Poesia e pensamento

Fragmentos do Narciso expõe o diálogo entre apuro estético e reflexão crítica na poesia de Paul Valéry
Paul Valéry, autor de “Fragmentos do Narciso e outros poemas”
06/01/2014

Paul Valéry, herdeiro de Mallarmé, passou a ser considerado um mestre do simbolismo com a publicação de La jeune Parque, em 1917. Mas sua obra alçou-o além, para entre os maiores poetas franceses do século 20. O exercício poético de Valéry, que se inicia com alguns poemas publicados na revista simbolista La Conque, por volta de 1896, e segue com leituras de Charles Baudelaire, Edgar Allan Poe e Huysmans, já assinala seu complexo percurso de escritura e reflexão sobre a poesia.

Seus Cadernos — um total de 261 volumes, somando mais de 26 mil páginas — podem ser considerados um verdadeiro laboratório — “laboratório íntimo do espírito” — para inúmeras reflexões filosóficas, estéticas, religiosas e antropológicas. Neles é possível adentrar em uma perene e densa pesquisa que motivou reflexões e incursões do poeta em diferentes áreas. Todo esse material de anotações, precioso para quem trabalha com a poesia (mas não só), deu origem a vários volumes ensaísticos.

Daí que Valéry congrega a polivalência das figuras do pensador e do poeta. Aqui, sim, poesia é pensamento, é conhecimento, é um processo cognitivo e estético. Esse exercício poético atrai Valéry: há um jogo difícil, enigmático, que se apresenta por si só como um estímulo e um desafio. Justamente por isso ele faz reverberar e multiplica os vínculos métricos, as aliterações, as assonâncias. Em La jeune Parque, o leitor se depara com um progressivo acordar da autoconsciência em luta contra o apelo aos sentidos; o tema da vida e da morte, importante em toda a sua obra, pode ser lido em Le cimetière marin (1920). O “drama da inteligência”, com todo seu esforço de conhecimento — das esperanças e esperas até as tentações da ciência e da autoconsciência — permeia sua obra mais famosa, Charmes (1922), carmina em latim, aludindo assim à poesia como encantamento e fascinação.

A relação conflituosa e complexa entre existência e conhecimento, entre o eu e o mundo, perpassa, de algum modo, toda a sua produção, inclusive os textos teatrais publicados postumamente: Mon Faust e Le solitaire. Talvez uma frase do discurso feito em homenagem a Goethe possa definir, ainda que falando de um outro, a própria poesia de Valéry: “Um poema deve ser uma festa do intelecto”.

O encontro com o texto de Paul Valéry não é fácil. Há um embate a ser travado e o leitor é desafiado a uma “meditação teórica” — que não tira em momento algum, no entanto, o prazer estético da leitura —: poesia e reflexão crítica estão imbricadas e formam uma grande trama em seus versos, como aponta Júlio Castañon Guimarães na introdução de Fragmentos de Narciso.

Isto se verifica tanto nos numerosos rascunhos dos poemas — documentos de extrema importância para o conhecimento da produção de Valéry — quanto de modo especial no universo de seus cadernos de anotações, os Cahiers, algumas milhares de folhas em que ao longo de dezenas de anos fez diariamente anotações dos mais variados tipos […].

São apontamentos diversos sobre o “funcionamento do espírito” — ou melhor, sobre seu “pensamento”.

O modo de escrever e pensar de Valéry coloca suas anotações, mesmo consideradas as diferenças, lado a lado com os fragmentos de Novalis e das célebres páginas do Zibaldone de Giacomo Leopardi. Há uma espécie de subterrânea cumplicidade, mesmo na diferença, que enfatiza e aposta na função cognoscitiva do discurso literário. Todos eles — Valéry, Novalis e Leopardi — são conscientes de que o processo de “formação” e “apreensão” da realidade só pode ser concretizado mediante a deformação dessa mesma realidade.

Disciplina espiritual
A edição bilíngüe de Fragmentos do Narciso e outros poemas faz parte da coleção de poesia da Ateliê Editorial, que já publicou, entre outros, Giuseppe Ungaretti, Guillaume Apollinaire, Annalisa Cima e Paulo Franchetti, com cuidadoso projeto gráfico. Fragmentos do Narciso é o poema que abre a coletânea, seguido por outras nove composições — Helena, Adormecida no bosque, O bosque amigo, As vãs dançarinas, Narciso fala, Episódio, Verão, Ária de Semíramis e Palma — que pertencem originalmente a dois livros: Album de vers anciens e o já mencionado Charmes. Para entender melhor a trajetória de alguns desses poemas — às vezes publicados inicialmente em revistas literárias, em seguida no formato de livro e ainda em diferentes coletâneas —, as Anotações prévias do tradutor são fundamentais. De fato, ele consegue estabelecer uma série de redes e enlaces dentro da própria obra poética de Valéry, e sugere pistas, “notas prévias”, para um possível “encontro”.

A reflexão sobre o homem, seu corpo também como fonte inesgotável de estudo — não se deve esquecer uma das primeiras publicações do poeta francês, dedicada ao método de Leonardo da Vinci —, desagua no que se denominou “seu narciso”. Como analisa Giuseppe Ungaretti, em 1925, escrever, para Valéry, não é um fim; é um meio de suprema disciplina espiritual, daí o uso das formas mais fechadas, as recorrências à tradição mais “rígida”, a obstinação em dominar a matéria mais hostil — um diálogo dramático que é encenado entre o ser e o conhecer. Para Ungaretti, poeta também hermético, Valéry emprega coragem para se debater com uma infinidade de recursos e de efeitos da palavra, de que podemos “ter um gostinho” através desses dez poemas tão bem traduzidos por Júlio Castañon Guimarães. A visão ungarettiana segue em consonância com as palavras de Eliot, quando este afirma que Paul Valéry ficará como o símbolo do poeta da primeira metade do século 20, mais do que Yeats ou Rilke.

O primeiro poema da coletânea trata de um tema bastante caro a Valéry, e que o acompanha por quase quarenta anos. Este fragmento é uma das suas poesias mais antigas, em cujos versos é colocada a dissimulação do trágico na consciência humana, que, por sua vez, o interroga:

[…]
Até os segredos dessa fonte que arrefece…
Até os segredos que me aflige desvendar,
Até o imo do amor de si sem mais recamo.
Nada pode ao silêncio da noite escapar…
A noite em minha pele sopra que eu a amo.
Sua voz suave a meus votos teme consentir;
Sob a brisa ela mal e mal chega a mentir,
Tanto e tanto o fremir de seu tácito templo
Do expansivo silêncio é o negativo exemplo.

Em 1945, a temática do narciso, revisitada por muitos autores e pintores, é retomada em L’ange. Aqui, Narciso não é mais um Narciso; o Homem que se conhece chora por não conseguir entender a si mesmo. Resta a pergunta: como entender algo que não é mortal?

Fragmentos do Narciso e outros poemas
Paul Valéry
Trad.: Júlio Castañon Guimarães
Ateliê
128 págs.
Paul Valéry (1871-1945)
É um dos grandes autores franceses do século 20. Além da produção poética, é celebrado também pelos escritos ensaísticos. Algumas de suas obras em prosa são Cahiers (1957-61), o ensaio Introduction à la méthode de Léonard de Vinci (1895) e o conto La soirée avec Monsieur Teste (1896), cujo personagem é um alter ego narcisista do autor. Na poesia, destacam-se Album de vers anciens (1920), que reúne poemas de seu período simbolista, e Charmes (1922), considerada sua obra-prima.
Patricia Peterle

É professora de literatura na UFSC.

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