Um freio no mundo

Thiago Camelo aposta em poemas longos contra a aceleração da vida contemporânea
Thiago Camelo, autor de “Verão em Botafogo”
30/08/2018

Certos poemas encontram hoje, na demora, a sua maior força. E alguma poesia brasileira tem apostado na dinâmica dos poemas demorados, isto é, dos poemas longos. Em Um teste de resistores, de Marília Garcia, por exemplo, os poemas testam a si mesmos e à sua própria forma, exigindo uma leitura lenta e, de certa forma, cíclica do livro. Em Pé do ouvido, de Alice Sant’Anna, a forma da viagem, narrada no extenso poema dividido em dois, é reproduzida no tempo de leitura, que exige do leitor a “visitação” de diversos lugares enquanto a voz do poema reencontra na memória um amor indeciso entre passado e presente. É um procedimento análogo a outros livros recentes, como Teatro do mundo, de Catarina Lins, e O livro das postagens, de Carlito Azevedo. Seja como for, todos esses títulos também testam a forma do poema lírico, alargam as suas zonas de atuação, como acontece, por exemplo, com o livro Para que poetas em tempos de terrorismo?, de Alberto Pucheu, que arrisca hibridismos entre o ensaio e a poesia, tanto quanto Marília Garcia o tem arriscado nos seus trabalhos mais recentes, e ainda mais notadamente em textos como O poema no tubo de ensaio.

E o que todos esses poetas trazem em comum — não obstante a sua enorme disparidade no que tange a escolhas, temas, posições e formas — é o seu flerte com as formas da narrativa. Mais ou menos fragmentada, ela aponta para o ressurgimento das formas épicas no seio da arte lírica. Quase romances ou quase epopeias, está em jogo, em cada um desses trabalhos, uma subjetividade, com mais ou menos intensidade, estilhaçada, problemática, pulverizada. E é com bastante força que se subdivide a subjetividade configurada em Descalço nos trópicos sobre pedras portuguesas, livro mais recente de Thiago Camelo. São 15 poemas que por vezes parecem contos, e que, tomados em conjunto, podem ser fabulados como um único romance fragmentado.

A diferença, no entanto, é que as artes narrativas se compõem, na maior parte das vezes, de relações intersubjetivas. Já no livro de Thiago Camelo, os versos “eu me afeiçoo aos objetos, nunca às pessoas/ Os desejos não conhecem todas as dimensões” podem ser lidos como uma espécie de minitratado poético. Pois em Descalço nos trópicos… o que dimensiona a forma poética é uma profusão de coisas no mundo, e os encontros da voz que conta essas histórias em que aparecem tais coisas. Todas as relações com pessoas são mediadas por objetos, por coisas, que interditam o desejo, ou melhor, freiam-no, condensando em sua materialidade, tanto descritiva quanto especulativa, a atenção do poeta. Em certos poetas, esse freio da libido nos objetos gera uma subjetividade altamente reflexiva (pensemos por um momento em um poeta modelo desse processo, Fernando Pessoa, principalmente Álvaro de Campos).

Onde ações e reações inter-humanas ocorreriam, o poeta esbarra com pensamentos e coisas, ou melhor, pensamentos sobre coisas. Camelo tem consciência disso ao afirmar que “pensamentos não são nada senão um encontro/ a gente esbarrando com, contra/ nas coisas”. Esse jogo das preposições (com, contra, em) revela a sua poética fundamental: a poesia se configura como pré-posição do sujeito antes dos encontros. Por isso o poeta sempre para e pensa em Descalço nos trópicos…, enquanto o mundo se move rápida e alucinadamente, com toda a sua carga de automatismo. Essa é a sua forma de fazer com que a linguagem seja o freio do mundo. Na relação com o pai, tal como configura no poema Eu nunca durmo, isso fica muito claro:

Dois Camelos canhotos
você é sincero, diz que não jogava bem
mas tinha um chute
eu, pai, eu jogo bem
mas como você sabe eu não sou objetivo
eu luto contra, eu tenho medo, pai (…)
e eu rolaria e você chutaria
com esses trejeitos esquerdos
com o corpo um pouco inclinado
como se o giro da Terra fosse óbvio

Estrutura de imagens
O poema coloca na forma do medo esse freio do mundo na linguagem. Em outras palavras, o próprio giro da Terra se torna não-óbvio, ou seja, problemático. Podemos também falar em certo apego à materialidade, alguma aversão à idealidade, ao simbolismo, ao estilo alegórico, tão forte em outra linhagem de poesia lírica, aquela em que o poema é uma estrutura de imagens. É o que atestam versos como:

O que eu sei da natureza está dentro de mim
sem nenhum simbolismo
eu nunca subi em uma árvore
eu nunca vi um índio
e eu queria ter uma empatia natural por índios
eu queria amar de outra forma.

Em Camelo, a atitude não simbolista é o ponto de partida para a sua reflexividade e para o seu materialismo. No poema citado, isto é subentendido como um tipo de amor. Ama-se as coisas com o furor com que se poderia amar as pessoas. Ou melhor, ama-se, nas coisas, aquilo que se ama nas pessoas, mas que o freio da linguagem interdita. O poeta que aí se configura é todo interioridade — mas encontra, dentro de si, toda a exterioridade do mundo. Na sua célebre Teoria do romance, Lukács identificou esse como sendo o ethos do herói do romance, que descobria que a aventura interna, dos caminhos insondáveis da reflexão e da alma, trazia uma aventura muito mais perigosa que as aventuras do mundo objetivo, do mundo externo, que o herói das epopeias frequentava.

“Estamos todos/ terra, ilha e todos/ estamos todos no mesmo barco”. Este barco é a interioridade do poeta. Como, no entanto, ela é configurada linguisticamente, e como essa subjetividade não é articulada em uma narrativa única, como ocorre com um romance ou com um conto, ela pode diversa, ao invés de una. E é uma diversidade de coisas que a compõe. O “mesmo barco” dos versos que citamos são, na verdade, o eu do poeta, que se torna uma central de forças de todo o mundo. Por isso o livro de Camelo está também atolado com curiosidades enciclopédicas, sobre a luta entre rinocerontes e hipopótamos, teorias científicas, números de vezes que as pessoas piscam por dia, etc., uma sorte de coisas e informações que refratam a libido antes que ela possa se tornar ação. Por isso também o poeta se pergunta “mas o que fazer com estes detalhes/ coisinhas que habitam as galáxias e o fundo do mar/ e o espaço entre as galáxias e o fundo do mar”.

Não há o que ser feito. Diante de uma tal subjetividade, perdida nas fossas abissais tanto quanto no vácuo entre as galáxias, o mundo é grande demais. Toda a especulação substitui o poder de reação de que normalmente somos dotados para que possamos levar o nosso dia a dia adiante: levantar, fumar um cigarro, atravessar a rua, tomar um café, ir para o trabalho, voltar para casa, verificar o celular, todas essas ações que sustentam o cotidiano são suspensas pelo pensamento enquanto linguagem. Vive-se, então, este problema, e é isto que configura toda a melancolia de Descalço nos trópicos… — sim, melancolia, pois não se chama por outro nome uma tal emoção que suspende as ações e interrompe o curso da libido no indivíduo.

O guindaste sobre a cidade é um esquadro gigante
uma vara de pesca, uma máquina alienígena
uma girafa, um animal em extinção
o maior brinquedo do mundo.
Solto no céu ilude

É o desejo que, solto no céu, ilude. Com isso, também as histórias, que poderiam ser contos, ou fazer parte de um romance, iludem — são o locus de uma poesia agarrada à materialidade. Mas não se trata de nenhum naturalismo: as descrições das coisas se intercalam a todo o momento, em Camelo, com a especulação e com a emoção retesada, e o que se expõe ao leitor é um eu comovido, porém imóvel diante da imensidade do mundo e da rapidez das coisas, identificada com o tempo mortal, e tão curto, que nos foi dado.

Descalço nos trópicos sobre pedras portuguesas
Thiago Camelo
Editora Nós
96 págs.
Thiago Camelo
Nasceu em 1983. É poeta e compositor. Autor de Verão em Botafogo (2010) e A ilha é ela mesma (2015).
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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