uma profissão que precisa saber render conversa.

Alex Sander Alcantara

É jornalista em São Paulo, mestre pela Escola de Comunicações e Artes da USP.

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