Venenos e remédios

"As herdeiras", da espanhola Aixa de la Cruz, equilibra humor e tragédia familiar em doses certas
Aixa de la Cruz, autora de “As herdeiras”
01/06/2025

Herdar, um verbo complicado, na teoria e na prática. Alguém transmite algo; um outro recebe. Herdam-se imóveis, propriedades, sentimentos. Defeitos. A transmissão de um legado, para quem acolhe, implica em uma relação de coleta e classificação: o que se retém e o que precisa ir embora. O romance As herdeiras, de Aixa de la Cruz, aborda a dura missão de encarar o passado: quatro netas recebem como herança a casa da avó. Seu tesouro consiste em dezessete caixas de Lorax, trinta e sete embalagens de Vallium e sessenta e quatro comprimidos sublinguais de ansiolíticos. Há drogas lícitas espalhadas em cada canto do lugar.

Estruturado em sete partes, a narrativa apresenta, no ótimo primeiro bloco intitulado Farmacologia familiar, o panorama pouco ortodoxo dessa linhagem feminina. Seis meses atrás, a avó Carmen se matou na banheira da própria casa, deixando um mistério. No presente da narrativa, as netas voltam ao vilarejo onde vivia para compreender as motivações do suicídio. Olivia, a primogênita, é cardiologista e irmã de Nora, jornalista viciada em anfetaminas. Já Lis é mãe de Peter, de 3 anos, e esteve internada em uma clínica psiquiátrica após severa depressão pós-parto. Sua irmã Erica acaba de passar por uma crise amorosa e planeja organizar retiros espirituais e passeios de etnobotânica na região.

Conhecedora do significado das ervas, do segredo das plantas e dos mistérios do tarô, Carmen possuía forte conexão com o mundo natural (e também sobrenatural). Além da dúvida sobre as circunstâncias de sua morte, ela deixa outra pergunta, a de como cada geração vai sobreviver ao tomar o lugar da anterior. Como continuar? Meio bruxa, muito peculiar, totalmente autêntica no modo de encarar a vida, Carmen figura como personagem onipresente no afeto das netas. Há um legado de amor a unir a todas por uma espécie de cordão umbilical, elo que transmite vida, mas também um tanto de instabilidade emocional.

A casa fica em um lugarejo na região de Castela, norte da Espanha. No entanto, a sonhada fuga para o campo, ilusão dos exaustos das metrópoles, não resulta em bucolismo ou na paz da velocidade desacelerada. Racismo, preconceito e ignorância abundam. Passo a passo, “comprimido a comprimido”, elas passam a ler os vestígios na casa da avó em busca de pistas. Com idades entre trinta e quarenta anos, todas passeiam por esse território: café, chá de arruda, álcool, anfetamina, cocaína, há sempre um aditivo (legalizado ou não) no caminho dessas mulheres. Elas se drogam para trabalhar, para suportar, para relaxar, para sentir mais, para sentir menos. Nesse ambiente, venenos e remédios convivem em um equilíbrio precário — uma pitada a mais pode colocar tudo a perder.

Sem fim ou descanso
As drogas surgem como ferramentas de autoconhecimento, acessando aspectos intocados do inconsciente. Ao seu lado, uma outra adição, a das redes sociais, mencionadas nos sucessivos posts do Instagram, nas ávidas checagens no antigo Twitter, na avalanche de mensagens do WhatsApp, na atualização da bio no LinkedIn. Uma maratona sem fim ou descanso.

Talvez a casa da vovó venha a funcionar como entreposto de venda de drogas, iniciativa de Nora em parceria com seu traficante. Afinal, naquele lugar sempre aconteceram coisas estranhas: visões, percepções alteradas da realidade e situações inexplicáveis pela razão, que trazem ao romance elementos mágicos, nem sempre experimentados de forma tranquila pelo grupo.

Em As herdeiras, a autora escolhe olhar para a intimidade, espaço de culpas e medos familiares. Do dilema de Nora à dúvida de Lis sobre o amor incondicional da maternidade. Da indagação de Olivia sobre o real sentido da prática da medicina à decisão de Erica de interromper ou não a gravidez de uma relação indesejada. Apesar de tratar de temas pesados, a autora investe a narrativa de um tom divertido, trabalhando com todo tipo de dose — de fármacos e de humor — utilizando tais elementos na medida certa: “Parece uma piada, mas é sua família”, avisa. Um ponto frágil do romance é o excesso de elucubrações, explicando demais o que poderia ficar apenas sugerido.

Palco de tensas relações, essa estranha morada lança uma pergunta ao futuro de cada uma das netas, enigma a ser decifrado de acordo com as questões que carregam. A inflexão agridoce do relato é acertada, na medida em que provoca o riso, mas também a angústia, pois nos coloca diante do impasse de olhar o mundo natural (e o outro, construído artificialmente) e distinguir aquilo que alimenta daquilo que envenena. Para além de qualquer visão sobrenatural, toda casa é habitada pelo espírito de quem nos antecedeu. Entre ervas daninhas, chás de camomila e metanfetaminas, As herdeiras indaga como ocupar esse lugar para onde sempre voltamos.

As herdeiras
Aixa de la Cruz
Trad. Marina Waquil
DBA
308 págs.
Aixa de la Cruz
Nasceu em Bilbao (Espanha), em 1988. É doutora em Teoria da Literatura e publicou na Espanha os romances Cuando fuimos los mejores (2007) e De musica ligera (2009), além dos contos Modelos animales (2015). Por Mudar de ideia, relato autoficcional de 2019 traduzido no Brasil pela Âyiné, recebeu o prêmio Euskadi de Literatura, promovido pelo governo basco.
Stefania Chiarelli
 É doutora em Estudos de Literatura pela PUC-Rio e professora associada de Literatura Brasileira na UFF. Publicou o ensaio Vidas em trânsito: as ficções de Samuel Rawet e Milton Hatoum e coorganizou coletâneas sobre literatura brasileira contemporânea. Sua publicação mais recente é Partilhar a língua – leituras do contemporâneo (7Letras, 2022).
Rascunho