Os (muitos) tipos iranianos

Em "Nós e eles" e "O alforje", Bahiyyih Nakhjavani faz uma sátira do Irã e apresenta personagens estereotipados em permanente conflito
Bahiyyih Nakhjavani, autora de “O alforje”
28/02/2021

Imperturbável leitor, imagine-se ouvindo uma história contada por mais de um narrador, todos escondidos atrás de uma cortina, vozes iguais, constante alternância. Duas opções: história muito simples ou generalidades sobre temas atuais. Imigrações, por exemplo. Nós e eles, de Bahiyyih Nakhjavani, é um pouco de cada possibilidade, tangencia o vaudeville. Escapa pelo detalhe de os acontecimentos manterem relação direta. Mesmo assim a confusão é inevitável.

Um livro de peripécias, de estratagemas, todas destinadas a não facilitar a vida do leitor. A autora gasta 300 páginas para falar do Irã e dos iranianos que surgem no decorrer da história com relativa frequência. Nessas ocasiões, o tom jocoso é predominante.

Nós e eles é narrado por eles e também apresenta personagens sem identificação, excetuando a balbúrdia, tudo irrelevante; o importante é acompanhar a história de uma família iraniana: mãe octogenária e suas duas filhas, além de todos ranços familiares. Goli vive nos Estados Unidos, na França está a outra, Lili. O patriarca é morto. Essas filhas, após muita pressão, conseguem convencer Bibijan a deixar Teerã e seguir para Los Angeles, lugar de grande comunidade iraniana. Goli, a filha mais velha, vive na cidade com sua família, que se considera mais americana que os próprios americanos.

Bibijan, vive com o objetivo único de saber o paradeiro de seu filho Ali, desaparecido misteriosamente nas montanhas curdas. Ela relutou o quanto pôde em deixar o Irã, pois mantinha acesa a expectativa do retorno do herdeiro.

O livro é uma sátira divertida sobre viver no exílio, tão divertida quanto observar o ambiente de uma feira livre, pela primeira vez, onde vendedores anunciam seus produtos em voz alta e todos ao mesmo tempo. A diversão acaba quando o inusitado se torna repetição.

São diversos narradores, não identificados, em cidades diferentes. O que mais fazem é emitir opiniões sobre o Irã e iranianos que eventualmente encontram, mas sempre pela ótica depreciativa — faz lembrar a comunidade cubana em Miami. O choque sofrido por Bibijan ao perceber a adaptação de sua gente ao american way of life obriga a velha a refletir sobre aquela sociedade ocidental e, dessa maneira, o leitor recebe algumas informações sobre o Irã — os contrastes garantindo o exotismo e cativando. Mas nada capaz de enaltecer o país ou seus filhos. Somos informados sobre sua excessiva cortesia e sua preocupação constante em não ser inconveniente, sem deixar de revelar a hipocrisia que cerca as relações familiares.

Coloque uma família brasileira no lugar da iraniana: onde temos o véu encontraríamos as sandálias havaianas, o chope substituiria o chá, e ainda precisaríamos arranjar páginas para o futebol, o samba, e o cartão de visita do país — a modelo Calipígia e bronzeada, de preferência rebolando em pleno Carnaval na Sapucaí. Resumo: o chassi é o mesmo, os detalhes diferem os modelos. A autora oferece uma sátira sobre uma comunidade iraniana fora de seu país. Parece não ter intenção em disfarçar a nostalgia, tampouco desprezo.

Personagens
O estereótipo ronda todos personagens. As filhas que não querem cuidar da mãe, a discussão sobre quem ficará com o fardo; os homens sempre dedicados à corrupção, golpes, tudo em nome do dinheiro.

O leitor “encontra” iranianos dispersos por vários continentes e geralmente enfrentando “grandes” questões, como, por exemplo, o divórcio, o chá, a escolha de uma cabeleireira. O mérito da autora está em aproximar os personagens do leitor, sejam eles cordatos, sonhadores, ingênuos, arrogantes ou, de vez em quando, subversivos. Personagens aparecem e desaparecem ao longo da narrativa, de alguns sequer são informados nome ou características físicas, o que importa é conceder-lhes o estereótipo de modo a permitir sua identificação — como iranianos, é óbvio, e em qualquer canto do mundo: Los Angeles, Perth e Paris são alguns exemplos apontados por Bahiyyih Nakhjavani.

Importante destacar que alguns personagens, mesmo estereotipados — insisto —, deixam bem nítido seu olhar sobre o mundo que os recebeu, mas sem esquecer sua pátria, de onde alguns saíram devido à perseguição na época da Revolução. Personagens em permanente conflito, orgulhosos de sua origem e ao mesmo tempo ansiosos por serem aceitos pela sociedade ocidental.

O melhor exemplo vem de Goli, que refaz nariz e seios na expectativa de receber olhares outros que não os de estranheza, os mesmos que a classificam como intrusa. Urge ser assimilada pelo american way of life, sentir-se parte, pertencer, sem dúvida alguma, àquele lugar. Como? Mudando o exterior e escondendo a origem. Enquanto isso, nos bastidores, rezam voltados para a Meca.

A religião é outro assunto abordado em Nós e eles. Na mente do imigrante, para ser aceito, se faz necessário negar costumes, esquecer origens, abjurar a religião — externamente, pelo menos. A sociedade de aparências é hábito de países periféricos, até mesmo daqueles que não se consideram como tal. Importante enganar os outros quando necessário, a si mesmo permanentemente.

Condição humana
Em O alforje, a forma é outra, mas não muda muito. Misto de aventura e misticismo farto em golpes, artimanhas, na história é praticamente obrigatório enganar alguém, o conflito tradição/aparências é mais uma vez abordado. Não importa se sacerdote, ladrão, líder, cambista, todos têm compromisso com o ilícito.

A história do livro se repete nove vezes sob perspectivas de diferentes personagens, todos ligados pelo alforje. Tudo transcorre durante a travessia do deserto, da Meca a Medina, por uma caravana que leva uma noiva ao futuro marido. Ingenuidade e ambição são seus maiores atributos. A entourage é escoltada por soldados turcos; o cadáver de um rico comerciante que desejava ser enterrado na terra santa, um sacerdote frustrado, que, na verdade, é um amante reprimido; uma escrava, um ladrão romântico, peregrinos. Todos encontram outros personagens — um beduíno, bandidos, um indiano espião disfarçado de dervixe e, o principal, o alforje repleto de textos sagrados.

O alforje passará pelas mãos de diversos personagens. Alguns merecem destaque, como a noiva que tem visões e sua escrava, uma judia negra, de corpo perfeito, porém de rosto marcado pela varíola. E também chegará às mãos do sacerdote fundamentalista, sendo esse um exemplo do embate intimidade/aparência. A autora aborda o óbvio com maestria — a solidão, a ambição, o poder. De outra maneira, seria insuportável a repetição da história.

Se em Nós e eles o leitor se depara com uma comédia, pois que aproveite ao máximo o humor, já que a leitura de O alforje é uma viagem à cruel e rasa, à patética e arrogante condição humana. Trata-se de um diário de viagem com traços de misticismo, aventura, e vestígios de filosofia. Muito se anuncia, pouco é mostrado. Quem sabe um filme…

Nós e eles
Bahiyyih Nakhjavani
Trad.: Natalia Borges Polesso
Dublinense
300 págs.
O alforje
Bahiyyih Nakhjavani
Trad.: Rubens Figueiredo
Dublinense
246 págs.
Bahiyyih Nakhjavani
Nasceu no Irã, cresceu em Uganda e estudou no País de Gales, Estados Unidos e Inglaterra. Após dar aulas de literatura em universidades da América do Norte e Europa, foi morar na França, onde ministra cursos de escrita criativa. Seus livros, de ficção e de não ficção, foram traduzidos para diversos idiomas.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho