Processos críticos

O legado do programa de estímulo à crítica literária para jovens profissionais talentosos
Ilustração: Ramon Muniz
19/11/2014

Este caderno é um modo de sentir o pulso da experiência crítica fora do espaço acadêmico. O gesto deriva do sucesso de duas das edições do Rumos Itaú Cultural — Literatura, 2007-2008 e 2010-2011, a última, sob minha mediação. Para o programa, o instituto ousou criar um Laboratório online de crítica literária — que resultou nos volumes Protocolos críticos (Iluminuras, 2008) e Deslocamentos críticos (Babel, 2011).

Dentre todos os selecionados para os laboratórios realizados no Rumos Literatura, seis foram convidados a expor suas ideias nas próximas páginas. Eles avançam nus, expondo o que está consubstanciado à sensibilidade analítica de cada qual. Recolhem o legado com posição renovada: nem recusam nem repetem nem enrijecem. Como se apostassem numa inteligência possível no imprevisível dos links.

Andréa Catrópa já apontava redução nessa crítica “sendo confinada aos meios acadêmicos”. Como se aqui já se ouvisse eco perverso, à la Gregório de Matos: Confinada? Finada. A questão vem desde 1945, com a passagem da crítica no rodapé de um periódico ao espaço acadêmico. Quando então se torna uma disciplina, um campo demarcado e defendido. A deriva hegeliana e positivizante ainda vigente pede leis; o método assegura contra delírios interpretativos; mais fácil que o esforço demandado pela atenção rigorosa à imanência do texto. Como toda grande obra tem dimensões fractais — singularidades irredutíveis — nenhuma teoria casa com o real do texto. Ainda assim os tecnicismos teóricos garantiam prestígio com a fetichização desse discurso demarcador. Dessa forma, tanto Andréa quanto Antonio Marcos Pereira apontam o risco de as redes repetirem a falsa garantia dos grupelhos.

A Academia pode ser uma reserva; não deveria ser um exílio. Cabe cobrar a pertinência social de um serviço que dali poderia ser prestado à comunidade leitora. Isso porque, no processo natural, à formação deveria suceder a criação. Portanto, com risco e tudo.

Uma crítica inventiva será sempre uma crítica instável, sujeita a revisões, com mais gozo que angústia, quando se livra desse dever de acerto. Ela parece atenta a não reduzir as multiplicidades latentes a unidades forçadas. A crítica sistemática, carregada de conceitos, permite pouca mobilidade, quase nenhum espaço de descoberta ou imprevisível. Freud reclamando já da monotonia das soluções da vulgata psicanalistas; Marx, em carta a Engel, comentando a pobreza das interpretações dos marxianos daquele momento. Os críticos de agora estão buscando conjugar certa lucidez com alguma leveza. O desafio deles, especialmente no mundo virtual, parece ser encontrar o ponto equidistante entre a mera opinião e a repetição de evidências conceituais anteriores.

Afastar o mofo
Algumas vezes acontece de o imaginário literário preceder o da ciência; já a crítica literária, mais modesta, acompanha esse movimento de adequação de um modo a um tempo. Periodicamente ela se vê instada a se repensar. Assepsia salutar: afasta o mofo do pensamento que se desintegra porque intocado. E então cria diversos ângulos de percepção para tentar apreender o máximo das experiências literárias. Daí os debates, algumas vezes divergentes e frutuosos — e que o virtual incrementou, democratizando. No entanto, os novos críticos estão atentos ao que pode parecer efeito-ameba: aquilo que, nas redes sociais, se multiplica sendo sempre o mesmo. Fazem ponte entre o rigor e a renovação. Talvez findem por desaguar no que Alckmar dos Santos — que mediou o laboratório da edição 2007-2008 do Rumos Literatura — almeja: um debate intelectual. Por certo, isso se opõe ao anterior espaço sitiado de reserva de autoridade.

No momento, o tempo é de perigosa prevalência do mercado sobre a criação; e o mercado pensa o imediato — portanto, precisa que seus produtos sejam maquiados com a etiqueta de singularidade, mas garantidos, todos, por certa uniformização; portanto, vendáveis. Tudo é espetacularizado, diria Santos. Como se esquecêssemos de que o pensamento vê mais — e confiássemos a alma aos olhos. Não é de hoje: Marcel Proust observava que ao mercado tanto faz vender um texto inovador ou um sabonete; como os modelos de nossos smartphones. O igualitarismo, sonhado no campo social, se fez realidade no mercadológico. A crítica literária anterior pretendia prestar um serviço alargando as possibilidades de leitura de um texto. Certo, algumas vezes vinha com tom de tribuno; as teorias de alguns traziam um carregado sotaque teológico com peso de pretensão de certezas; coisas do tempo, aquele. Buscava-se uma excelência que se sobrepunha ao apenas experimental e efêmero. Outros tempos. Por isso o Itaú Cultural — aqui no Rascunho — deu a palavra a esses novos críticos.

Tom autoral
Os novos críticos (novos é aqui menos questão de idade que de atitude) prosseguem com a tarefa porque a crítica acompanha a literatura, como a literatura a vida; uma sem a outra se empobrece. Ela é mais que um epifenômeno da literatura. Os novos meios pedem novos modos — a democratização da palavra crítica nas redes precisou perder o peso analítico-discursivo para desposar um modo argumentativo mais rápido. Requerendo a coragem de um tom autoral. Heloísa Buarque de Hollanda — consultora para essas duas edições do programa — diz acertadamente que a crítica carrega sempre um traço autobiográfico. Erich Auerbach enfrentava magistralmente a questão assumindo sua voz, suas escolhas — que pesquisa anterior embasava bem. E, desde cedo, mostrava a narração literária compondo com o ritmo do cinema. Affonso Ávila sempre demonstrou aguda sensibilidade literária em suas análises abertas, pondo a memória em movimento: inventário e invenção se consorciam. É também o trabalho que faz Heloísa, pondo sua experiência na acolhida de novos talentos. O tom e o tempo são outros, mas a paixão crítica segue. Antonio Marcos Pereira se dá conta disso quando constata que há “mais crítica, e mais espaços, muitos muito leves, improvisados, e heterodoxos”. Mesmo apontando certo modo gauche de alguns críticos no espaço virtual. E esses críticos não temem a vulgata das escolas, redutoras, para definir suas leituras. Pode-se esperar deles uma necessária refundação da crítica? Fica em aberto. Cada crítico põe em questão a própria literatura — e, com sorte, a alarga. Mas a crítica se vê desafiada pelas novas possibilidades narrativas. Vale ler o texto de Cristiane Costa: a função cultural da crítica em apontar a singularidade de um modo de expressão que, porque novo, ainda vai criar seu público. Uma percepção mais linkada com o contemporâneo permite ver a jogada de Amilcar Bettega desde a primeira página do romance Barreira; a sucessão de links aleatórios em Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo Tavares. Rodrigo Almeida chama para a inteligibilidade do processo de criação — os imprevistos fios narrativos. O leitor perde a passividade receptiva anterior e já aguça o olhar por esse quarto só seu, de onde alguém escreve. Machado de Assis continua balizando o caminho, certo; mas importa aqui ver sua recepção na atualidade — é o que traz Victor da Rosa, conjugando recepções. Com a cautela de que a leitura atual é uma percepção, não uma definição: não nega as outras visões.

Pode-se pensar que eles negligenciam as referências? Seria injusto: e justamente porque alargam a liberdade crítica para outros objetos: Hilary Kaplan dá uma densidade mais vivencial — quase visceral, até — chamando a consciência crítica a responder pela natureza imediata, na abordagem da ecocrítica. Na literatura a natureza está à distância, para ser contemplada. Essa nova via convoca a uma responsabilidade face ao conjunto dos seres vivos. Há sempre aposta nessa paixão crítica — mas o saldo pode ser muito positivo.

Assim, a função crítica continua, entre palpites, paixões e proficiências. No futebol, a cada jogo todo torcedor se arvora em árbitro; mas sempre se crê que o juiz armou de conhecimentos técnicos sua vulnerabilidade. Os textos teóricos deixam visíveis certas folgas, como se diz de um mecanismo não bem ajustado. Mas aqui é um valor: um pensamento móvel é mais vivo. Um tom de experimentação prima sobre a experiência. Mas já a inteligência analítica se faz presente. Andréa Catrópa ou Antonio Marcos Pereira não se deslumbram, antes, dessacralizam a liberdade aparente do espaço virtual; por ser mais rico em recursos não dispensa postura mais reflexiva: pensar em uma reação crítica que se lançasse na aventura de responder criativamente às características dos meios digitais. Esses novos críticos caminham para um ponto meridiano: uma reflexão própria, sem temor das sombras; e a construção de uma exigência que conjugue lucidez e leveza. Um bom desafio. Façam suas apostas.

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Lourival Holanda

É crítico literário, autor de Sob o signo do silêncio e Fato e fábula. Trabalha na Universidade Federal de Pernambuco.

Rascunho