Sexo, perversões e solidão urbana

Contos de “Parafilias”, de Alexandre Marques Rodrigues, exploram os desvios e anomalias do sexo
Alexandre Marques Rodrigues, autor de “Parafilias “
02/12/2014

Há uma brincadeira correndo pelo Facebook que é mais ou menos assim: num retângulo preto, aparece a palavra “sexo” seguida de uma vírgula, algumas linhas em branco e o esclarecimento de que pouco importa o que possa vir escrito na sequência, pois nossa atenção já estará irremediavelmente fisgada pela palavra inicial. Não há nada na vida mais natural do que o sexo, e mesmo assim basta o tema ser anunciado para despertar de pronto a curiosidade. Portanto, nada mais natural que um livro cujo mote seja o sexo já nasça com alguma vantagem sobre os demais, num espaço cada vez mais apertado para receber a carga crescente de novos lançamentos. Acrescente-se a esse livro algumas peculiaridades que o tornam ainda mais interessante — nele o sexo deixa o território daquilo que se considera normal para entrar noutro bem mais difícil e rico do ponto de vista literário, o dos desvios e anomalias; a obra é assinada por um estreante que tem na biografia um diploma de psicólogo, a fama de leitor voraz e um blog dedicado à literatura; a publicação por uma grande editora faz parte de um prêmio literário, chancela de qualidade à qual pouquíssimas obras têm acesso, ainda mais em se tratando de uma coletânea de contos de autor desconhecido — e pronto: ele se oferece ao leitor de uma forma quase irresistível.

Seria possível discorrer generosamente sobre cada um desses e de vários outros aspectos de Parafilias, de Alexandre Marques Rodrigues, vencedor do Prêmio SESC de Literatura deste ano na categoria Conto, e o assunto não se esgotaria numa simples resenha. E talvez resida aí a maior virtude de uma obra, a de não se esgotar em si mesma, mas continuar oferecendo múltiplas possibilidades de abordagem e discussão para além da última página.

Os prêmios literários, como de resto quaisquer concursos ou festivais de arte, visam essencialmente a dois tipos de reconhecimento: excelência e novidade. À parte toda a subjetividade envolvida nas premiações, ambos são atributos difíceis de ser alcançados num mesmo trabalho. Na falta dessa mescla ideal, é comum a escolha às vezes tender a privilegiar um, às vezes, outro. Não é o caso de Parafilias, um casamento de excelência e novidade que raramente se vê premiado porque raras vezes acontece.

Desvio sexual
No início do livro, vem transcrita a definição dicionarizada da palavra que lhe dá título: o leitor fica de pronto sabendo que “parafilia” é um substantivo feminino, de origem grega, que quer dizer “além ou fora do amor; perversão, desvio sexual”. Esses conceitos são de tal forma amplos que permitem abrigar qualquer coisa que fuja do convencional. E como o convencional nem sempre (ou quase nunca) é sinônimo de natural, principalmente quando se trata de algo tão íntimo e pessoal quanto o sexo, o que alguém considere desvio ou perversão pode noutra visão ser considerado perfeitamente normal. Mas aqui é preciso ter cuidado: assim como a palavra “sexo” exerce esse poder de ímã sobre nossa curiosidade, “perversão” e “desvio sexual” também atraem para si toda a atenção, obscurecendo o que mais esteja ao redor. O conceito de parafilia mais adequado ao contexto do livro é justamente o primeiro da lista, “além ou fora do amor”, que acaba sufocado pelo peso dos demais.

Tome-se o primeiro dos 24 contos, Livros, em que a personagem se excita pedindo que o amante leia para ela os livros do marido. Ou o segundo, Palavras, o caso do escritor que tenta se livrar de um bloqueio criativo elaborando listas de palavras aleatórias, enquanto é obrigado a amar a mulher que o sustenta. Ou o terceiro, Irreversíveis, um belo diálogo com o magistral e crudelíssimo filme Irreversível, de Gaspar Noé, narrado na mesma cronologia invertida e que também traz uma história cuja motivação é explicada pelo próprio título. Avançando um pouco mais, chega-se a Esboços, um dos melhores da coletânea. Nele, o casal de irmãos adolescentes entra sem perceber num perigoso jogo erótico quando ela quer mais uma vez retratá-lo, ele constrangido de posar nu, ela seduzindo-o com sua erudição e buscando desarmar os pudores dele com a história do pintor austríaco Schiele, que também retratou a irmã nua. Esboços serve ainda de ilustração à bem-sucedida estratégia de Rodrigues de sugerir uma coisa para contar outra, um requinte que só a melhor literatura consegue produzir.

Como se pode perceber, o quanto que há de perversão nas histórias até aqui resumidas é algo questionável. E nas demais ela não irá muito além disso. As várias possibilidades de envolvimento sexual — homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher, mulher com transexual — acabam todas no mesmo ponto: a falta do amor para lhes dar um sentido e resgatar seus protagonistas de uma “solidão urbana”, como bem observa Heitor Ferraz Mello no texto da contracapa. Eis aí a verdadeira patologia comum a todos os personagens e a partir da qual se pode vislumbrar uma unidade temática.

Outro conto emblemático é Quartos, em que um camareiro de motel com diploma universitário e fluente no idioma russo vence os intervalos de seu humilhante serviço de limpar a imundície dos outros lendo Tchekhov, Gorki e Dostoievski. A situação, tragicômica por sua bizarrice, vai se adensando à medida que o leitor assiste ao personagem tornar-se uma espécie de voyeur involuntário de toda sorte de desvio, até acabar ele próprio protagonizando um episódio de indiscutível perversão sexual, num desfecho tão cruel que é quase um exercício de erotismo às avessas. Quartos é um exemplo perfeito de como é possível inovar e ao mesmo tempo manter absoluta fidelidade à mais pura tradição do gênero: ele traz uma história bem estruturada e coerente, a despeito de sua esquisitice; nada está ali de graça, mas tudo, até o menor detalhe, se inter-relaciona de forma orgânica e converge para o final; este remete ao começo, dando a ideia de circularidade; o desfecho é aquele soco na boca do estômago de que nos fala Cortázar e já tantas vezes referido; é surpreendente, mas não poderia ser nenhum outro. Dito noutras palavras, uma aula de como se escrever um bom conto.

A orelha vale-se da mesma concisão dos contos para apresentar a obra por outro viés, o do erotismo, e o belo texto de Ronaldo Bressane é mais um convite à leitura. Bressane vê nas narrativas de Parafilias um traço em comum com outras de Hilda Hilst, Sérgio Sant’Anna, Reinaldo Moraes e Rubem Fonseca, uma respeitável galeria: “Os encontros sexuais antecedem ou explicitam um epifania na literatura, na pintura, na música, na filosofia”. Contudo, a frase de Bressane que poderia ter servido de epígrafe ao livro vem um pouco antes e vai certeira ao ponto: “O erotismo é um modo de investigar o mundo”.

Com o texto elegante e bem construído, mas sem se constranger, quando necessário, de baixar o registro até o francamente chulo, Alexandre Marques Rodrigues seduz o leitor sugerindo tudo o que ele quer ver, excita-o com histórias picantes, mostra que a perversão é um conceito elástico e relativo e, no fim, deixa-o atônito ante a profunda e inescapável solidão humana de seus personagens.

Como num melancólico final de uma grande festa.

Parafilias

Alexandre Marques Rodrigues
Record
157 págs.
Alexandre Marques Rodrigues
Nasceu em 1979 em Santos (SP), onde vive. Formado em Psicologia pela Universidade Católica de Santos, mantém desde 2010 o blog Ler até Escrever, no qual registra impressões sobre os muitos livros que lê. Parafilias é seu livro de estreia e foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2014 na categoria Conto.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho