Solidão e esquecimento

“As fantasias eletivas” é um breve e múltiplo romance, cuja principal força está na poesia
Carlos Henrique Schroeder, autor de “Aranhas”
30/01/2015

Na voz de Fernando Pessoa, um romance é uma história do que nunca foi, e assim toda a literatura é tecida, sendo capaz de se transformar nessa agradável forma de ignorarmos a vida.

Na história de Carlos Henrique Schroeder, dois personagens desconcertantes ganham vida: um recepcionista de hotel em Balneário Camboriú, destino comumente escolhido para as festas e badalações próprias de uma cidade à beira-mar. Renê, na busca pelo esquecimento de si próprio e de seus sucessivos fracassos, já quase fora assassinado e tentara o suicídio jogando-se ao mar, em uma tentativa que também terminou frustrada.

Machista e revoltado com sua situação emocional e familiar, Renê hostiliza a segunda personagem principal, Copi, um travesti argentino, de personalidade intensa e profunda, que se debruça perigosamente sobre as margens desse rio que é a solidão. Nos primeiros contatos, Copi entrega-lhe o “seu book”, mas Renê prefere recomendar aos hóspedes os serviços sexuais de prostitutas e nega qualquer contato com Copi. No entanto, ela habilmente se aproxima oferecendo-lhe algo raro, que poderia brevemente se assemelhar a amizade, com toques de delicadeza, sutileza, companhia e sensibilidade.

Até o desfecho da história de Renê e Copi, nada demais. Uma história simples, factível, por vezes divertida e em outras melancólica, com diálogos bem estruturados e escrita de forma bastante hábil. Renê recusa veementemente as digressões filosóficas da então já amiga sobre as questões mais sérias da vida, naquele delicioso embate entre o cego que não quer ver e o lúcido que insiste em lhe exibir e fustigar sentidos. As fantasias eletivas somente se torna um livro complexo e notável quando, após a história de Renê e Copi, o autor junta o pequeno caderno de fotos e pensamentos dela, que se considerava artista, boa escritora e fotógrafa e dedicava seu tempo livre a investigar a solidão e o esquecimento.

Através da literatura, também Copi buscava escrever para esquecer de si mesma (novamente Pessoa) e para lembrá-la da solidão de todos — até mesmo dos objetos que a cercavam. Em que medida os seres humanos são similares a produtos descartados, a bens descartáveis e que já não apresentam seus dons de sedução? Renê segue descortinando os segredos de Copi junto com o leitor, a cada foto, a cada poema, a cada texto, a cada continuação da história de ambos, depois de tudo.

As vigas
Obsessões, essas vigas que estruturam a ars poetica, ingredientes que alimentam prosas e poesias por todo o mundo. Fotografia, essa arte que se assemelha à poesia, capturando os detalhes de mínimos instantes de vida. Solidão, o sentimento que pode ser igualmente veneno e remédio, inferno e salvação. Esquecimento, a “limpeza do HD” natural, esse recurso de sobrevivência que permite ao homem recriar o passado, eleger o que e como se lembra do passado, e que o preserva da loucura enquanto apaga o registro de bilhões de segundos em sua memória.

Como a própria Copi afirma no diálogo com Renê:

A fotografia quer capturar um instante, quer aprisionar o tempo, cada clique quer imortalizar um segundo. Mas para quê? Para servir ao ego, claro. Para que possamos ver este instante a hora que quisermos e mostrarmos para quem quisermos. Para dizer: “olha, veja como eu vi este momento”. Para repetir o momento fotografado quantas vezes quiser, é para competir com a vida, ultrapassar a vida. E isso torna a fotografia mais humana ainda, pois ela nasce de um desejo humano de se reproduzir enquanto imagem, de permanecer. (…) E hoje a fotografia é uma espécie de sentido, talvez o sexto ou sétimo sentido, e não é à toa que todos os celulares e os notebooks e qualquer porra vêm com câmeras fotográficas, pois elas tornaram-se indispensáveis: num mundo saturado de informação como o nosso, as fotografias são uma espécie de segunda memória, é para lá que você corre quando quer lembrar os melhores momentos de uma viagem, de seu casamento, de sua família, do fim de semana.

Copi procurava a solidão das coisas como se quisesse justificar que todos sentiam o mesmo abandono, que todos — até o mais prosaico objeto — era capaz de sofrer o mesmo que ela. Fotografava o abandono, de modo que pudesse registrá-lo, fixá-lo, eternizá-lo. E depois escrevia sobre a solidão que podia ver, sobre o abandono que podia sentir no objeto retratado, apontando para os outros o que via também dentro de si mesma: um item abandonado e triste, solto, deslocado, efêmero.

Faceta múltipla
É nesse momento que Carlos Henrique Schroeder exibe sua faceta múltipla, prodigiosa e também mais talentosa: um autor de romance que é capaz de criar sua personagem e depois textos em prosa e poesias que ela escreve, distanciando-se do poeta de voz única que sabe cantar apenas suas próprias dores e seus próprios amores.

Nesse ponto, volto a lembrar de Pessoa, pois Schroeder consegue ser um fingidor de mão cheia. Ele não cria um alter-ego ou ficcionaliza a si próprio para redigir seus poemas, sua atividade criadora é dupla e sobressai uma terceira personagem principal, pode-se assim dizer, a própria solidão. Schroeder não esconde a voz lírica do poema: justamente cria a personagem e depois exibe sua criação, e uma terceira que exsurge dela.

Ainda aqui, é bom que se diga, um romancista não poderia ter feito melhor. À parte de Shakespeare e uns outros poucos na história da literatura ficcional, na regra geral é difícil que romancistas de vocação arvorem-se em criar poesias dentro de seus textos. Até porque poesia não é ficção, e aqui temos uma poesia ficcional, pois o que lemos não é o produto lírico do Carlos Henrique Schroeder, e sim de Copi, sua personagem. Talvez por isso o estranhamento de críticos, que buscam analisar As fantasias eletivas mais como romance do que como poesia.

O livro é um monólito: a história de Copi, vista por Renê, e seu interior, também visto por Renê, mas revelado intacto através das imagens e palavras em sua agenda pessoal.

É bom que se diga que o livro também exibe a obsessão do autor de forma extremamente parcial. Nem sempre a solidão pode ser ruim: às vezes a solidão é o tempo de lucidez que nos resgata da repetição incessante dos dias. Nem sempre o esquecimento pode ser ruim: é vital para o homem que se esqueça e que ficcionalize seu próprio passado, elegendo e fantasiando sobre si próprio e sobre o que o rodeia. Também o abandono é necessário. Sendo o sentimento inverso ao pertencimento, resulta que o prazer do segundo não existiria sem a miséria do primeiro.

De acordo com Fernando Pessoa, escrevemos para esquecer, e escritores múltiplos como Carlos Henrique Schroeder dedicam-se com empenho a esta maneira (hoje não tão fácil como outrora, considerando a internet e a praga das redes) de ignorar, suplantar, substituir, e assim perpetuar a vida.

As fantasias eletivas

Carlos Henrique Schroeder
Record
112 pags.
Carlos Henrique Schroeder
Nasceu em Trombudo Central, em 1975, e radicou-se em Jaraguá do Sul (SC). É romancista, roteirista, crítico literário e editor. Estreou na literatura em 1998 com a novela O publicitário do diabo, tendo lançado desde então: As sepulcrais, Ensaio do vazio, As certezas e as palavras, entre outros. É o idealizador da Feira do Livro de Jaraguá do Sul e do Festival Nacional do Conto. Ganhou diversos prêmios como o Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional (2010), Bolsas Funarte e Petrobrás.
Paula Cajaty

É poeta. Autora de Afrodite in verso.

Rascunho