O romance rural e os paradoxos do país

"Os sertões", de Euclides da Cunha, foi o primeiro livro a formular de modo consciente e explícito o embate entre as sociedades rural e urbana no Brasil
Ilustração: Eduardo Souza
05/11/2020

O grande prosador Nelson Rodrigues que me perdoe, mas nem toda a unanimidade é burra. Muito menos é inverdade. Essa última parte ele não disse, digo eu agora. Claro, há unanimidades e unanimidades. Um desses consensos, ou consenso até certo ponto, e com boa dose de verdade, diz respeito ao fato de que parece ter sido Euclides da Cunha com o seu monumental Os sertões (1902) que nos fez ver, pela primeira vez, de modo pleno e consciente, a natureza radicalmente cindida, fraturada do país. Naquela república que não tinha nem dez anos de surgimento, o relato que o escritor carioca produziu da Guerra de Canudos (1896-1897) trouxe à consciência nacional, à época e depois, a realidade brutal do país, a qual sugeria se assentar numa dualidade dilacerante, dividida entre mundo urbano e mundo rural, entre o arcaico e o moderno, entre a suposta civilização e a suposta barbárie, entre a população pobre e de desvalidos vivendo ao deus-dará nos sertões e a população integrada ao circuito da vida moderna urbana e de consumo que despontava.

Nem a lente do cientificismo do momento, através da qual também Euclides da Cunha via e compreendia o mundo, o impediu de perceber que estava diante de uma tragédia histórica e social ao se deparar com aquela “sociedade de retardatários” e com o que dela foi feito. Em nome do estado, da república, da civilização e do progresso, o exército dizimou milhares de vidas que pareciam, nas palavras do autor, viver “em terras estranhas”: “Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente”. Aos soldados, “invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil”.

O livro de Euclides da Cunha é o primeiro a formular de modo consciente e explícito um daqueles momentos de cristalização traumática da sociedade brasileira. Trauma esse que o autor nos apresenta, em movimento, como a emergência de uma sociedade rompida, disruptiva, brutalmente desigual de cima a baixo. Nela, o estranho, o desconhecido somente pode ser banido à bala, no confronto que Os sertões evidencia entre predominantemente (ainda que não só) mundo rural arcaico e arcaizante e mundo urbano civilizado e moderno — sem desconsiderar como na visão arguta de Euclides da Cunha, em muitos momentos, esses espaços se confundem, quando não se invertem, ao menos num dos seus polos, no instante em que homens tidos como civilizados se barbarizam.

De outra parte, vale ao menos destacar que o chão histórico dessa experiência de violência e de arbítrio no trato com camadas enormes de gentes no Brasil nos constitui, desde sempre, histórica e socialmente. O sistema escravista e tudo o que ele implicou — e ainda implica — é o lastro de experiência social acumulada que nos chancela a conviver, até hoje, com graus e modos diferentes de violência sofrida pela população pobre e sobretudo negra do país. (Podemos imaginar quantas rebeliões de negros escravos combatidas a ferro e fogo não tiveram um Euclides da Cunha para reportá-la. Houve no máximo a poesia de Castro Alves ou a visão e a compreensão abrangente, generosamente indignada e humanista, de Joaquim Nabuco.)

Pioneiro
Para o fio do raciocínio aqui, gostaria de sinalizar que Os sertões abre caminho, que não seria exagerado de se dizer, determinante, ou no mínimo muito forte, tanto para a ficção quanto para pensamento social brasileiros. Toma-se consciência histórica, social, literária e cultural de uma espécie de clivagem formativa do país, em diferentes esferas, e no caso d’Os sertões particularmente entre os espaços rural e urbano. Penso que, a partir daí, de formas diversas, com perspectivas várias e com sentimentos diferentes diante do problema, escritores como Monteiro Lobato, Alcides Maia, Hugo de Carvalho Ramos, Oswald de Andrade, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, Ciro do Anjos, para ficar apenas em alguns e no âmbito somente da narrativa de ficção, procuraram se a ver com a questão em diferentes níveis da sua produção ficcional. De outro ângulo, intelectuais de naipes muito diferentes entre si, como Oliveira Viana, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, Antonio Candido, entre outros, não deixaram de pautar algo de sua compreensão do país e da literatura por algum grau dessa dicotomia conflitada do país. Até o seu questionamento mais profundo, como horizonte explicativo, ali a partir dos anos 60 do século passado, esse sentimento de compreensão do país como uma duplicidade constitutiva disruptiva, desajustada, descompassada e impactante, parece caracterizar, com seus acertos e equívocos, um dos núcleos constitutivos da nossa autoconsciência moderna.

Explicando melhor, podemos dizer o seguinte: Há um momento em nossa experiência histórica e social que escritores, intelectuais, historiadores, em suma, homens que pensam ou “fantasiam” literariamente o país, compreendem que o passado histórico conta como lastro cumulativo e formativo do que somos no presente. Para o bem ou para o mal, o relógio do passado se transformou em elemento fundamental para pensar o presente e projetar o futuro. A consciência dominante que se produziu é a de que o passado que nos formou constituiu, ao longo do tempo, um entrave, um enguiço para o presente e o futuro.

“Euclides da Cunha é o primeiro a formular de modo consciente e explícito um daqueles momentos de cristalização traumática da sociedade brasileira.”

Diferentes enfoques
Apenas para exemplificar, compare-se o modo de percepção do tempo histórico (passado) na obra de Euclides da Cunha com o de Joaquim Nabuco, quando este analisa a escravidão em O abolicionismo (1883), menos de duas décadas antes. Para a visão de Euclides da Cunha, Canudos e tudo o que ele representa são um precipitado histórico do passado, que pode ser sintetizado na famosa frase de Euclides sobre os “rudes patrícios” com os quais a nossa “civilização postiça” tem que, de repente, se deparar: “Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos…”. No caso de Nabuco, embora obviamente compreenda a escravidão como um processo de longa duração, é no presente que se impõe forte como problema. Para o bem ou para o mal, o relógio do passado se transformou em elemento fundamental para pensar o presente e projetar o futuro — o presente desatravancado da escravidão e de suas consequências nos colocaria virtualmente no horizonte das civilizações modernas e do progresso. Para Nabuco, ela não é, ainda, trauma histórico constitutivo do passado.

O que pode ser chamado de passado disruptivo de nossa consciência moderna sugere situar-se em âmbitos diferentes da nossa literatura e do nosso pensamento. No caso desse último, conforme o autor, pode se centrar no sistema escravista, no processo originário e formativo da nossa elite política, na nossa formação histórica e social predominantemente rural, ou na nossa “herança colonial”, em que podem atuar níveis diferentes desses vários fatores.

O romance rural
Neste processo complexo e intrincado, nosso interesse é perceber o problema a partir do mundo rural e mais particularmente do que chamaria de romance rural brasileiro do século 19. No ensaio intitulado A matéria rural e a formação do romance brasileiro: configurações do romance rural (Appris, 2020), tentei mostrar que algo dessa dimensão dual se fazia presente na relação entre matéria rural e forma do romance. O romance, como forma de expressão que procurava enunciar a matéria que se passa no sertão, no pampa ou no cerrado, capta, tematiza e formaliza, em algum âmbito, esse balanceio dual ao figurar o espaço rural, suas paisagens, suas figuras humanas e suas relações. No bom e no mau romance do período, o sentimento e a observação de estranhamento e certo encantamento se misturam, se sobrepõem, se confundem, ao mesmo tempo, diante do mundo narrado. Esse olhar para o mundo rural está presente em romances como O sertanejo e Til, de José de Alencar, Inocência, de Visconde de Taunay, O cabeleira, de Franklin Távora, apenas para citar algumas obras, todas do chamado romantismo brasileiro, período que nos interessa no momento.

Gostaria de sinalizar ao leitor ao menos dois aspectos do romance rural que permitem a apreensão de certos vetores importantes dessa ficção em dois sentidos complementares e indissociáveis. De um lado, compreender o romance rural como uma linhagem ou tendência específica da formação do romance brasileiro, com certas características particulares, ao longo do século 19; de outro, entendê-lo como esfera da vida mental partícipe daquela dualidade contraditória mencionada anteriormente, só que aqui se revelando ainda digamos de modo inconsciente, dado que o momento histórico era outro.

O narrador é um dos elementos marcantes dessa ficção. Não somente porque é a instância enunciadora do relato, como em qualquer ficção, mas sobretudo por assumir uma posição social de linguagem algo contraditória diante da matéria da qual tem que dar conta. O narrador do romance rural se caracteriza, fundamentalmente, por possuir um perfil social de figura citadina e letrada a ter que dar voz à matéria rural cuja origem se engendra numa ordem de valores sociais e culturais, até certo ponto, diferentes da instância narrativa. Cultura dominada pela oralidade; espaço social determinado por relações imediatas e pessoais, sem certos protocolos de “decoro” e outros da vida citadina; ajustes de relações que são resolvidos pela violência; presença e vínculos diversos com a natureza — tudo isso, e mais, compõe o mundo rural. Não que muitos desses traços não estejam presentes na vida urbana (e uso a palavra urbana para a época de forma muito reticente) e no romance urbano do século 19, mas sua forma de abordagem, especificamente nesse, é outra.

Muito simplificadamente, podemos dizer que o narrador figura uma espécie de apropriação desse espaço rural, de sua paisagem física e humana e das relações que as compõem, como forma de incorporá-lo à cultura letrada, ao horizonte social, cultural e literário do narrador e, por consequência, dos nossos letrados. Essa apropriação tem muito pouco do espírito nacional ou nacionalista com que certo senso comum da crítica tende a compreender o romantismo. Aliás, diria que tem muito pouco e na maioria das vezes quase nada do sentimento de nacionalismo na história, na caracterização dos personagens e sobretudo na posição dos narradores do romance rural, apesar de títulos de romances como O sertanejo e, muitas vezes, do subtítulo de “romance brasileiro”.

A apropriação do mundo rural deve ser entendida, então, como incorporação do espaço e da matéria rurais à letra impressa, o que não se realiza, todavia, sem certo sentimento de estranheza e mesmo de distanciamento, em instante em que esse mundo não é reconhecido como seu. Violência, poder patriarcal brutalizador e pobreza são alguns dos fatores que determinam esse balanceio da perspectiva narrativa entre aproximação apropriativa e estranhamento distanciador.

Outro elemento que merece destaque, para o nosso ponto de vista aqui, é o protagonista do romance rural. Numa sociedade em que o sistema escravista é uma das chaves estruturantes de nossa formação social, o romance rural põe no centro dos acontecimentos outra camada social significativa da época, que é a figura do homem livre pobre. Esse protagonista vive entre certo espaço de liberdade possível e certo nível de constrição social de naturezas diversas. Aqui, talvez, dois exemplos podem esclarecer a situação para o leitor.

 

Ilustração: Eduardo Souza

“Para o bem ou para o mal, o relógio do passado se transformou em elemento fundamental para pensar o presente e projetar o futuro.”

Personagens
No caso do romance de José de Alencar, O sertanejo (1875), o personagem Arnaldo Louredo sugere ser caracterizado, ao longo do seu percurso, por um movimento pendular, sem saída de resolução. Por um lado, o protagonista é apresentado por seu destemor, valentia, como homem do campo; por sua relação de integração com a natureza sertaneja, e por sua virtuosa fidelidade moral, ao se mostrar uma espécie de guardião protetor da poderosa família proprietária dos Campelo, para quem o pai de Arnaldo trabalhou como vaqueiro e nas terras de quem ainda mora com a sua mãe. Por outro, o mesmo personagem não deixa de ser visto como um simples agregado, um simples trabalhador rural do grande proprietário. Ele não somente tem de se submeter aos desígnios de Campelo, ainda que resista, mas também, por sua condição social rebaixada, tem seu amor pela filha do proprietário interditado. Como personagem do mundo rural, o protagonista oscila entre sua estatura heróica em muitas ações e sua figura rebaixada no prosaico da vida diária em razão de sua condição de agregado. Pura ambiguidade dual de perspectiva.

Já o romance de Visconde de Taunay, Inocência (1872), nos situa numa chave variada do problema. Homem de parcos recursos, com formação e informação precárias, mas com certo conhecimento de medicina popular, o protagonista Cirino se apresenta como “doutor” para realizar as suas curas no interior do sertão de Mato Grosso. A sua mobilidade espacial é dada pela profissão, ao transitar entre a cidade e o sertão. O envolvimento amoroso entre Cirino e Inocência, que ocorre quando o pai dela, Pereira, leva-o para cuidar da sua filha adoentada, é o núcleo do conflito, que possui características muito específicas. O coração romântico sugere ter lugar social definido e não menos conflituoso. O amor romântico de Cirino ingressa no sertão como elemento moderno contraposto ao código dos rigores do mundo rural patriarcal. Para Cirino e, a seguir, para Inocência, os afetos amorosos devem ser de livre escolha do indivíduo, configuram certo grau de autonomia desse no mundo, ao contrário da ordem patriarcal que determina e impõe o destino das relações de casamento e de outras. Este é o caso de Inocência, que estava destinado ao tropeiro Manecão pelo pai. A tentativa de conciliação do casal entre impulso amoroso individualista moderno e voz de mando do patriarca e pequeno proprietário rural, leva ao gesto brutal: a morte do casal pela ordem patriarcal. Aqui, o embate entre aspirações modernas e mando de tradição patriarcal é resolvido à bala.

Ainda que cada romance ficcionalize esses elementos de modo diferente, na dinâmica de composição específica a cada um deles, podemos dizer que o romance rural se caracteriza por um movimento geral e peculiar definido pelo caráter ambivalente e contraditório de configurar a matéria e a experiência rurais no âmbito ficcional. Esse caráter ganha forma no gesto duplo (simétrico, antagônico e indissociável) de integração/aproximação/incorporação, por um lado, e, por outro, de distanciamento/estranhamento/diferenciação que recobre essa ficção. Equilíbrio instável de uma matéria que Euclides da Cunha fará implodir nas décadas seguintes.

Fernando Cerisara Gil

É professor de literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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