Todas as censuras que o livro sofre

Critérios equivocados de avaliação impedem que obras importantes cheguem aos estudantes brasileiros
Jeferson Tenório, autor do romance “O avesso da pele”
28/03/2024

Sobre a censura ao livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, selecionado e distribuído às escolas pelo PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), seguem algumas reflexões.

No ano passado comecei a participar de um grupo no WhatsApp sobre o PNLD Literário, com cerca de trezentas editoras.

A cada dia eu fico mais assustado com a quantidade de mensagens acerca dos critérios, procedimentos, exigências e confusões que o PNLD impõe às editoras para selecionar obras literárias, dificultando, censurando e burocratizando o processo.

Algumas editoras chegaram a postar mensagens sobre obras reprovadas pelos pareceristas do PNLD Literário amparados no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Art. 79. As revistas e publicações destinadas ao público infantojuvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Seguem reproduções de algumas postagens no grupo denunciando a censura do PNLD às obras literárias que estão sendo avaliadas e escolhidas atualmente:

Reclamaram de armas em uma história de Anita Garibaldi.

— Questão 2.1.5. (Anexo VI, 2.2.4.1) O LLI não respeita o artigo 79 do ECA, na medida em que apresenta variadas cenas em que há presença de armas — fuzis, armas brancas, canhões (LLI, p. 20, 27, 28, 31, 32, 35, 36, 37, 46, 47, 48). Em algumas dessas cenas, é a própria protagonista que está portando a arma em primeiro plano (p. 31).

Houve reprovação de Frankenstein por violência (e o livro que foi escrito por uma adolescente aparentemente fere o ECA); de Os 12 trabalhos de Hércules também por violência; de Imbatível por estereotipar adolescentes (essa HQ ganhou o prêmio de Bolonha na categoria HQ para adolescentes)… Enfim, houve de tudo.

Reclamaram dessa ilustração que retrata uma bodega do interior. O parecerista diz que imagem fere o ECA ao mostrar uma cena que sugere um homem bebendo uma bebida alcoólica.

Algumas editoras procuraram autores/as e ilustradores/as para “corrigirem” as passagens censuradas pelo PNLD e reverter a reprovação, já que as correções não prejudicavam a história.

O livro O avesso da pele, que chegou às escolas este ano, foi avaliado e selecionado no PNLD anterior, de 2021, no governo Bolsonaro.

Uma das justificativas da Companhia das Letras em defesa do livro, em postagem no Instagram, é que ele “foi previamente aprovado e selecionado por uma banca de educadores, especialistas, mestres e doutores em literatura”. Mais adiante solicita: “Pedimos, portanto, uma manifestação imediata e contundente por parte do ministro da Educação em defesa do PNLD e de seu papel crucial na promoção da educação no Brasil”.

Mas o atual PNLD está censurando até obras clássicas sob orientações do Ministério da Educação do atual governo.

O avesso da pele seria aprovado pelos pareceristas no PNLD literário atual?

Quando escrevi o juvenil O encanto da lua nova, ele foi aprovado no conselho editorial e pelos leitores críticos de uma grande editora com forte presença nas escolas, até hoje, e sem nenhuma presença nas livrarias. No entanto, exigiram que eu teria de tirar uma frase que trazia uma leve alusão, sem dar o nome, ao consumo da maconha por uma das personagens, que era pré-adolescente. Não concordei e o livro não saiu por essa editora. Nessa época eu não tinha filhos. Anos depois quando resolvi lançar o livro, e tinha filhos, resolvi trocar a frase por um verso do poema Balada para a lua de Alfred de Musset. O livro foi selecionado pela FNLIJ para participar do catálogo e da Bologna Children’s Book Fair, e meses depois foi incluído e analisado numa tese sobre obras transgressoras na literatura infantojuvenil defendida na SBPC.

Editais
Num país com poucos/as leitores/as e poucas livrarias, muitas editoras sobrevivem da venda para editais, e o melhor de todos é o PNLD literário. Imagino que isso não ocorra em outros países, tanto que editoras estrangeiras desembarcaram no Brasil seduzidas por essas compras governamentais.

Talvez existam livros para editais e livros para livrarias, aqueles que os/as leitores/as escolhem comprar, sem qualquer tutela ou filtro externo, seguindo apenas sugestões ou mesmo o impulso ali diante da capa, do título, e ao ler a sinopse.

Nesse sentido a atual censura dos livros nos editais nos faz enxergar que a livraria continua sendo o lugar mais democrático para o livro, até surgir um imbecil nazista, claro. Mesmo assim, para quem leu O clube do livro do bunker e A livreira de Paris sabe que as guerras passam e as livrarias e os livros continuam. O mesmo ocorre com os editais e diretoras de escola.

Falo aqui do livro de papel, físico, com cheiro, impresso, não o e-book, o digital, que a Amazon acaba de dizimar aos milhares com um clique, num gesto monstruoso e impiedoso. Da noite para o dia, todos os e-books de editoras brasileiras simplesmente desapareceram na Amazon. Já não bastasse a censura aos livros, surge esse aniquilamento em massa.

Nos tempos das minhas livrarias, um dia apareceu um menino com uma lista de livros do Ensino Fundamental 2. Enquanto eu separava os livros ele circulou pela livraria e escolheu um livro que adicionou à pilha dos adotados. Para pagar, deu um cheque em branco e disse que eu precisava ligar para o pai para aprovar o valor da compra. Liguei e ele observou que o valor estava maior que o previsto. Expliquei que era por causa de um livro que o filho acrescentou. Ele perguntou qual era. Respondi que era um livro sobre sexo e comentei que talvez ele estivesse curioso sobre o assunto. O pai na hora aprovou o valor.

Lembrando disso hoje, imagino que esse menino, filho de pais que certamente frequentam livrarias, naquele dia se sentiu livre para escolher um livro de seu interesse, escapando da tutela, do falso moralismo e da hipocrisia de uma diretora de escola ou de um PNLD da vida. E esse menino, agora, talvez pai de adolescente, não iria ver problema algum de seu filho ler um livro belo e útil como O avesso da pele.

Alonso Alvarez

Nasceu em São Paulo (SP). É escritor, editor e ex-livreiro, fundador da Livraria artepaubrasil. Publicou, entre outros, o juvenil O encanto da lua nova, e o infantil Era uma vez duas linhas. Estreou no teatro, em 2012, com a peça A saga da Bruxa Morgana e a Família Real. O romance Peg pag será publicado em breve pela Iluminuras.

Rascunho