Os superpoderes da palavra

"Shazam!" se apropria de símbolos do imaginário para enfatizar a fragilidade humana
Jorge Viveiros de Castro, autor de “Shazam!”
01/07/2012

Mário de Andrade, ainda no início do século passado, introduzia Vestida de preto, de Contos novos, com a seguinte ressalva: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade”. No seu quase-romance De todas as únicas maneiras & outras, Jorge Viveiros de Castro manifesta a mesma (des)preocupação, quase um século depois: “Não parece exatamente um livro de contos, mas também pode-se dizer que sim. Fica por conta do leitor descobrir o que seja”. Em determinado momento da modernidade, o gênero do texto passou a assumir um caráter secundário na leitura e era delegado ao próprio leitor defini-lo.

Hoje, o leitor é chamado a, se não descobrir um enigma, rever as velhas expectativas para admitir novas possibilidades de narrar: “Às vezes basta apenas descobrir qual a palavra mágica, e — shazam! — revela-se num raio a chave de todos os abracadabras”. Outras vezes, a palavra mágica, por si só, não dá conta de um universo tão complexo. Se o poder da palavra ainda sobrevive no desejo de dizer e modificar o mundo, a precariedade de seus sentidos golpeou suas utopias de totalidade. O poder mágico da palavra não se encontra mais num sentido único, é preciso ouvir nesse “silêncio contido, todas as canções, e frases e acontecimentos e histórias, todas as combinações de possibilidades e todos os universos paralelos ou alternativos, reais e imaginários, que puderem ser narrados”.

Homens e deuses
Shazam!, de Jorge Viveiros de Castro, também nos apresenta este desafio. É uma coletânea de textos curtos, aparentemente independentes entre si, cujos personagens são velhos conhecidos do nosso imaginário midiático e popular, que perpassa inúmeras gerações: os super-heróis. Em suas 11 partes distintas, anunciadas por subtítulos sugestivos, os personagens são apresentados, mantendo suas características já fixadas no imaginário ficcional, estas acrescidas de outros ou novos aspectos que enfatizam sua fragilidade humana, demasiada humana.

O poderoso Super-Homem, único sobrevivente de seu planeta, “no fundo do espelho, ao despir sua fantasia, vai encontrar apenas o tímido e desajeitado personagem que inventou para dar conta de si mesmo, a única pessoa do universo que ninguém poderá salvar”. Mordido por uma aranha radioativa, o jovem Peter Parker ganha superpoderes. Tece acasos numa energia criativa frente ao inesperado, mas não consegue salvar a amada. Isto significa, na onipotência de um super-herói, nenhuma capacidade de aceitar ou lidar com o inexorável. Ou seja, “a culpa atravessa sua alma”. Namor “vive no eterno movimento das ondas o sentimento” de um amor impossível “que flutua oculto nos abismos marinhos por onde vaga, sem rumo, o príncipe desencantado”.

Batman bravamente luta, “sua arma é o medo, fantasiado de morcego. Conhece os mistérios do terror e da loucura, e tenta resistir a eles”. Até quando sua carta na manga vai sobreviver ao blefe? Quem vai suspeitar que o Homem de Ferro possui como fraqueza, nada mais, nada menos, do que um “coração em descompasso… por trás de um mundo falso feito de glamour e álcool”? O Demolidor, ágil e atento a todos os perigos, “cego de paixão, não sabe o que o espera”. Como Batman, conta, como campo privilegiado de luta, com as trevas. Um Quarteto Fantástico também entra em cena, e três homens poderosos são acolhidos “numa redoma protetora, transparente, indevassável” pela Mulher Invisível. Um “talentoso” cientista traz em si uma fera destruidora, não só de tudo o que toca como também de sua tão prezada reputação e racionalidade. O incrível Hulk é refém de sua própria força. E, por fim, um alado ser mutante — anunciando tantos outros, com poderes diversos e destinos atravessados por acasos e maldições —, revestido da poesia nossa de cada dia, aponta o dedo sobre a ferida aberta de nossa heróica humanidade. A solidão atinge tanto o lado excepcional dos deuses quanto o tão vulnerável e frágil da condição humana e mortal.

Profusão de sentidos
A leitura de Shazam! pode nos fazer repensar velhos dogmas. O autor explicita seu projeto como “uma tentativa de algo musical, na composição”. Cada fragmento cabe em si como um breve poema em prosa. Digamos que seja correspondente na música a uma variação de um mesmo tema. Esta tentativa de algo musical acontece tanto em Shazam! quanto em De todas as únicas maneiras & outras.

Este último tematiza o amor através de fragmentos de um discurso amoroso. Diferentemente do narrador de Roland Barthes, que usava discursos de outros amantes célebres para falar de seus amores e suas dores, parece que o narrador de Jorge Viveiros de Castro busca a própria voz em tamanha profusão de sentidos que por vezes chega a sua mais completa ausência: a “ausência de uma presença”. Uma “Ela” tão forte e inatingível serve de contraponto para a construção instável desse sujeito. Ela, sem nome, perpassa todos os fragmentos poéticos num presente narrativo sustentado pela banalidade mais simples do cotidiano.

Em Shazam!, o homem e seus super-heróis e anti-heróis são a mistura visceral de deuses e mortais. Hoje transformados pela sociedade do espetáculo em mitos modernos e contemporâneos. Para alguns são invenção de manipuladores de um povo inocente; para outros, necessidade desse povo, não tão inocente assim, de explicar o inexplicável, de ler o ilegível, de dar voz ao indizível. Seja qual for a posição crítica que se assuma nessa velha questão, é bom lembrar da discussão de Michel de Certeau em A invenção do cotidiano. O historiador acredita que o importante é o “uso que os meios ‘populares’ fazem das culturas difundidas e impostas pelas ‘elites’ produtoras da linguagem”. Seus estudos apontam que a recepção desses produtos culturais se reapropria de alguns sentidos difundidos, ressemantizando-os conforme necessidades próprias, não controladas pelo sistema ao qual está submetida.

Shazam!
Jorge Viveiros de Castro
7Letras
80 págs.
Jorge Viveiros de Castro
É carioca, nascido em 1967. Trabalhou como jornalista e livreiro antes de abrir sua própria editora, a 7Letras. Além de Shazam!, é autor do livro de contos De todas as únicas maneiras & outras histórias.
Vilma Costa

É professora de literatura.

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