A angústia produtiva

Em "Gog magog", décimo romance de Patrícia Melo, um professor alienado se envolve num ciclo de ódio incontornável
Patrícia Melo, autora de “Gog magog”
30/06/2018

Foi refletindo sobre a liquidação do silêncio em nossa cultura que Patrícia Melo começou a arquitetar Gog magog, seu décimo romance. Se o barulho do mundo moderno ilustra o momento em que vivemos, “onde a imaginação ocupa um espaço tão pequeno”, a paulista de Assis, radicada na Suíça desde 2010, escolhe fazer do incômodo matéria-prima para sua literatura. “Acho que se pode dizer, com pequena margem de erro, que toda escrita nasce do embate entre o escritor com algum aspecto da sua realidade”, pondera a autora, entre outros, dos romances O matador (adaptado para o filme O homem do ano, em 2003, com roteiro de Rubem Fonseca) e Inferno, vencedor do Prêmio Jabuti de 2001.

A leitura de Gog magog nos mostra como a insatisfação pode servir de combustível para a ficção — além do ruído como tema e metáfora, a obra faz diversas críticas aos falidos sistemas prisional e educacional do Brasil. A autora não perde de vista, porém, que “literatura é o espaço da imaginação, da fábula”, e é a partir desse equilíbrio entre crítica e fabulação que ela elabora a trama de seu livro mais recente.

Gog magog é a história de um frustrado professor de biologia, que, além de tentar manter um casamento claramente liquidado com a enfermeira Marta, convive com alunos semianalfabetos e violentos. Até mesmo, e principalmente, os passos do vizinho do apartamento de cima, o Senhor Ípsilon, são capazes de tirar do sério o neurótico narrador-protagonista do romance. É esse encadeamento de pequenas catástrofes diárias que leva essa “figura alienada, muito zelosa e ciente de seus direitos” a situações incontornáveis. Reflexões e frases pungentes compõem essa história de ódio, construída com uma linguagem ágil, precisa — reflexo do trabalho de reescrita da autora, que só para de mexer no texto por conta da publicação.

Toda essa violência não é novidade na obra de Patrícia Melo. A fim de entender o que acontece num país líder de homicídios como o Brasil, ela explora a violência urbana desde que contou a história do Estrangulador da Lapa em seu romance de estreia, Acqua toffana (1994). “Sou como aquele personagem do Shakespeare: a cada dez pensamentos, onze vão para a morte”, diz a autora de Ladrão de cadáveres, vencedor do prêmio alemão Deutscher Krimi Preis 2014.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Rascunho, Patrícia Melo fala, entre outros assuntos, de seu processo de criação, da importância da poesia em sua vida, do que a motiva escrever e de seus planos literários para o futuro, que incluem mais duas ou três aventuras para a detetive Azucena, protagonista do romance policial Fogo-fátuo (2014).

“O que muda a realidade não é a literatura. É a leitura. Porque é ela que possibilita uma mudança de perspectiva.”

• O incômodo causado pelo barulho é responsável por desencadear toda trama de Gog magog. E no processo criativo, seria o incômodo essencial para desencadear boa literatura? A escrita depende da insatisfação?
Acho que se pode dizer, com pequena margem de erro, que toda escrita nasce do embate entre o escritor com algum aspecto da sua realidade, seja ela interior ou exterior, consciente ou não. No caso de Gog magog, a ideia embrionária era a liquidação do silêncio na nossa cultura. Schopenhauer dizia que o barulho é a tortura do homem do pensamento. Veja que ele retrata um tempo feliz, em que só o homem do pensamento se incomodava com o barulho. Hoje o barulho afeta a todos, sem distinção. Não existe mais o silêncio em lugar nenhum. Na verdade, existe, mas custa caro. Fico pensando que esta triste realidade certamente tem a ver com o momento que vivemos, onde a imaginação ocupa um espaço tão pequeno. O sentido que está ligado à nossa imaginação é o da audição. E à nossa audição não é mais permitido o silêncio. Nas lojas, elevadores, supermercados, aviões, restaurantes, nossos ouvidos são entupidos com todo tipo de porcaria. Nossa cultura não valoriza o silêncio, a introspecção, requisitos importantes para o pensamento, a leitura e a fabulação. O silêncio, como diz meu personagem, é uma forma de felicidade.

• Em entrevista ao site da Rocco, você define Gog magog como um “reconto existencial, que fala do ‘fetiche dos meus direitos’”, e são feitas várias críticas sociais ao longo do romance. A literatura pode influenciar a realidade ao retratá-la de maneira crítica? Ainda: teria a literatura algum compromisso social?
Eu acho sempre complicado a gente dar uma função para a literatura. Se um autor começa a acreditar que pode pegar o leitor pela mão para encaminhá-lo para um lugar específico, é certo que ele vai ter mais chance de se realizar no mundo do jornalismo ou da academia. Literatura é o espaço da imaginação, da fábula. Por outro lado, é igualmente correto dizer que toda literatura é resistência. Toda escritura é política. Não carrego bandeiras, mas minha indignação e minha crítica à sociedade estão sempre colocadas na visão de um ou outro personagem, ou até nas entrelinhas da minha ficção. A verdade é que um escritor sempre deixa sua carne no arame farpado da sua literatura. Nós nos usamos em nossos romances. Nossas posições políticas, nossa isenção ou revolta estão, de um jeito ou de outro, colocadas na nossa fábula. Mas o mais intrigante nesse assunto é que um escritor, com sua obra livre ou engajada, não pode influenciar nem mudar a realidade. O que muda a realidade não é a literatura. É a leitura. Porque é ela que possibilita uma mudança de perspectiva. A leitura nos coloca nos sapatos do outro. Desperta nossa indignação, repulsa ou empatia. Um escritor, como agente social, pode muito pouco. O leitor é que é um potencial agente de transformação.

• Você chegou a cortar 100 páginas de Gog magog, com o objetivo de entregar um texto que prendesse o leitor. Como é seu processo de escrita? Suas preocupações estéticas costumam ser relacionadas mais à forma ou ao conteúdo?
Forma e conteúdo, na hora de assar o bolo, viram uma coisa só. Na fase inicial da escritura de um livro, você evidentemente tem esses elementos separados na sua cabeça. Você faz muitas leituras sobre o tema que compõe sua história. Pesquisa o assunto. Mas a partir de um determinado momento, todo o problema consiste em encontrar a forma ideal de contar a sua história. Na verdade, cada vez mais eu acredito que tudo é forma, que literatura é sobretudo forma. O próprio conteúdo parece se transmutar em forma na obra acabada.

• É correto dizer que Gog magog conversa com Crime e castigo, de Dostoiévski, levando em conta a maneira que se dá o crime cometido pelo protagonista? Qual a influência dos autores clássicos em sua obra?
Nunca havia pensado nisso. Mas é verdade que tanto o protagonista do meu romance quanto Raskólnikov cometem o que a justiça chama de “crimes de lógica”. Mas Raskólnikov tem uma ideologia. Para ele, os meios justificam os fins. Matar aquela velhinha em nome da arte não lhe parece, ao menos inicialmente, algo condenável. A consciência do seu ato odioso será seu castigo. Meu personagem, ao contrário, não possui uma ideologia. É uma figura alienada, muito zelosa e ciente de seus direitos. Patologicamente ciente, eu diria, já que atrela seus direitos a uma carga de individualismo exacerbado, que não lhe permite ver o outro. O outro é apenas um ruído. Um estorvo. Algo a ser eliminado. Claro que Dostoiévski é um grande mestre quando o assunto é criação de personagens. Mas acho que chega um momento da nossa vida profissional em que somos menos permeáveis às influências. Em outras palavras: depois de dez romances, e aos 55 anos, tenho cá uma ideia do caminho que quero percorrer, e vou dando meus passos, um depois do outro. Neste sentido, Dostoiévski não pode me ajudar. Mas autores como ele, e de igual grandeza, me inspiram. Deixo alguns livros sobre a minha mesa de trabalho. Como talismãs. Vez ou outra pego, por exemplo, uma coletânea de Auden e abro numa página qualquer. Um bom poema é sempre inspirador.

• A certa altura da narrativa, a poesia adquire relevância para o protagonista de Gog magog. E para você, como prosadora (dramaturga, roteirista e escritora), qual é a importância da poesia?
Tenho lido menos do que gostaria. Mas se existe uma escala hierárquica da escrita, a poesia está no topo, sem dúvida. No meu caso, a poesia tem o papel de musa. Esses dias, estava lendo um verso abolicionista do poema Being brought from Africa to America, de Phillis Wheatley, uma senegalesa que foi escravizada nos Estados Unidos aos sete anos de idade, em que ela diz:

Some view our sable race with scornful eye,
“Their colour is a diabolic die.”
Remember, Christians, Negros, black as Cain,
May be refin’d, and join th’ angelic train.

Fiquei aturdida com a beleza dos versos finais. “Black as Cain” soa como “as cane”, ou seja “cana”, e Wheatley está falando, sem falar, das plantações de cana onde trabalhavam os escravos. Veja quanta sofisticação e beleza existem aqui nesta construção. Esse tipo de prazer me inspira a trabalhar. É a musa que me faz sentar e escrever.

“A verdade é que um escritor sempre deixa sua carne no arame farpado da sua literatura.”

• Mais de 20 anos separam Acqua toffana (1994), seu romance de estreia, do recente Gog magog (2017). Apesar disso, em ambos há muita violência e a prosa é ágil (frases curtas e impactantes, capítulos breves). Desde o princípio você tinha em mente o tipo de literatura que gostaria de fazer?
Acho que tenho uma dicção própria, mas não busco e nem quero ter um estilo. Na verdade, nem penso nisso. Estilo é muito mais uma consequência do que uma causa. O que se mantém constante na minha literatura é a temática que sempre está ligada à ideia de finitude. Mortalidade, perda de valores, de expectativas. A própria violência está ligada à ideia de fim. Fim da possibilidade de diálogo. Sou como aquele personagem do Shakespeare: a cada dez pensamentos, onze vão para a morte.

• Você já disse que seu primeiro livro foi “escrito de forma quase irresponsável”, num “surto”. A partir d’O matador, seu segundo romance, já havia uma proposta mais clara desde o começo?
Acqua toffana foi escrito num momento de grande inspiração. Eu ainda não tinha realizado que seria escritora. Havia ali uma liberdade imensa. E eu era muito jovem. Depois, como todo escritor, tive que aprender a trabalhar também sem a mão da musa no meu ombro. Aprendi a ser diligente na minha rotina, a escrever todos os dias, a escrever sem inspiração, a não ter medo de descartar textos, a reescrever sem desanimar — tudo isso é um aprendizado longo para o escritor, que parece fácil, mas não é. E o aprendizado continua. Quando começo escrever um novo livro, tento não olhar trás, para não me transformar numa estátua de sal.

• “[…] o único fiapo de arbítrio que existe para nós, mortais, é a decisão de começar um processo” é o que pondera, a certa altura, o narrador de Gog magog. O que te leva a começar um livro? E quando você sabe que ele está finalizado?
Uma angústia. Uma obsessão. Que se transforma numa busca. Em pesquisa. Ideias. Personagens. E quando começo a encher meu segundo caderninho de notas, me enfio na minha trincheira e começo a trabalhar. Depois que termino, começo o processo de reescrever. Gog magog teve muitas versões antes de chegar ao seu formato final. Só depois da segunda prova da editora é que considero um livro acabado. Na prática, o que determina o fim do livro é a sua publicação. Só a publicação evita que eu continue trabalhando no texto.

• “Sempre há um idiota para classificar como arte a merda que você faz” é outra das várias máximas elaboradas pelo protagonista de Gog magog. O que você considera um trabalho artístico?
Arte é o que Phillis Wheatley faz ao usar toda a simbologia do nome Cain para se remeter à “cane” [cana] e à plantação onde trabalhavam os escravos na sua poesia abolicionista.

• Como avalia o cenário literário contemporâneo?
Temos grandes escritores na atualidade. Gosto especialmente do Coetzee, do Amós Oz, Don Delillo. No Brasil, são tantos que admiro: Bernardo Carvalho, Carola Saavedra, Adriana Lisboa, Cristovão Tezza, Bruna Beber, só para citar alguns que li ultimamente. Li também com grande prazer Geovani Martins, que teve uma bela estreia com o livro de contos O sol na cabeça.

• O seu premiado romance Inferno (2000) é narrado em terceira pessoa. Já em Acqua toffana há narradores não confiáveis, em Gog magog a história é contada pelo assassino e Escrevendo no escuro traz a personagem Cecília como autora fictícia dos textos. Como você decide qual será a voz a narrar determinada história?
A história e a maneira como você a estrutura “pedem” uma certa voz específica, e isso tem a ver com a eficiência narrativa dessa voz. Mas não há uma fórmula. Às vezes, tenho uma convicção de que tal voz será a melhor, porque me dará mais liberdade e persigo este caminho. Às vezes, num insight inspirado, uma voz se impõe. Noutras, é por tentativa e erro. Você testa uma voz e a história simplesmente não acontece. Então você tenta outra. Escrever, nesse sentido, é fazer opções.

• Sua obra é pautada pela violência urbana, dispara inúmeras críticas à sociedade e costuma trazer cenas chocantes. Como seus livros são recebidos na Suíça, um país de realidade social muito diferente da brasileira?
Eu costumo dizer que não é possível entender o Brasil de hoje sem entender a nossa violência. Temos que compreender por que matamos, nas últimas três décadas, um milhão e meio de pessoas, sendo que a maioria das vítimas é jovem, pobre e negra. Que país é este que permite esse genocídio dos seus jovens? Minha fixação com a questão da violência tem a ver com esta vontade de entender o Brasil, de ver o que estamos fazendo com este país. Apesar de a violência na Europa ter outra face, apesar de essa violência não ter absolutamente nada a ver com a matança que ocorre no Brasil de hoje, apesar de essa violência se manifestar como xenofobia, radicalismos, intolerância e discriminação, é fato que uma das chaves para se entender a nossa realidade é a violência. Acho que talvez por isso meus livros tenham uma boa aceitação aqui na Europa. Ninguém se sente inatingível, quando o assunto é violência.

“Sou como aquele personagem do Shakespeare: a cada dez pensamentos, onze vão para a morte.”

• Em 2011 você lançou o livro de contos Escrevendo no escuro, 17 anos depois de estrear na literatura com o romance Acqua toffana. O conto é um gênero que exige mais maturidade?
O conto exige o domínio da técnica da narrativa curta, que só é menos difícil que a poesia. Tudo cabe num romance. Você pode abarrotá-lo com tantas malas quanto quiser para sua viagem literária de longa duração. O conto é aquela maleta de viagem para fim de semana, na qual só cabe o essencial. É restrição total de bagagem. Fica fácil entender essa economia quando se lê um conto do Tchekhov ou do Raymond Carver. Tenho um projeto para outro livro de contos. Continuo me exercitando. Mas é coisa para o futuro. Antes quero fechar a trilogia do Matador e escrever mais duas ou três aventuras para Azucena.

• Adaptando uma questão levantada em Cecília — Take 1, texto de abertura de Escrevendo no escuro: o que ocupa a mente de um escritor dia e noite?
Até aqui o que me ocupou é a ideia de nossa finitude. A tragédia do fato de que o homem, como já se colocou filosoficamente, seja um ser para a morte. Há uma sensibilidade trágica sobre a morte em minhas fábulas. Hoje eu penso que o fato de ter tido uma mãe cronicamente doente foi o que despertou essa minha hipersensibilidade. Claro que o que digo aqui não é nenhuma novidade. Vemos essa questão trabalhada, em diferentes níveis, na obra de muitos autores. Quando falo em finitude quero me referir à fragilidade do viver, ao envelhecimento, à certeza da morte. Montaigne dizia que já que não podemos vencer a morte, só nos resta atacá-la de frente. Acho que, de certa forma, é o que tento fazer nos meus livros.

• Para encerrar: o amor substitui a poesia?
Não. Mesmo quando o amor prevalece, a arte é fundamental. Um mundo sem poesia é só barbárie.

Gog magog
Patrícia Melo
Rocco
176 págs.
João Lucas Dusi

É autor do livro de contos O grito da borboleta (Penalux, 2019).

Rascunho