Tiro no pé

“O detetive sentimental”, de Tabajara Ruas, é uma trama previsível, de humor sonolento e clima fantástico digno dos piores filmes B
Tabajara Ruas, autor de “O detetive sentimental” Foto: Eduardo Fernandes
01/03/2009

Há uma literatura despretensiosa e que tem a intenção somente de divertir o leitor. Isso é perfeitamente compreensível para qualquer pessoa. No entanto, mesmo este tipo de opção literária precisa ser realizado com certo esmero, com um tanto de cuidado para não levar o leitor ao cansaço, ao enfado.

O bom romance policial serve bem de exemplo. Quando construído com precisão e seriedade, como fizeram Graham Greene e Georges Simenon, o gênero ganha dimensão e se consolida como verdadeiras obras-primas. O ponto de partida desses autores, com certeza, é a definição antecipada do que pretendem com determinado enredo. E daí se lança o escritor à tarefa de divertir o leitor com uma trama bem construída, com suspense verdadeiro e um enredo tão envolvente que literalmente nos agarra pela gola da camisa.

Realmente não é uma tarefa fácil escrever um romance policial. Há que se ter muita imaginação para se criar pistas falsas e verdadeiras e dubiedades sinceras capazes de fazer a trama sobreviver até o ponto final. Às vezes para quebrar o clima de tensão, muitos autores recheiam suas narrativas com pontadas de humor que, bem feitas, também ajudam na construção da obra. Luís Fernando Veríssimo, com seu Ed Mort, é um exemplo, mesmo nunca tendo merecido protagonizar um romance. No entanto, o humor quando cai na avacalhação ou mesmo no único sentido da obra tudo desanda para o mau gosto e a pobreza do texto. E neste espaço entram Jô Soares e seu medíocre O Xangô de Baker Street.

A indefinição também matou uma boa intenção de um bom romancista. Em seu novo romance, O detetive sentimental, Tabajara Ruas se perde numa trama previsível, vivida por personagens pálidos, permeada de um humor sonolento e um clima fantástico digno dos piores filmes B. Confesso desconhecer o romance Região submersa, de 1978, onde o “detetive sentimental” Cid Espigão fez sua estréia, e por isso não tenho como estabelecer comparações, mas a verdade é que esta sua nova aparição está muito longe de outras obras do autor como Netto perde sua alma e Os varões assinalados, romances de cunho histórico e verdadeiramente bem construídos.

Vazio e inverossímil
Tudo começa quando Cid, detetive particular sem clientes e trabalhando como segurança de uma casa noturna, tenta ajudar um bêbado a entrar em um Rolls Royce prateado. Antes de qualquer sucesso, são seqüestrados por duas belíssimas mulheres que os levam a um passeio pelas galerias de esgotos de Porto Alegre. Daí segue uma longuíssima seqüência (o livro tem mais de quatrocentas páginas) de episódios tão inverossímeis quanto vazios.

Logo de início fica claro que Tabajara Ruas tentou brincar com o romance policial criando um detetive desastrado e falido. Muitos outros autores já fizeram isso e até com relativo sucesso. Aliás, esta era a principal característica do personagem de um antigo seriado de TV, Bareta. O problema é que o humor não se realiza. As tentativas de piadas não passam disso. No máximo conseguem arrancar um sorriso amarelo do leitor entediado. Ou seja, ao fim e ao cabo estamos mesmo diante de um pastiche do romance policial.

Tabajara Ruas ainda tenta compensar as coisas com seres fantásticos, como lobisomens criados em laboratório, mulheres e homens robotizados, jacarés amestrados, malucos com falsos poderes. Tudo, no entanto, é descrito sem convicção e não chega a convencer. E aqui não se fala de verossimilhança, afinal, nada mais verdadeiro que os personagens de Murilo Rubião e de José Cândido de Carvalho. O problema é que em O detetive sentimental não existe um momento sequer em as palavras não se mostrem maculadas pela dubiedade da narrativa que, querendo ser uma crítica aos heróis policiais, se concretiza como um romance enfadonho e cansativo.

Há ainda outras bóias de salvação, como passeios pela denúncia social. A corrupção de todo sistema político, a injustiça do patrão que dispensa o tio Chinão, o general golpista que sobrevive de contrabando e tráfico, a miséria espalhada pelas cidades. Mas outra vez Tabajara Ruas erra a mão. Tudo é dito de maneira passageira e vaga, sem qualquer aprofundamento ou mesmo sentido de verdade. O leitor sabe que tudo isso acontece na vida, mas nas páginas do livro tais fatos passam despercebidos e fora de contexto.

Todos os problemas, por outro lado, são resolvidos de maneira simplória. Em um momento o autor chega a fazer referência à pobreza e à obviedade de autores que criam todo um clima de tensão para resolvê-lo classificando-o como pesadelo. No entanto várias vezes ele próprio cai na mesma armadilha. O momento mais visível é quando Cid Espigão tem os braços transformados em cobras.

De fracasso em fracasso, como diria Antônio Maria, Tabajara Ruas entrega o ouro muito antes do momento ideal. Sejamos mais claros. Jorge Amado costumava dizer que se negava a ler qualquer livro policial por uma razão muito óbvia. Nenhum desses livros o tinha surpreendido, ou seja, bem antes do fim ele já descobrira todas as verdades da trama. No caso de O detetive sentimental não precisa ser um leitor sofisticado como o escritor baiano para, lá pela metade do livro, já se saber quem é o culpado por tudo o que acontece, onde está o jogo do poder, onde tudo vai chegar.

E aí talvez esteja o principal problema do livro. O leitor é levado por páginas e mais páginas perfeitamente desnecessárias para chegar a um final tão óbvio como o de qualquer telenovela das seis. E isso joga o romance na classificação de um momento infeliz na obra de Tabajara Ruas que, de sorte, tem narrativas verdadeiramente brilhantes.

O detetive sentimental
Tabajara Ruas
Record
448 págs.
Tabajara Ruas
Nasceu em Uruguaiana (RS), em 1942. É escritor e cineasta. É autor de Netto perde sua alma, O fascínio, O amor de Pedro por João, Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez, entre outros.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho