Um policial contemporâneo

“1983”, de David Peace, aproxima-se de um filme de ação, com capítulos curtos, cenas breves e muito diálogo
03/02/2014

Acentuou-se nos últimos tempos a discussão sobre o fim da cultura, sobre o instante onde a cultura clássica, vencida por urgências infindas e pelo excesso de informações, daria lugar a um conceito superficial do conhecimento. Assim ninguém seria senhor de um universo, mas todos teriam domínio linear e ralo sobre todas as coisas. Para muitos pensadores, entre eles Mário Vargas Llosa, este é o nosso tempo.

Em suas reflexões, Llosa afirma que o mecanismo de maquiar e degenerar a cultura já invadiu a literatura. “Hoje vivemos a primazia das imagens sobre as idéias”, constata no livro A civilização do espetáculo, para logo em seguida apontar um lado bom da questão. A morte do livro significaria também a morte da subliteratura dos best-sellers.

Deixando as previsões de lado, curiosamente passamos a consumir uma narrativa que vai além da mediocridade dos best-sellers das décadas de 1960 e 1970. Esta narrativa tem o ritmo dinâmico que nasceu com o cinema de ação e privilegia os espaços das imagens e dos diálogos. E aí chegamos ao novo romance de David Peace, 1983, que encerra a tetralogia Red Riding. Embora se deite por mais de 500 páginas, o volume se encaixa perfeitamente nesta, digamos, nova tendência literária. Com capítulos curtos, cenas breves e muito diálogo, a narrativa se mostra como um filme de ação, onde o excesso de informações tende a desorientar o leitor.

Outras influências do universo cinematográfico vêm a reboque. No entanto, a mais visível consiste na falta de linearidade do enredo. Várias histórias, acontecidas em vários momentos, se entrelaçam num aparente desconexo jogo de informações e contra-informações. E tudo contado pelas visões contraditórias de três narradores. Dois são oniscientes, o que fala de BJ, um homossexual que se prostitui nas ruas e que apareceu no segundo livro da série, 1977, e outro que conversa com John Piggot, um advogado contratado para reabrir o caso de um acusado de estupro e assassinato. O terceiro narrador é Maurice Jobson, um policial corrupto e violento. Cada um tem um prisma e uma função no caminho que segue para o mesmo ponto, encontrar, enfim, o verdadeiro assassino de Yorkshire, o homem que deste o início da saga vem dando sumiço a meninas no condado inglês.

Não tenho elementos para falar dos romances anteriores da saga, posto que não os li, mas desperta curiosidade o fato de David Peace trabalhar desfechos que remetam para o volume seguinte da tetralogia. Numa linguagem de roteirista, estaria aí um exemplo de subplot, da linha dramática secundária que vai se resolvendo ao longo da trama, mas se voltando sempre ao plot, à linha dramática principal, ao desfecho do suspense maior, no caso a identidade do infanticida de Yorkshire.

Naturalmente que não há qualquer novidade no exercício. Basta ver o Kill Bill, de Quentin Tarantino, ou o polêmico Ninfomaníaca, dirigido por Lars von Trier. Ou ainda as telenovelas brasileiras. Todos, ao seu modo, recuperam uma técnica fartamente usada nos filmes em série da era do cinema mudo. Trazer isso para a literatura policial é que parece uma curiosa novidade. A se medir pelo sucesso mundial da trilogia, vem dando certo.

No entanto, todo este sucesso se deve ao talento do escritor em trabalhar com as demandas de um ambiente intelectual, digamos, de superfície. Sua linguagem é básica, em ordem direta, sem qualquer busca de refinamento. Mesmo quando descreve cenários, fala sempre de ambientes despojados, salas de visita com “retratos de pessoas que já não estão mais lá”, ou delegacias com pôster falando do Natal, mesmo que a época natalina já esteja bem distante. Peace, enfim, está há anos luz do requinte descritivo de uma Jane Austen.

O tempo de David Peace é o hoje, com sua cultura da repetição, da ênfase, do descartável. “Você se recostou na sua cadeira de plástico, batendo a caneta de plástico contra a mesa também de plástico”, escreve como a dizer que seu leitor precisa deste ritmo quase tatibitate. E talvez tenha razão. O certo é que faz o retrato de uma época que começa no pós-revoltas sociais e civis da década de 1960. E aí nasce este universo da banalização da violência e do sexo, das investigações frouxas, das atitudes vazias e individualizadas.

Para marcar bem esta definição temporal do romance, David faz a contextualização política e policial das épocas, projetando notícias daqueles momentos. Os atentados promovidos pelo IRA, as intransigências do governo de Margaret Thatcher, a guerra das Malvinas, o pânico da expansão das políticas de energia nuclear. Aliás, numa das referências às Malvinas os personagens sequer sabem do que se trata.

Também é interessante notar que as notícias chegam aos personagens pelo rádio, ninguém lê jornal. Sutilmente o fato pode remeter a um discreto protesto do autor contra a já tão falada superficialidade da época que descreve.

Aliás, o livro como um todo pode ser lido como um protesto. Nenhuma leitura é monossilábica. O fato é que o instante de pouca reflexão e excesso de informações está muito bem descrito neste 1983. E este é um mundo real que vem preocupando e instigando intelectuais pelo mundo afora. David Peace certamente pegou uma carona nesta onde e acenou para um novo fato. Bom ou mau, este é o mundo que nos cabe viver.

E alheio ao alarido que o circunda, Peace optou por se jogar numa literatura de entretenimento. O bom disso tudo, no entanto, é que, longe dos lacrimejantes e fúteis romances da era dos best-sellers, 1983 é uma narrativa que se enquadra perfeitamente no clima da literatura noir dos anos de 1940. Era preciso denunciar a crueldade e o vazio que cerca uma parcela da sociedade para que o todo desperte para o problema. E isso David Peace faz com competência.

1983

David Peace
Trad.: Rodrigo Peixoto
Benvirá
507 págs.
David Peace
Nasceu em 1967, em Yorkshire, na Inglaterra. Apontado pela revista Granta como um dos maiores escritores britânicos jovens em 2003, Peace ganhou vários prêmios, entre eles o James Tait Black Memorial Award, o German Crime Fiction Award e o Grand Prix Du Roman Noir, como melhor romance estrangeiro, na França. É autor também de Tóquio – Ano zero e The Damned, inédito no Brasil.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

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