Vamos aquecer o sol da Alemanha

Homenagem ao centenário do escritor carioca José Mauro de Vasconcelos, cuja trilogia autobiográfica está sendo traduzida para o alemão
José Mauro de Vasconcelos, autor de “Meu pé de laranja lima”
26/02/2020

Trad.: Carla Martins de Barros Köser

Em 26 de fevereiro de 2020, o escritor brasileiro José Mauro de Vasconcelos, mundialmente conhecido, teria completado 100 anos de idade. Autor de mais de 20 obras — dentre elas romances, peças teatrais, contos e livros infantis — é um dos autores de língua portuguesa mais lidos até os dias de hoje. Com mais de sete milhões de exemplares vendidos, alguns de seus livros ganharam versões para cinema e teatro.

Meu pé de laranja lima (1968), seu romance mais bem-sucedido, foi traduzido para 17 idiomas. Desde 1970, a obra vem sendo publicada por diversas editoras alemãs, primeiramente com o título Wenn ich einmal groß. A partir de 2009, passou a ser intitulado Mein kleiner Orangenbaum pela editora Urachhaus Verlag, entretanto já na 4ª edição.

Meu pé de laranja lima é o primeiro volume da trilogia autobiográfica de José Mauro de Vasconcelos, seguida por Vamos aquecer o sol (1974) — que em fevereiro de 2020 é lançado na Alemanha com o título Lass die Sonne scheinen pela editora Urachhaus Verlag — e Doidão (1963), que nos aproxima do escritor como pessoa. Em uma linguagem clara, sem floreados, o autor descreve sua vida e seus sentimentos, tais como perdas, tristezas, amor e sorte, de forma humorada, sensata e emocionante.

Mein kleiner Orangenbaum conta a história dos primeiros seis anos de vida de José Mauro, o sexto dentre onze filhos, que se passa num subúrbio do Rio de Janeiro. Seu pai, filho de imigrantes portugueses, ganha muito pouco para o sustento da família, tendo sua mãe, uma índia sem escolaridade, ter que trabalhar como lavadeira para ajudar nas despesas.

Extremamente inteligente, José Mauro aprende sozinho a ler e a escrever, ingressando para a escola aos quatro anos de idade. Sem demora, o menino se torna o mais arteiro do bairro. Para fugir de sua triste realidade, ele dá asas a sua imaginação e coloca nomes em animais, plantas e objetos, com os quais conversa. É assim que um pequeno pé de laranja lima se torna seu melhor amigo e confidente. Mesmo com apenas cinco anos de idade, José Mauro trabalha como engraxate e vende canções que ele mesmo compõe, a fim de conseguir dinheiro para ir, escondido, ao cinema. Quando seu pai perde o emprego e não consegue comprar nenhum presente de Natal, José Mauro reclama do azar em ter um pai pobre. O olhar de seu pai, antes de lhe dar uma surra, persegue o autor por toda a sua vida.

Em Vamos aquecer o sol, o segundo volume da trilogia, José Mauro é adotado pela sobrinha de sua mãe juntamente com seu marido, psiquiatra e católico fervoroso. Imediatamente sua vida se transforma, passando a morar em uma linda casa em Natal, a frequentar uma escola católica e a tomar, forçosamente, lições de piano. É educado com rigor, a segurança material não sacia sua carência de afeto. Novamente procura por amigos imaginários, desta vez o sapo Adão e o artista de cinema Maurice Chevalier. Além de seus amigos imaginários, José Mauro  também conta com a compreensão do Irmão Fayolle, professor bondoso, que reconhece algo especial em José Mauro e, apesar de suas traquinagens passarem frequentemente dos limites, está sempre pronto a apoiar o menino.

Doidão inicia com a conclusão do ensino secundário de José Mauro, em plena puberdade e pela primeira vez apaixonado de verdade. Seus pais adotivos esperam que ele ingresse para a universidade, a fim de auxiliar sua família pobre no Rio de Janeiro. Sendo assim, José Mauro arrisca diversas faculdades: medicina, direito, filosofia e artes plásticas, desistindo, porém, de todas elas. Suas paixões são nadar, viajar e viver com os índios, com os quais se sente ligado por sua origem. Mesmo sendo conservador, seu pai adotivo reconhece o espírito livre do rapaz e o incentiva a seguir seu próprio caminho.

JMV - lançamento Vamos aquecer o sol - 1974 (2)

Trajetória
Até que José Mauro possa viver inteiramente da escrita, passam-se 20 anos difíceis. Muitas vezes o dinheiro dá apenas para pagar uma única refeição diária. José Mauro dorme em albergues baratos ou nas ruas ao relento. Mesmo assim, não se deixa dobrar, sobrevivendo de biscates. Assim, trabalha como pescador, colhedor de bananas, pugilista, modelo vivo, professor de primário ou auxiliar de enfermagem para os índios. Mesmo após 11 obras publicadas, José Mauro serve à noite em bares como garçom, onde é reconhecido por frequentadores que apreciam seu talento literário. Abismados, pedem autógrafo ao escritor.

Nos anos 1940 e 50, Vasconcelos realiza diversas viagens à região amazônica e empenha-se em defender os povos indígenas. Vários de seus romances não autobiográficos são baseados nestas experiências e tratam de temas ainda hoje atuais, tais como pobreza, racismo, destruição da natureza e da cultura indígena. Suas histórias surgem de encontros reais e relatam sobre garimpeiros de diamantes (Arara vermelha), salineiros (Barro blanco) e do declínio de um cacique (Kuryala: capitão e carajá).

Foram nas décadas de 1960 a 70 que José Mauro de Vasconcelos se estabeleceu como escritor, desfrutando de uma vida confortável em São Paulo, não perdendo nunca a vontade de viajar por seu país. Sua resposta à pergunta por que nunca se casou, ele explica da seguinte forma: sem medo de viver sozinho, considera imprescindível para um casamento ideal camas separadas e vidas independentes. Então, confessa ter tido dois relacionamentos amorosos sérios. Nunca esqueceu suas origens e generosamente partilha seus rendimentos com outros. Após dois derrames, José Mauro falece de pneumonia no dia 24 de julho de 1984 em São Paulo. Ao fim de sua vida, quase não mantinha contato com sua família, deixando sua herança para seu motorista particular de longos anos.

Vasconcelos foi premiado diversas vezes como ator, escreveu textos para cinema e peças de teatro, produziu filmes. Como artista plástico, pintou quadros e realizou quatro grandes exposições. Entretanto, o que lhe dava mais prazer era a escrita. Elaborava seus romances ao longo de anos, em sua cabeça, antes de passar suas ideias para o papel, o que fazia com grande facilidade, motivo de inveja para outros. Só no Brasil foram publicadas 200 edições de Meu pé de laranja lima, totalizando mais de 2 milhões de exemplares vendidos. Mesmo assim, alguns críticos literários e intelectuais do país recusam conferir ao autor o merecido reconhecimento, classificam sua linguagem muito simplista, o conteúdo de suas obras insignificante. São justamente o estilo versátil e autêntico de suas histórias, a linguagem clara e poética, o lado humano de seus personagens que explicam o motivo pelo qual as obras de Vasconcelos são até hoje lidas no mundo inteiro. Seus livros continuam sendo traduzidos e publicados não só na Europa, mas também na China, Coreia do Sul e, até mesmo, no Irã. A venda de mais de um milhão de exemplares traduzidos ressalta a universalidade e atualidade dos temas abordados por José Mauro de Vasconcelos.

NOTA
A Evanildo Fernando, biógrafo do autor no Rio de Janeiro, segue meu especial agradecimento pelas informações e fotos para este artigo.

 

Wiebke Augustin

É doutora em linguística e mestra em tradução. Em 2012, com sua colega Carla Martins de Barros Köser — também mestra em tradução — criou a editora Arara Verlag, especializada em literatura brasileira na Alemanha.

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