Um romance de formação

"Com o corpo inteiro", livro de estreia de Lucila Mantovani, traz narrativa intimista e discute temas atuais, como o feminismo
Lucila Losito Mantovani, autora de “Com o corpo inteiro”
30/04/2020

É bastante comum entrelaçar, na ficção, problemas sociais contemporâneos e dilemas na formação de uma personalidade. Com o corpo inteiro, de Lucila Losito Mantovani, envereda por esse caminho e cria pontes que geram uma identificação com o leitor.

Narrado em primeira pessoa, o livro fala de uma mulher atenta ao presente, mas voltando sempre ao seu passado. Em meio a isso, reflete sobre seus relacionamentos, sobretudo com Paco, um português emocionalmente instável, com quem tem uma relação abusiva. A prosa, bastante poética ao apresentar jogos com palavras em busca de intensidade, remete até mesmo à formação do Brasil, principalmente em seu período colonial. Progressivamente, entoa o debate de um tema universal, o da condição feminina ao longo do tempo.

Merece destaque o projeto gráfico da editora Pólen. Impresso em letras verdes, em determinado momento capítulos viram-se de cabeça para baixo. A intenção, imagino, é a de nos exigir uma visão invertida, revirando a leitura em seu exercício. Algumas páginas são omitidas, deixando os espaços de uma história em branco ao suscitar nosso questionamento enquanto leitor atento.

Os capítulos são curtos. A princípio, sugeriria uma narrativa frenética ao enunciar o fim de uma ação dos personagens de maneira sentenciadora, evocando, por exemplo, o suspense e a reflexão, ao mesmo tempo em que exprime outra ação — ou a continuidade da primeira. Nada disso. Na verdade, Lucila se dedica a um cuidado especial. Em seu entendimento, o tema deve ser abordado com bastante atenção. Isso porque, conforme dito anteriormente, não se trata apenas da apresentação das angústias de um personagem. Pelo contrário, sua preocupação está em demonstrar como tais angústias são construídas historicamente, através de fatos pretéritos e aparentemente não interconectados.

A protagonista não se encontra angustiada por evocar uma consciência de si mesma, de sua condição. Ela reflete sobre a formação de sua vida em uma família que enfrentou um conturbado processo de separação. A ele, temos o surgimento de indagações quanto ao papel da mulher no interior da casa em que cresceu. O lugar de sua mãe, de seu pai — bem como de sua avó — são constantemente mobilizados como elementos construtores da realidade apresentada.

Porém, Lucila — chamemos assim a protagonista, em vistas da incursão autobiográfica da escritora — tem total lucidez. Sua narrativa é luminosa, não havendo surpresas nos relatos. Os episódios descritos são imprescindíveis para a constituição de sua personalidade. Nas mesmas proporções, são eles imprescindíveis para a constituição da mais comum das mulheres. O endereço, neste caso, é a ainda centralidade cultural da figura masculina no interior da família. Em um país como o Brasil, com o seu conhecido passado colonial sublinhando o patriarcado, diversas vezes evocado na obra, não poderia ser diferente.

Os ecos de tais questionamentos são vistos nos mais distintos espaços. Paco mesmo é analisado por Lucila, em seu momento de maturidade, como fruto de uma vida familiar marcada pelo abandono da figura paterna. Criado, então, pela mãe, posteriormente, tem de lidar com a sua morte. Logo, se, por um lado, a figura masculina é central na formação das personalidades dos sujeitos, por outro, sua ausência também exerce grande força — a saída de casa do pai de Lucila, durante sua adolescência, ressalta esta tese.

Mas, se a figura masculina tem proeminência, a feminina se destaca, seja como resistência, seja como contraponto. O dualismo entre os dois polos se faz visível. Emerge o conflito de tais perspectivas a ecoarem na formação das personagens. Algo tão presente que, figurativamente, tem a sua representação no nascimento de uma criança hermafrodita, filha da amiga de Lucila.

A despeito do conflito, o livro é calmo. Os curtos capítulos, quase nada descritivos, exigem permanentemente a reflexão dos leitores. Normalmente, são finalizados com locuções demasiado assertivas. É como se, ao longo de suas linhas, a apresentação de um fato se sobrepusesse às ações. Em uma lógica de causa e consequência, o resultado somente poderia ser um. Desse modo, agindo de maneira bastante assertiva, a narradora-protagonista acaba sendo sentenciadora.

Na minha cidade natal pouca gente sabe ou se importa que o nome da cidade — Águas de Lindoia — significa águas quentes e tem origem indígena karajás? kayapós? karijós? Quantos indígenas foram expulsos das termas que hoje dizemos ser nossas? Em fantasias e sonhos, prestes a naufragar, nos vejo entre lá e cá sem conhecer a própria terra. O Brasil é uma criança ancestral.

Sentenciadora, mas, não impositiva. Isso porque Lucila, ao longo da narrativa, tem consciência não só do amadurecimento de sua personalidade. Ela evoca a escrita do próprio livro, dizendo por que escreveu isso ou aquilo. A obra emerge, então, como um diário, sinalizando para a narradora ciente de sua escrita e, consequentemente, de seus efeitos, do desenrolar da trama. De modo simultâneo, abre-se espaço para um diálogo fecundo com o leitor que, então, não pode mais apenas se ater à história. Lucila desponta em sua relevância. A identificação entre autora e protagonista torna-se inevitável.

Possibilidades
Sutilmente, encontram-se abertas as possibilidades de interpretação da realidade, à medida em que autora e personagem se confundem. Por isso Lucila se dá o direito de passear pela história do Brasil, ainda mais no momento em que viaja pelo interior da Amazônia, acompanhada de sua amiga. O contato com as tribos indígenas, devido à possibilidade de diálogo com o real que se encontra fora do livro e da literatura, mobiliza e sensibiliza o leitor.

O recurso é interessante. Contudo, requer cuidado para não se tornar um clichê, como a fuga do conflito permanente no livro. Quando o faz, Lucila abre espaço para que a sua opinião seja reconhecida e admitida como ponto de inflexão da obra. Logo, o que pensa sobre uma determinada tribo amazônica e sua perspectiva da relação homem-natureza sobressaltam para o primeiro plano. Saber dosar isso é essencial para não sufocar a literatura de Com o corpo inteiro — afinal, independentemente de qualquer coisa, trata-se de literatura.

Diante desse quadro, nos é exigida uma atenção maior em relação à personagem. Devemos focar no livro de tal maneira que encontremos elementos que nos conduza de volta para a literatura. Mesmo que os elementos reais sejam importantes — e, sem sombra de dúvidas, o são — devemos tomá-los como referência a partir da literatura, onde, desde o princípio, temos o ponto de partida para a sua discussão.

Não é algo simples atentar para este fato. Pois, por exemplo, ao estarmos diante de um escritor excessivamente militante, essas brechas criadas pela escrita de uma história permitem que o seu aspecto combatente desponte sobre os demais elementos de uma obra. E, em nossa atualidade, é imprescindível fazermos um debate sobre os temas candentes de modo bastante reflexivo.

Com o corpo inteiro obtém sucesso nessa empreitada. Os temas não são alongados exaustivamente — quase como sermões. As pausas, essenciais na narrativa, permitem um respiro ao leitor. É como se os temas fossem jogados no ar. Depois disso, cabe a nós fazer o que é melhor, mobilizando nosso próprio repertório. Lucila foge ao panfletário e à raivosa manifestação política — embora seja possível compreender bem o seu posicionamento no espectro político atual.

À medida que avançamos na leitura, conseguimos entender melhor o título do livro. De alguma maneira, ele nos remete a um estado de sobrevivência de alguém que logrou ficar com o corpo inteiro diante de tantos acontecimentos. Definitivamente, a personagem, através do amadurecimento de sua compreensão da vida, de sua história, possível de ser observada ao longo da obra, logra manter-se inteira.

A remissão ao corpo se dá por todo o livro. A habilidade de Lucila com as palavras permite-lhe constante apelo aos sentidos, em um nível de profundidade gramatical percebido através do paralelo com reentrâncias e entranhas corpóreas. Assim, foge-se a um subjetivismo, fazendo com que a trama se torne algo mais concreto, com um interessante processo de identificação.

Talvez meu sexo fosse uma espécie de ferida. Lugar onde se concentravam dores prontas para serem acionadas. Fui percebendo aos poucos que na verdade minhas dores vinham à tona quando estavam prontas para serem curadas. Para acontecimentos que pudessem inaugurar novos espaços dentro de mim. Hoje, justo por não sermos simétricas, é que amo nossos lábios. Minha voz. 

O contato da protagonista com a natureza, a descoberta de formas de vida completamente diferenciadas, o encontro com um outro tipo de conhecimento e sabedoria, como a indígena, poderia sugerir o direcionamento do olhar para um essencialismo. Seria um maniqueísmo, como colocar a sociedade branca ocidental como os “maus” enquanto os povos em estado de natureza, os “bons”, guardiães de uma pureza impossível de ser encontrada com o desenvolvimento moderno.

Porém, a relevância desse contato e a forma como tais informações são manipuladas ao longo da narrativa apenas podem ser compreendidas e dimensionadas no momento em que tomamos a história da própria protagonista como referência — isto é, novamente partindo da literatura. O objetivo é um contraste entre o real e a ficção, como um contrapeso da própria narrativa, de modo que a história de Lucila, em si, desponte. Eis que se percebe como a autora não cai nesse simplismo. Sua mãe, personagem secundária, contudo, de extrema relevância, não fica desimportante ou é julgada por ter aberto mão de realizações pessoais, individuais, em nome da família que construía e o cuidado com o lar. Ou mesmo o seu pai, que abdicou da casa para viver com outra mulher. Nenhum deles padeceriam de uma enfermidade moderna. Os dilemas de Lucila, em sua relação abusiva e complexa com Paco, não podem ser vistos como a deturpação de uma pureza original.

O contexto deve ser avaliado como um todo. Tanto é que Lucila não recorre à vida na natureza como recurso último de uma busca ao essencialismo. Não há mitologismos. Ela inicia um outro relacionamento, se mostra feliz com ele, admite toda a tortuosidade de sua trajetória pessoal e, por fim, não romantiza nada que se encontra fora de sua vida.

Enfim, Lucila nos cobra, como leitores, uma atenção excessiva — particularmente, acho positivo. Exige o reconhecimento de suas peculiaridades e um olhar atento à sua própria história, ao mesmo tempo em que se revela como uma pessoa comum. Paralelamente, não nos apresenta qualquer lição de moral. Certamente, um belo livro para vermos que o ficcional não é tão distante do real.

Com o corpo inteiro
Lucila Losito Mantovani
Pólen
168 págs.
Lucila Losito Mantovani
Formada em Economia, cursou pós-graduação em Ficção no ISE Vera Cruz, tendo frequentado o programa Clipe para escritores da Casa das Rosas. Em 2016, foi contemplada pelo prêmio Proac — Estímulo à Criação Literária Prosa. Participou das coletâneas Curva de rio (2017), Naquela terra, daquela vez (2017) e Carne de carnaval (2018).
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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