Vidas em guerra

Andreas Latzko mergulha no front da Primeira Guerra para mostrar a destruição da vida dos soldados
26/11/2015

“Há menos sono no mundo agora, as noites são mais longas e mais longos os dias. Em cada país da infinita Europa, em casa cidade, cada ruela, cada casa, cada aposento, a respiração tranquila do sono torna-se curta e febril, e o tempo ardente abrasa as noites e confunde os sentidos, tal qual uma noite de verão abafada e sufocante”, escreveu Stefan Zweig sobre o período da Primeira Guerra Mundial em O mundo insone (Zahar, 2013).

Em seu texto, o escritor austríaco discorreu sobre a vida da população civil durante o conflito — mesmo que a vida nos campos de batalha fosse um tanto desconhecida para a maioria das pessoas. Informações eram censuradas e certa aura de patriotismo escondia boa parte do sofrimento real dos exércitos.

Homens em guerra, do húngaro Andreas Latzko, foi uma das obras a quebrar essa barreira. Com uma prosa baseada em fatos que viu ou viveu, Latzko junta histórias de guerra vividas por soldados, sem heroísmo ou estratégias, mas com uma boa dose de realidade.

O livro, publicado originalmente em 1927, em Zurique, teve logo sua circulação proibida. Foi em uma cópia contrabandeada, disfarçada em outra capa, que Zweig leu a obra — e de certa forma comemorou finalmente saber a verdade sobre a guerra.

Latzko se mostra pouco preocupado com esquemas e estratégias de guerra, muito menos com a parte política dela. Não se importa com os motivos que levaram a ela, nem com a História. O autor se preocupa, porém, em olhar apuradamente para a vida das pessoas que estão nos campos de batalha. Suas histórias são relativamente simples ao mesmo tempo em que são sinceras e dolorosas.

Ao focar em pequenos acontecimentos e mudar a narrativa de guerra de uma perspectiva macro para micro, Latzko mostra vidas profundamente alteradas por um conflito que nem é delas. São vidas de profissionais e famílias que são interrompidas por uma convocação, visões que não deixarão soldados em paz, injustiças que nunca serão resolvidas. Em diversos momentos, o livro traz intensos questionamentos sobre a necessidade da guerra e sobre o seu preço para as pessoas que dela participam.

O autor se preocupa, porém, em olhar apuradamente para a vida das pessoas que estão nos campos de batalha. Suas histórias são relativamente simples ao mesmo tempo em que são sinceras e dolorosas.

Histórias individuais
Latzko opta por contar seis histórias diferentes, de alguma forma vividas ou ouvidas por ele próprio, que dão conta de diferentes aspectos da vida e rotina de guerra. Os textos, que podem ser lidos como contos, mostram campos de batalha e cidades, militares e profissionais de várias áreas que foram emergencialmente recrutados, partidas e retornos.

Em qualquer um desses aspectos, o autor apresenta uma clara preocupação em mostrar a individualidade dos personagens — nunca um batalhão será uma simples massa de soldados. São vários os pensamentos, sentimentos e opiniões inseridos em sua narrativa. Mesmo que sua opinião não seja explicitada de maneira óbvia, o autor traz em diversos momentos um pensamento pacifista e uma crítica severa da destruição de indivíduos em batalhas que muitas vezes não resolve nenhum problema.

A partida, primeiro dos contos, narra a angústia de um soldado em estado de choque, que não consegue se recuperar nem quando sua esposa vem encontrá-lo. O cenário é desolador: em um hospital de campanha, o leitor se depara com diversos tipos de soldados doentes, feridos ou mutilados, mas que, mesmo assim, comemoram a possibilidade de voltar para casa (ainda que com um braço a menos).

Nesse texto, Latzk faz uma relevante equivalência entre soldados com feridas físicas e soldados com distúrbios mentais. Ao mostrá-los em situações parecidas, o autor defende que os dois tipos de ferida são graves e irreversíveis. Serão questões que ficarão para sempre com aquelas pessoas — seja a falta de um membro ou o choque de ter vivido uma guerra.

Já o segundo (e mais longo) texto, Batismo de fogo, mostra uma história mais próxima do campo de batalha e do combate em si. Narra a chegada de uma companhia estreante, formada por homens com mais idade e de diversas profissões convocados emergencialmente para a guerra. Para esses personagens, a falta de treino, motivação e preparo para aquele momento é um grande empecilho — além, claro, do peso de terem deixado tudo, inclusive as famílias, para trás.

Esses homens são levados para o front pela orla de uma floresta por um capitão com imenso peso na consciência, já que, além de ser capaz de reconhecer os sentimentos de medo nos olhos dos novos recrutas, sabe o que os espera quando chegarem e quais serão as consequências para a maioria deles. O personagem do capitão é construído em forte oposição ao personagem de um jovem cadete, que recém-saído da adolescência, se sente à vontade no mundo militar, não entendendo as angústias dos homens e de seu capitão.

Ao mesmo tempo em que o autor mostra as angústias dos soldados, reforça também as angústias do capitão — que, mesmo sendo superior a eles na hierarquia militar, nada pode fazer para evitar a tragédia que se anuncia. Latzko aponta uma forte equivalência de sentimentos dos homens, independentemente de sua posição no mundo.

O vencedor se passa em um ambiente urbano, até então inédito no livro. O conto narra como o exército manipula o humor dos habitantes de uma cidade com apresentações diárias de uma banda. Os superiores querem tirar da mente da população a sensação de guerra e passar uma falsa impressão de normalidade e paz. São poucas as notícias da guerra e quase nada se sabe sobre os acontecimentos no front — assim, somente alguns ficam revoltados com a situação política do momento.

O companheiro — um diário é um dos contos mais reflexivos do livro. Narrado em primeira pessoa, apresenta os pensamentos de um homem após ter visto outro homem vivo, mas gravemente ferido. Mesmo com tentativas de ajuda, não é possível salvá-lo. O primeiro homem fica bastante marcado com a visão e o texto traz suas reflexões sobre o assunto. É possivelmente o texto com mais críticas explícitas e imagens vívidas dos campos de batalha.

A morte de um herói volta ao cenário do hospital de campanha para contar a cena de morte de um tenente. Ainda que gravemente ferido, é levado para o hospital, onde ainda sobrevive por algum tempo.

A volta para casa, último texto do livro, mostra a grande decepção da volta para casa, apesar do título esperançoso. Um jovem soldado — ótimo menino, com futuro certo e noiva linda esperando — retorna depois da guerra como herói — sobreviveu a um grave ferimento e diversas cirurgias de reconstrução do rosto. Depois de tanta dor, esperava uma grande acolhida em seu retorno mas é rejeitado devido a sua estranha aparência.

Nesse conto, o autor mostra a grande diferença entre quem vai para a guerra e consegue e voltar e quem fica. A sensação é de que os soldados nunca mais se integrariam novamente a uma vida normal.

O uso de contrastes é uma característica bastante marcada do autor — e em muitas situações é por meio deles que Latzko acentua sua opinião. Porém, fica extremamente claro em sua obra seu posicionamento antiguerra. Essas histórias mostram como a guerra nunca deve ser esquecida para nunca ser repetida.

Homens em guerra
Andreas Latzko
Trad.: Claudia Abeling
Carambaia
160 págs.
Andreas Latzko
Nasceu em Budapeste em 1876 e foi oficial do exército austro-húngaro durante a Primeira Guerra Mundial. Em 1915, entrou em choque após um ataque e foi afastado da guerra. Lançou Homens em guerra anonimamente em 1917. Faleceu em 1943.
Gisele Eberspächer

É jornalista e pesquisadora nas áreas de cultura e identidade.

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