Partícula da realidade

“Quinquilharias e recordações” mostra o contexto histórico em que nasceu e cresceu a polonesa Wislawa Szymborska, ganhadora do Nobel de Literatura
A poeta Wislawa Szymborska recebeu o Nobel de Literatura em 1996
01/11/2020

Em 1997, as jornalistas polonesas Anna Bikont e Joanna Szczesna empreenderam um projeto quase impossível: escrever a biografia de Wislawa Szymborska (pronuncia-se Vissuáva Chembórska), que não gostava de intromissões. Por sorte a poeta que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1996 não era exatamente uma reclusa. Tinha muitos amigos que ficariam muito felizes em colaborar. Relutante, Szymborska também concordou em dar algumas entrevistas às jornalistas e o resultado foi bem recebido.

Em 2012, pouco depois da morte de Szymborska, as mesmas jornalistas lançaram uma nova edição da biografia, incluindo muitos poemas e entrevistas com amigos que se mostraram empenhados em contribuir ainda mais para a imagem simpática da autora. O livro trouxe fotos desconhecidas do público, não só da biografada como de seus pais, avós e até bisavó. Fatos, opiniões, poemas e fotos juntos formam uma imagem reconhecível e detalhada. O que se vê é uma mulher forte e delicada, elegante e despojada, de uma franqueza desconcertante, mas dona de um armário onde memórias jazem bem trancadas.

Quando Anna Bikont decidiu escrever a biografia de uma vencedora do Nobel, ela já era uma jornalista de renome. Entre 1982 e 1989, ainda sob domínio soviético, foi fundadora e editora do semanário underground mais importante da Polônia. Depois da queda do muro de Berlim, seu prestígio aumentou. Publicou sete livros e recebeu vários prêmios jornalísticos, inclusive o Nike Award, espécie de Pulitzer da Polônia, pela obra O crime e o silêncio: confrontando o massacre dos judeus em Jedwabne, 1941 (ainda não traduzido para o português). O livro, premiado em vários países, aborda um tema tabu na Polônia: o papel dos poloneses no plano nazista de extermínio. Bikont conhece a fundo o contexto histórico em que Szymborska nasceu e cresceu.

O título Quinquilharias e recordações reflete muito bem o produto final. Szymborska colecionava quinquilharias, mas sem método e sem apego; mais cedo ou mais tarde desfazia-se desse ou daquele objeto. Da mesma maneira selecionava o que deveria se lembrar, fosse nas entrevistas, fosse nos poemas:

Percebi que toda essa minha história é desprovida de dramaticidade […] sobre os assuntos pessoais eu não quero falar, e também não gostaria que os outros falassem.

Então para que serve saber os detalhes da vida de um grande autor? Segundo a biografada, para nada. Ela atribuía essa curiosidade à bisbilhotice alheia, ou pior, à malícia. Mas há um lado perfeitamente confessável nessa busca: as águas históricas nas quais flutuou, nadou ou quase se afogou podem iluminar camadas de sentido insuspeitas em sua poesia. É isso, até certo ponto, que essa biografia empenha-se em fazer.

Invasão nazista
Wislawa Szymborska nasceu em 1923, em Kornik, mas quando tinha cinco anos a família mudou-se para Cracóvia, mais cosmopolita e de intensa vida cultural. Cresceu em um elegante casarão, próximo ao Castelo de Wawel e ao Jardim Botânico. Teve uma infância feliz com a irmã, amigas de escola, piano, babás e contos de fadas. Mas principalmente com o pai. Conforme o relato de Bikont e Szczesna, Wincenty Szymborski foi a primeira e mais duradoura influência de Wislawa. Era muito respeitado como administrador das propriedades de um conde, inclusive por seu patriotismo antissemita — que agora, passados 100 anos, novamente lhe renderia boas chances na política. Por outro lado, incentivou a criatividade da pequena Wislawa ao pagar-lhe 20 centavos por seus versinhos, com uma exigência: nada de confidências, nada de lamentos. Essa exigência revelou-se uma das marcas estilísticas de Szymborska.

Até 1941 a vida da garota transcorreu sem grandes sobressaltos e sem muito a lamentar, exceto pelo fato de precisar terminar seu ensino médio em uma escola clandestina devido às restrições impostas pelo nazismo. A Segunda Guerra Mundial havia começado quase dois anos antes exatamente com a invasão da Polônia em setembro de 1939, nazistas pela fronteira ocidental e comunistas pela oriental. Após poucas semanas o país fora dividido conforme o Pacto Ribbentrop-Molotov. Mas na biografia não há registro de suas memórias daqueles tempos. Os alemães residentes na Polônia recebiam 2,3 mil calorias por dia; os poloneses recebiam 650 e os judeus, 180. O câmbio negro era a alternativa, mas incorria em enorme risco. Mesmo no conforto do casarão à Rua Radziwillowska, é difícil imaginar que nada disso ficasse gravado na memória. Sobre o que se passava em Cracóvia durante a guerra, lembrava-se pouquíssimo. Relata que:

…no verão de 1943, só se saía na rua em caso de necessidade. Acabara o mito da Cracóvia tranquila. Foi talvez o pior ano, tratando-se das batidas policiais nas ruas, das revistas e perseguições.

EssaCracóvia tranquila” já não existia havia anos. Uma frase neste livro revela muito naquilo que esconde: “Em 1943 ingressou na indústria ferroviária para escapar da deportação e trabalhos forçados na Alemanha”. A grande maioria da população não judia não estava ameaçada de deportação porque Cracóvia era a capital do Generalgouvernement nazista, e precisava continuar a funcionar. A indústria ferroviária, especialmente, onde Szymborska foi trabalhar, era a coluna vertebral da infame “solução final”, plano definido em 1942 para o extermínio dos judeus. Dificilmente haveria possibilidade de escolher emprego, mas tratando-se de alguém de tal sensibilidade é de se esperar algum registro, algum fiapo de memória daquilo que um funcionário dessa indústria teria visto e ouvido. Nem confidências, nem lamentos, só silêncio.

O que se vê é uma mulher forte e delicada, elegante e despojada, de uma franqueza desconcertante, mas dona de um armário onde memórias jazem bem trancadas.

Massacre
E se não há indício de seu sofrimento, em sua memória da Guerra também não há judeus. Numericamente, se não por outros motivos, é difícil de entender essa ausência. Em 1939, véspera da Guerra, em Cracóvia os judeus eram uma quarta parte da população, cerca de 60 mil pessoas. Estavam representados em todos os setores de atividade, especialmente na ciência e cultura. Em 1941, os 15 mil que ainda não haviam sido expulsos da cidade foram obrigados a mudar-se para o gueto, murado, localizado na periferia. Ou seja, uma em cada quatro pessoas de Cracóvia que Szymborska conhecia desapareceu. Se isso não bastasse, em junho de 1942, 11 mil judeus foram escoltados a pé por um destacamento até a Praça Zgody e dali à estação ferroviária de Prokocim, de onde seguiram para Belzec, um dos campos de extermínio. Em 1943, os que ainda restavam no gueto foram deportados para Auschwitz ou assassinados ali mesmo por trawniki, voluntários poloneses e russos, considerados pelos alemães como etnicamente sub-humanos, untermenschen, mas úteis. E depois disso, ainda seria impossível ignorar as colunas de fumaça do incêndio que durou alguns dias, destinado a liquidar os 320 edifícios do gueto.

Com certeza Wislawa nada poderia fazer para impedir nem minorar essa catástrofe, mas obliterá-la da memória é injustificável. Os heróis, ao menos, não podem ser esquecidos. Um vizinho seu, alemão estabelecido em Cracóvia, Oskar Schindler, arriscou sua vida e a de sua família para salvar 1.200 judeus, dando-lhes trabalho e acolhendo-os em sua fábrica durante o incêndio do gueto. O que Szymborska viu, não sabemos, mas tudo que relatou em sua biografia foi:

Lembro-me deles retirando a neve das ruas com aqueles distintivos nas mangas.

Domínio soviético
Terminada a Guerra, a Polônia passou ao domínio soviético. A vida não melhorou. O reino de terror de Stalin já completava três décadas, os experimentos sociais estavam falidos mas o controle, até do pensamento, ia muito bem. Em 1949, quando um livro de Szymborska foi rejeitado para publicação por não satisfazer as exigências panfletárias, ela se filiou ao Partido Operário e passou a militar pelo comunismo. É fácil imaginar que, após o nazismo, o comunismo parecesse a salvação. Seu próximo livro foi aprovado para publicação, o que lhe permitiu ser aceita na União dos Literatos Poloneses. Estava casada com o escritor Adam Wlodek, de quem iria se divorciar em 1956, mas cuja amizade continuaria até a morte de Wlodek. Viviam em uma residência literária, compartilhada com vários outros escritores.

Eles mesmos sabiam que essas residências literárias tinham também a função de manter a intelligentsia sob vigilância, mas alimentavam-se intelectualmente dessa convivência. Não sabiam muito sobre a miséria e repressão que assolava a maior parte da União Soviética, eram jovens, idealistas e facilmente manipulados pelo sistema. Isso é bem explicado por Arthur Koestler, jornalista húngaro-britânico que havia se filiado ao Partido Comunista em 1931, mas mais tarde desiludiu-se e renunciou:

Era uma época do movimento mundial pela defesa da paz, que conseguiu — sob o estandarte da pomba de Picasso — convencer milhões de pessoas de que a paz no mundo só poderia ser instaurada com a ajuda da cortina de ferro, dos campos minados e dos arames farpados.

Neste período, o engajamento claramente comprometia a qualidade literária que renderia o Nobel a Szymborska. Para nossa sorte, a convicção política nunca foi seu forte e ela tinha consciência disso. A poeta dizia que a partir de 1956, após seus primeiros dois livros, já não escreveu nenhum poema do qual teria de se envergonhar e que depois não pudesse publicar. A reabilitação póstuma de Laszlo Rajk com certeza foi um choque de realidade com o comunismo.

Nascido em 1909 na Hungria, Rajk era um político comunista muito popular; chegou a Ministro de Estado e organizou a Autoridade de Proteção do Estado, a protoKGB húngara. Em 1949, vítima de sua própria polícia secreta, foi julgado em um falso processo e executado como “espião de Tito”. Iniciou-se uma perseguição sistemática aos membros da intelligentsia que em poucos anos gerou insatisfação suficiente para obrigar a reabilitação do nome de Laszlo Rajk. Em março de 1956 seu corpo foi exumado e novamente enterrado perante uma multidão de 100 mil húngaros. Poucos meses depois insurgiram-se na Revolução de Outubro. As imagens de Budapeste, com estudantes em pé sobre um tanque soviético, felizes alçando a bandeira da Hungria foram vistas no mundo todo.

Reconhecimento
Em 1957 Adam Wlodek, ex-marido de Szymborska, revoltado com o sistema que havia defendido, desligou-se do Partido. Ela mesma retraiu-se da cena política até onde pôde, mas só iria devolver a carteira do Partido dez anos mais tarde, quando o filósofo Leszek Kolakowski, uma das figuras mais respeitadas na cultura polonesa, foi expulso da Universidade e exilado por criticar o marxismo e o comunismo. Em Oxford, continuou a ser lido e ouvido na Polônia. Foi o inspirador do Movimento Solidariedade, que nos anos 1980 iria contribuir para a queda da União Soviética. Para o leitor pouco familiarizado com os eventos que culminaram com a queda do muro de Berlim, a biografia pode dar a impressão que esses dissidentes afetaram apenas um círculo limitado de intelectuais, mas a verdade é que esses atos tiveram o efeito de uma pedra que fura a superfície de um lago.

Deixar o Partido custou a Szymborska o cargo de editora de poesia da revista Vida Literária. Mas já era uma poeta reconhecida por seu estilo. A linguagem é coloquial, pretensamente simples, a poesia é densa e sofisticada. Isso explica porque entre seus leitores estão acadêmicos sexagenários e adolescentes plugados. Era uma poeta intelectual mas não indecifrável demais a ponto de impedir que seus poemas fossem incluídos em currículos escolares. Foi traduzida para dezenas de idiomas, conhecida até entre aqueles para quem ler poesia não é um hábito. Utilizava paradoxos, contradições, ingenuidade e moderação, mas, perpassando tudo, o humor — essa grande tristeza que consegue perceber as coisas engraçadas.

Foi essa a força que em 1991 rendeu-lhe o Prêmio Goethe — cujos laureados anteriores foram, entre outros, Sigmund Freud, Karl Jaspers, Hermann Hesse e Thomas Mann — e, em 1996, o Nobel. Ao anunciar o prêmio, a Academia Sueca declarou que “sua poesia, com precisão e ironia, permite que o contexto histórico e biológico se iluminem em fragmentos de realidade humana”.

Relações interpessoais
Se Szymborska tinha dificuldades em lidar com conflitos ideológicos, nas relações interpessoais ela foi brilhante. Amigos eram para a vida toda. A união com o grande poeta Kornel Filipowicz, o amor de sua vida, durou até a morte dele. Era uma mulher austera, que se divertia fazendo limeriques com os amigos, enviando-lhes cartões postais que eram colagens criadas por ela mesma, colecionando as tais quinquilharias e fotos suas tiradas próximas a placas de sinalização. Sua vida era feita de pequenas coisas. A poesia poderia estar até em um guarda-chuva, como se vê nos versos de O dia de amanhã — sem nós, presentes no livro Dois pontos (2005):

Espera-se que a manhã seja fria e enevoada.
Do oeste,
nuvens de chuva começarão a se deslocar.
A visibilidade será fraca.
As estradas escorregadias.
[…]
O dia de amanhã
promete ser ensolarado,
embora, para os ainda vivos,
seja útil um guarda-chuva.

Escrever poesia, a seu ver, era um exercício de retorno ao primitivo em nós mesmos:

O poeta pode ter completado sete faculdades — no momento em que se senta para escrever, o uniforme do racionalismo começa a apertar nas axilas. Ele se remexe todo e bufa, desabotoa botão por botão, até que por fim salta da sua roupinha, revelando-se para todo mundo como um selvagem nu com uma argola no nariz. Sim, um selvagem, pois como é que podemos chamar uma pessoa que conversa com os mortos e não nascidos, com as árvores, os pássaros e até com o lustre e a perna da mesa.

Os temas eram profundos e filosóficos, infinitas perguntas com muitas respostas, ou nenhuma. A escrita era sujeitada a uma autocrítica tenaz. Sua obra completa não chega a 350 poemas distribuídos em menos de 20 livros. Quando lhe perguntavam por que publicou tão pouco, respondia que a lata de lixo é o melhor amigo do poeta. Sabia que o poema só iria germinar se respeitado seu tempo de latência, e ainda que o “poema escrito na primavera não necessariamente resiste à prova de outono”.

Ela conservou esse espírito jovem até seus últimos dias. Em novembro de 2011, já com quase 90 anos, assinou o apelo pela mudança mundial na política das drogas: “Hora de descriminalização, tratamento e profilaxia”, junto com Mario Vargas Llosa, Yoko Ono, Sting e Lech Wałęsa, entre outros. Despediu-se de seu grande amor discretamente, em dois poemas. Temia a própria morte, mas mesmo aí havia espaço para um humor delicado. Faleceu em fevereiro de 2012. Sua maior lição? “A criação consiste em arrancar uma partícula da realidade”.

Quinquilharias e recordações
Anna Bikont e Joanna Szczesna
Trad.: Eneida Favre
Âyiné
560 págs.
[para o meu coração num domingo]
Wislawa Szymborska
Trad.: Regina Przybycien e Gabriel Borowski
Companhia das Letras
337 págs.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho