Obra de mestre

Apesar de não ostentar a complexidade e o cosmopolitismo que consagraram Henry James, "A herdeira" impõe-se como obra-prima
Ilustração: Henry James por Robson Vilalba
27/02/2016

Ao sabor das décadas, gerações e séculos, editores, críticos e aficionados das letras costumam realizar concursos públicos para provimento de vagas no Instituto dos Expoentes da Literatura Mundial. A cada certame propõem ingressos, reiteram valores, vetam legitimidades, e assim consagram, desbancam ou atiram na vala do esquecimento autores que julgavam descansar para sempre no mausoléu da glória póstuma. No centenário do seu falecimento, Henry James não é uma das vítimas desse revisionismo, em que os anseios e a instabilidade dos vivos se projetam sobre os mortos. Folga em ser um dos premiados contumazes que continuam a usufruir do galardão da excelência na galeria dos grandes escritores de língua inglesa. “Autor onde o denso se alia ao apuro, contribuiu para o desenvolvimento da moderna prosa de ficção”, subscrevem os jurados que o recomendam.

Os contemporâneos do escritor admiravam seus longos romances centrados no vaivém transoceânico da alta sociedade europeia e norte-americana, à medida que esse fenômeno se desenvolvia na segunda metade do século 19 e o cosmopolitismo se tornava, além de tema sem precedentes na narrativa de ficção, valioso instrumento de prospecção existencial.

O modernismo que marcou a cultura artística de inícios do século 20 afinou-se sobremodo com o Henry James que defendera, em 1884, no célebre ensaio A arte da ficção, o romance como produção independente e visão pessoal do mundo. Escritores da era do cinema, que procuravam caminhos inovadores de expressão literária, curvaram-se ante um antecessor que apontava novas perspectivas para o manuseio do foco narrativo e do discurso indireto livre. As vanguardas refratárias às demandas do mercado consumidor incensaram a criatividade sobranceira da ousada e intrincada prosa do autor de Retrato de uma senhora, As asas da pomba, Os embaixadores. E os pós-guerras reafirmaram, ao lado destes longos e copiosos romances, o lume duradouro de Washington Square, que apesar de não ostentar a complexidade e o cosmopolitismo pelos quais Henry James se consagrou, impõe-se como obra superior.

“Para se escrever bem e condignamente das coisas americanas”, dissera Henry James, em 1871, “é preciso ser, mais do que em qualquer outro lugar, um mestre”. Nove anos depois dessa afirmação (um ano antes de publicar Retrato de uma senhora), quando o escritor nova-iorquino já era consagrado e morava na Inglaterra, é possível que ele se julgasse “mestre” o bastante para escrever Washington Square, cuja história ele chamaria de “puramente americana”.

Neto de imigrante irlandês que no fim da vida chegou a ser um dos homens mais ricos dos Estados Unidos; filho de proeminente teólogo protestante de tradição liberal; irmão mais moço do futuro filósofo William James, Henry James nasceu a 15 de abril de 1843, em Nova York. Contava sete anos quando o pai, após um período em Albany, comprou a casa da Rua 14, nos arredores de Washington Square, lá onde o resto de sua infância transcorreu, em meio ao aroma dos ailantos e nos limites de um pequeno mundo homogêneo e crepuscular em vias de transformação. O título Washington Square trai, sem dúvida, ressonâncias autobiográficas. Não por acaso James situa a obra no decênio de 1850, numa Nova York de duzentos mil habitantes, onde os porcos e as galinhas recreiam-se nas valas de escoamento, as casas neoclássicas vão sendo suplantadas pelas de tijolos marrons, e ainda se veem piras acesas nos altares do Templo da Simplicidade Republicana.

O quadro urbano esboçado a meia-tinta em Washington Square constitui o pano de fundo pálido e esmaecido diante do qual se desenvolve o forte pigmento da análise psicológica.

A herdeira
Embora aponte com propriedade para a cena americana, Washington Square resulta, em parte, num título enganoso, pois promete oferecer ao leitor um painel de costumes sócio-históricos e de cor local que o livro em verdade não preenche, ou preenche pouco, e não à primeira vista. A tal ponto que na adaptação para o teatro, em 1947, e depois para o cinema, em 1949, esse título foi substituído pelo de A herdeira, mais adequado a um enredo cuja mola propulsora gira em torno de uma moça rica, cobiçada por um caça-dotes. Sucede que o título de A herdeira provoca reservas entre os apreciadores do romance em causa. Alguns leitores, sensíveis à semelhança deste com o romance de Balzac Eugénie Grandet (no qual uma jovem ingênua se encanta por um refinado oportunista, contra a advertência paterna), prefeririam batizá-lo com o nome da protagonista: Catarina Sloper. Outros, percebendo o parentesco de Washington Square com Orgulho e preconceito de Jane Austen, no tocante à sondagem da alma feminina, prefeririam resumi-lo numa oposição de ideias como: Candura e egoísmo ou Humildade e arrogância.

Seja como for, o quadro urbano esboçado a meia-tinta em Washington Square constitui o pano de fundo pálido e esmaecido diante do qual se desenvolve o forte pigmento da análise psicológica. Note-se que, aqui, o elemento psicológico difere do que predomina no conjunto da obra jamesiana, devido ao vínculo estreito que apresenta com o contexto norte-americano.

A família Sloper de Washington Square move-se num estilo de vida e clima moral que não são os da Paris belle époque, os da Florença amena, nem os da Londres nobiliárquica, onde, no inverno de 1878, Henry James admite ter atendido a nada menos do que 107 convites para encontros sociais. Os Slopers forjaram-se numa comunidade que traz nas veias o sangue dos puritanos do Mayflower, presbiterianos rigorosos que pretendiam interpretar melhor do que ninguém as escrituras bíblicas. Estamos em um Novo Mundo tenaz, rijo, renhido, povoado por cidadãos tão confiantes em seus valores quanto desconfiados dos valores estrangeiros. Tão orgulhosos da União federativa que estabeleceram quanto temerosos de verem-na desagregar-se às vésperas da Guerra da Secessão e da revolução capitalista. Ali não se prezam concessões sentimentais. Quando um jovem pergunta ao futuro sogro: “O que é possível oferecer a uma mulher, além do carinho mais terno e dedicação por toda a vida?”, obtém por resposta: “Pode-se oferecer outras coisas, além de carinho e dedicação. Uma vida de fidelidade só se mede após o fato. Até lá, o costume é pedir garantias materiais”. De maneira que, ressaltando o liame entre os valores dos personagens e a sociedade que os determina, Henry James em Washington Square despoja-se da obliquidade característica dos seus romances internacionais, para se adaptar, quando não à crueza do solo pátrio, pelo menos às arraigadas convicções do autor sobre a simplicidade terra-a-terra da vida americana.

O narrador, na abertura do relato, esboça a imagem de um médico nova-iorquino inteligente, probo, conceituado, brilhante até em sua profissão. Trata-se do pai da protagonista, retratada, adiante, como moça de espírito lento e físico insosso (no máximo simpática, no mínimo glutona, para embaraço de quem a descreve). “Pobre moça”, diz-se o leitor, na esteira da voz que a qualifica de “pobre” reiteradas vezes. Pobre protagonista, ademais, sem estofo para ser uma heroína na acepção clássica, de criatura extraordinária, nem para ser moderna anti-heroína.

Órfã de mãe desde tenra infância, nossa personagem atinge a maioridade venerando o pai que a criou num ambiente de segurança doméstica, estabilidade responsável e afeto cerimonioso. Este pai se ufana de enxergar a realidade tal qual é. Portanto, não se ilude quanto aos atributos da filha. O que esta, a seus olhos, prometia ser em criança, na idade adulta se confirma. Catarina, aos vinte anos, é uma jovem saudável, simplória, sem graça, sem muito gosto para se vestir, bondosa e leal. O pai mal sabe que, a essa altura, a filha tampouco se ilude quanto a si. Subestimada, subestima-se. Acredita ter a menos a inteligência que o seu genitor tem a mais, num grau que o coloca fora do alcance dela. E a propósito daquilo em que acredita ou não, o leitor aprende que Catarina não é de absorver muitas impressões, mas as poucas que absorve são como mossa em chaleira de cobre — nenhum polimento apaga.

O contraste entre vários níveis de clarividência já se delineia nos princípios da narrativa. O médico sagaz enxerga de saída o patife da história. A filha bondosa, porém simplória, e na aparência menos capaz de aquilatar a dimensão dos seres, é tão rápida em se encantar por Morris Townsend quanto lenta em perceber seu verdadeiro caráter. De maneira que se a lucidez do médico, nessa fase, representa uma virtude, a inocência da filha (que a impede de enxergar maldade onde há) afigura-se defeito. “Ninguém é bom para nada se não for esperto”, assevera o médico nas páginas iniciais. Dali a pouco, quando o narrador nos garante que Catarina é “a mais meiga das criaturas”, isso não soa propriamente como um louvor.

Lógica afetiva
À medida que os diálogos conduzem a ação, ternura e lealdade deixam de ser meros sintomas de ingenuidade, para se tornarem indícios da lógica afetiva de Catarina. Uma lógica afetiva não menos rigorosa do que a lógica cerebral do pai, e não menos apta a devassar, em seu próprio ritmo, a interioridade das pessoas.

Quando Morris Townsend quer ouvir de Catarina o grito rebelde de: “Se me meu pai o desaprova, não me importa”, ela o corta de chofre, exclamando: “Ah, mas importa!”. Não pode fingir o contrário. Não pode rejeitar, de repente, a aprovação de um ser que lhe é fundamental. A coerência que mantém com seus sentimentos não só a coíbe como vai torná-la, eventualmente, autônoma. Na ocasião em que a tia a encoraja a se casar em segredo, o desejo de ser “boa filha” a impede de se precipitar nesse estratagema. Será, enfim, em lealdade à própria dor que ela se poupará, mais tarde, de acreditar que Morris a largou pelo nobre motivo de não deserdá-la.

Lentamente, sem brilhantismo, Catarina desenvolve uma nítida percepção da gente com a qual convive, sem que o inverso aconteça. Manipulada por uma tia fantasiosa, um namorado interesseiro e um pai que a menospreza, ela virá a compreender a natureza manipuladora de todos eles, sem que a compreendam em troca. O entrecho termina com uma tia atônita, um ex-noivo que se indaga: “Por que diabo não se casou?”, e um pai que morre na vasca de uma ignorância análoga.

“Sabemos o quanto o episódio do noivado ferira Catarina de modo profundo e irremediável, mas o médico não tinha as mesmas condições de sabê-lo”, dirá o narrador no desfecho da trama. Nesse momento, o leitor não poderá se impedir de achar o médico um tanto obtuso. Conquanto dispense, até o fim da vida, diagnósticos clínicos dos mais certeiros, em foro íntimo terá perdido a elasticidade necessária para transpor a cerca de teorias que ele mesmo ergueu ao redor de si como um muro de autodefesa — muro que o isola da empatia com o próximo.

Do começo ao fim da história o diagnóstico do doutor Sloper procede: Morris Townsend não passa de um caça-dotes. Bem que o avisou à filha. Bem que ameaçou deserdá-la. Bem que em disposição testamentária deu cumprimento a essa ameaça. Até o último suspiro, sua autoridade de pai não cedeu. Mas encontrou, a partir de dado momento, uma resistência que indicava: não que a filha fosse pouco sensível, mas que a sensibilidade desta pairava numa zona luminosa fora do alcance dele.

Ao contrário dos demais personagens, cujos enfoques, sofisticados ou primários, certos ou errados, permanecem fixos ao longo do tempo, a protagonista reformula suas noções. Nos primeiros capítulos, chega à maioridade confundindo a felicidade na Terra com o desejo de agradar o pai. Nos últimos, conscientiza-se de que o pai se opôs ao noivado dela, menos pelo desejo de protegê-la, do que pelo deleite de ter razão. Enfrentando a dolorosa tarefa de destronar um deus interno, compreende que o pai a estima menos do que ela pensava. Compreende, inclusive, que isso não depende dele. “Não governamos nossas afeições”, explica a Morris. “Ele amava profundamente minha mãe, a quem perdemos faz tanto tempo. Ela era bonita e cativante. Ele está sempre pensando nela. Não me pareço com ela, Tia Penniman me disse. É claro que não é minha culpa. Mas tampouco é culpa dele. Quero dizer que a verdade é essa.” Nesse descortino, a dimensão irônica da narrativa patenteia-se, consolidando um percurso de evolução e involução opostas entre Catarina e o pai. Acompanhar o rendilhar desse processo não é dos menores prazeres que a leitura de Washington Square proporciona.

Outra força própria a essa “história puramente americana” emana de uma exímia arte verbal posta a serviço do silêncio. Pois entre o embate da razão cerebrina e da razão afetiva que separam Austin Sloper e Catarina, imiscuem-se, a todo instante, momentos calados, mudos, quietos. Durante tais hiatos significativos agem os impulsos não verbalizados que recheiam em profusão as entrelinhas dos diálogos, levando os personagens a se curvarem ante os vezos psicológicos que os comandam. Na maciota agem os estímulos inarticulados que levam, por exemplo, o doutor Sloper a confessar que, tendo ou não razão, ele não quer confiar em Morris Townsend. Da mesma forma, um ditame não expresso e sem porta-voz faz Catarina passar a vida como cordata companheira do pai, mas, quando este lhe pede que prometa nunca se casar com Morris Townsend, a obriga responder: “O senhor não compreende. Não posso prometer. Não posso explicar. Não posso prometer”.

Vemos, então, que sobre o forro de uma cisão entre razão paterna e afeto filial, cálculo frio e inocência traída, o tecido de Washington Square urde-se com o fio dos interditos que regem a condição humana numa Nova York em seus primórdios citadinos, quando o sufrágio feminino inexistia, o capital acumulado constituía a prova da virtude de homens laboriosos e austeros, e a afirmação da independência individual tolhia demonstrações de lástima pelo calado envelhecer de uma mulher sozinha, ou daquela que o narrador tantas vezes chamou de “pobre”— pobre moça, pobre Catarina.

NOTA
Este texto integra a nova edição de A herdeira, a ser lançada em breve pela 7Letras.

Margarida Patriota

Carioca radicada em Brasília desde 1976, tem trinta livros publicados e foi professora do Departamento de Letras da Universidade de Brasília. Desde 1997, conduz e apresenta o programa Autores e Livros da Rádio Senado. Em poesia, publicou os livros Laminário (2017) e Tempo de delação (2019).

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